2 de janeiro de 2021 1:43 por Fátima de Sá
Perplexidade
Em julho de 2020, o diretor da Organização Mundial da Saúde (OMS) perguntou, perplexo: “Por que é tão difícil para humanos se unirem para lutar contra o inimigo?” E alertava que a COVID-19 continuava fora de controle, necessitando de união para enfrentar a pandemia.
A pandemia continua
Como resultado, estamos diante de um novo ano – 2021, sabendo que ainda não acabou! Pois, a pandemia não acaba por decreto, por decisão governamental, porque decidiram em gabinetes ou porque algum governante acordou um dia e determinou que a Covid-19 está no “finzinho”. E, o vírus não está nem aí para eles. Segue sua “rotina” desde que pulou para um humano e vem seguindo percursos que não se sabe onde nem quando vai parar.
A dor e a esperança
Enquanto isso, revisito Camus. E leio, no livro A Peste: “Mas, as famílias que se esquivaram mais à alegria geral foram, sem dúvida, as que nesse mesmo momento tinham um doente se debatendo contra a peste num hospital e que, nas casas de quarentena ou em suas próprias casas, esperavam que o flagelo acabasse verdadeiramente com eles como tinha acabado com outros. Essas concebiam, é claro, a esperança, mas faziam dela uma provisão que guardavam de reserva e proibiam-se de se servir dela antes de terem realmente esse direito”.
Pausa para a eleição
Entretanto, decidiram, alguns “iluminados”, que poderia haver eleição, mas esqueceram de combinar com o SARS-CoV-2, o vírus. Assim, ocorreram aglomerações em todas as cidades do país e, no dia seguinte à votação, “surpresa”, houve quem anunciasse que havia chegado a segunda onda. Contudo, para serem honestos, deveriam ter dito que a primeira nem havia acabado. E estamos vivenciando aquela situação de “tudo junto e misturado”, e segunda ou a continuação da primeira, o real é que o coronavírus – causador da Covid-19 – continua entre nós e causando muitas mortes.
Pegada ecológica?
Para clarificar, escuto Ailton Krenak[i] nos lembrando que “cada movimento que um de nós faz, todos fazemos. Foi-se a ideia de que cada um deixa sua pegada individual no mundo; quando eu piso no chão, não é o meu rastro que fica, é o nosso. E é o rastro de uma humanidade desorientada, pisando fundo”. É óbvio que não se pode perder de vista que estamos todos conectados numa interdependência, no planeta Terra, fazendo com que cada um seja responsável pelo que acontece ao outro.
Altruísmo e Compaixão
Por sua vez, o Dalai Lama, ao falar sobre compaixão global, em um livro que foi publicado há duas décadas[ii], trouxe reflexões que são bem atuais: 1. “De país a país e de continente a continente, o mundo está interconectado de modo inextrincável; 2. “Além da infinidade de crises sociais e políticas, o mundo também está enfrentando um ciclo cada vez mais intenso de calamidades naturais; 3. “[…] a questão da proteção ambiental é, no final das contas, a questão de nossa própria sobrevivência neste planeta”; 4. “Em última instância, a humanidade é só uma, e esse pequeno planeta é nossa única casa. Se quisermos proteger essa nossa casa, cada um de nós precisa experimentar um sentimento intenso de altruísmo e compaixão universal”.
Precisamos de honestidade
Por outro lado, essa nossa casa é objeto do que ficou conhecido como a hipótese de Gaia. Para explicar parte do quebra cabeça na elaboração da hipótese, o químico James Lovelock contou com a preciosa colaboração da bióloga Lynn Margulis e seu conhecimento sobre simbiose. E MARGULIS[iii] nos falou que a Terra, “no sentido biológico, possui um corpo sustentado por processos fisiológicos complexos. A vida é um fenômeno em nível planetário e a superfície da Terra está viva há pelo menos 3.000 milhões de anos”. Em outras palavras, a espécie Homo sapiens chegou aqui muito tempo depois. Consequentemente, Margulis alertou: “Precisamos de honestidade. Precisamos nos libertar de nossa arrogância específica da espécie. Não existe evidência de que somos ‘escolhidos’, a espécie única para a qual todas as outras foram feitas. Nem somos os mais importantes porque somos tão numerosos, poderosos e perigosos[…] precisamos nos proteger de nós mesmos”.
É preciso estar atento sempre
Diante desse alerta, volto à Camus (A Peste), cuja leitura me foi muito útil para conviver com os medos iniciais da pandemia. Ali, bem no final, há a lembrança de que não dá para se descuidar nunca, mesmo depois da vacina:
“Na verdade, ao ouvir os gritos de alegria que vinham da cidade, Rieux lembrava-se de que essa alegria estava sempre ameaçada. Porque ele sabia o que essa multidão eufórica ignorava e se pode ler nos livros: o bacilo da peste não morre nem desaparece nunca, pode ficar dezenas de anos adormecido nos móveis e na roupa, espera pacientemente nos quartos, nos porões, nos baús, nos lenços e na papelada. E sabia, também, que viria o dia em que, para desgraça e ensinamento dos homens, a peste acordaria os seus ratos e os mandaria morrer numa cidade feliz.”
O que pensar?
Mas, para nossa felicidade temporária, os poetas nos fazem esperançar. E Cora Coralina deixou estes versos: “Creio numa força imanente / que vai ligando a família humana / numa corrente luminosa de fraternidade universal”.
Será?
Em conclusão, tenho que concordar com Krenak: “Quando pensamos na possibilidade de um tempo além deste, estamos sonhando com um mundo onde nós, humanos, teremos que estar reconfigurados para podermos circular”.
[i] KRENAK, Ailton. A vida não é útil. São Paulo: Companhia das Letras, 2020. p. 96.
[ii] DALAI LAMA. A vida de compaixão. Trad. Fernanda Abreu. 2 ed. Rio de Janeiro: Bertrand Russel, 2002. (Título original: The compassionate life, 2001).
[iii] MARGULIS, Lynn. Symbiotc planet: a new look at Evolution. Amherst, Massachusetts, 1998.