5 de março de 2021 2:46 por Fátima de Sá
A notícia
Em programas de TV, no Recife, no início desta semana, foi apresentado um caso de duas irmãs que foram hospitalizadas alegando dores muito fortes no corpo, dor de cabeça e, uma delas, apresentava paralisia no corpo. Segundo depoimento da mãe, “ninguém sabia qual era o problema delas”. A que apresentou sintomas mais graves foi para a Unidade de Terapia Intensiva.
Dois dias após a internação, uma das pacientes ouviu um médico relatando casos parecidos, registrados na Bahia, e que aquelas ocorrências teriam sido atribuídas ao consumo de Arabaiana – um peixe marinho, muito comum na costa do nordeste. Ao ouvir a conversa, a paciente lembrou que ambas haviam ingerido daquele peixe numa refeição, quatro horas antes da ocorrência dos sintomas iniciais.
A doença
A síndrome de rabdomiólise – quadro apresentado por uma delas – pode ser atribuída a diversas causas, e esta condição leva à fraqueza muscular, dores musculares e urina escura. A excreção de mioglobina é o que deixa a urina com “cor de café”, conforme consta em alguns relatos.
Diante da informação do consumo do peixe e, de posse dos resultados de exames já realizados, além dos sintomas apresentados, foi dado o diagnóstico de Doença de Haff. Para esse diagnóstico, leva-se em consideração: “quadro clínico, história epidemiológica (ingesta de peixe ou crustáceo nas 24 horas precedentes ao evento) e níveis elevados de marcadores de necrose muscular, particularmente mioglobina e CPK [creatinofosfoquinase].”[i]
História
Os primeiros casos descritos da doença ocorreram no verão de 1924, na costa do Báltico, em pessoas que viviam na parte norte de uma laguna, Königsberg Haff [Haff = lagoa ou laguna, em alemão], e que consumiam peixes de água doce: Enguia (Anguilla anguilla), Pike (Esox spp) e outro conhecido como Bacalhau de água doce (Lota lota). Os sintomas destacados à época foram: grave rigidez muscular, frequentemente, acompanhada de urina escura. A maioria dos pacientes se recuperou rapidamente, embora alguns vieram a óbito.
A busca por informações
Quando vi os vídeos que me enviaram, meu primeiro pensamento foi: muitas pessoas vão temer comer Arabaiana. Antes de tudo, passei a buscar informações sobre as causas dos sintomas que podem levar, se não cuidado a tempo, a sérias complicações. Não sou da área de saúde. Como engenheira de pesca, pensei imediatamente em como isto vai afetar a vida dos pescadores artesanais e da população que tem o hábito de consumir peixes na semana santa. Mais uma vez, tudo está interconectado.
No entanto, logo verifiquei que foi o consumo de algumas espécies de peixes de água doce que levou aos primeiros casos relatados. Então, a questão não era específica da Arabaiana. Não foi indicada a espécie no caso do Recife, embora, relatos dos casos que ocorreram na região metropolitana de Salvador falam de Seriola sp, conhecida como Arabaiana ou Olho-de-boi.
Igualmente, em 2018, um jornal do Ceará[ii] anunciou um caso considerado o primeiro registrado em um hospital de São Paulo, em que os pacientes haviam ingerido Arabaiana, ou Olho-de-boi como eles também conheciam, que fora adquirido em Aquiraz (município da Região Metropolitana de Fortaleza) quando lá estiveram em férias, mas haviam transportado o peixe de forma segura. Vale salientar que os três envolvidos moram em São Paulo, mas são cearenses, da mesma família, e estavam acostumados a comer esse peixe.
Primeiro surto descrito no Brasil
E constatei que, desde aquele primeiro registro no que é atualmente a cidade de Kaliningrado, foram registrados casos em vários países – Suécia, Rússia, Japão, Estados Unidos e China –, sejam provocados pela ingestão de um determinado crustáceo e/ou de peixes de água doce, estuarinas ou marinhas.
Ainda mais, em 2008, no Estado do Amazonas foram notificados os primeiros casos da doença, apresentados em forma de surto. Assim como acontece na maioria dos casos, as duas pacientes de Manaus apresentaram sintomatologia de rabdomiólise, mas, a princípio, não se identificou o fator de risco para a doença. No entanto, foi observado um ponto em comum: as duas haviam ingerido o mesmo peixe horas antes do início dos sintomas.
A partir daí, teve início uma investigação nos hospitais de Manaus, resultando na identificação de um total de 27 casos, o que ficou registrado como “a primeira descrição da doença no continente Sul Americano”[iii]. O detalhe é que todos os pacientes haviam consumido peixes de água doce comumente utilizados pela população. E os peixes foram cozidos, assados ou fritos: Pacu (Mylossoma duriventre), Tambaqui (Colossoma macropomum) e/ou Pirapitinga (Piaractus brachypomus).
Nos EUA
Em uma revisão[iv] de surtos ocorridos entre 1984-2014, nos Estados Unidos, foram relatados 26 casos, com ocorrências na primavera-verão. Constatou-se que 58% ocorreram após o consumo do peixe búfalo (Ictiobus cyprinellus), uma espécie de água doce, que foi consumido na forma cozida. Em outros casos (n=9), o consumo foi de um crustáceo, conhecido como crayfish (lagostim, da espécie Procambarus clarkii) e de salmão do Atlântico (n=2). A maioria dos casos (n= 18) ocorreu na Califórnia e Louisiana.
Uma forte candidata à causadora dos sintomas decorrentes da ingestão de peixes marinhos, tem sido a palitoxina, já encontrada em alguns peixes. Essa toxina é um vasoconstritor intenso, considerada uma das substâncias não proteicas mais venenosas conhecidas, e que já foi isolada de um tipo de coral do gênero Palythoa. No entanto, há especulações sobre outras origens – como bactérias ou, ainda, de que seja biossintetizada por algas unicelulares e flageladas que vivem na zona bentônica.
Em todos os surtos registrados, peixes e crustáceos estavam cozidos ou assados, o que leva à certeza de que a toxina que provoca a doença é termoestável. O autor da revisão concluiu que, nos surtos citados, pode ter ocorrido “bioacumulação de uma nova miotoxina oriunda de algas de água doce e/ou salobra/salgada, similar à palitoxina”.
Em outra publicação, os autores descrevem dois casos de fraqueza muscular e rabdomiólise que ocorreram nos EUA, em 2007 e 2016, após os pacientes terem comido, respectivamente, Salmão do Atlântico e Carpa capim. No caso da Carpa, os autores disseram que, embora não haja confirmação, foi sugerido o nome de uma toxina possivelmente causadora – a cicutoxina – que seria produzida por uma planta chamada “veneno do castor” e que ocorre em áreas alagáveis. A hipótese seria de que os peixes podem consumir a toxina, que, por sua vez, pode ser liberada no organismo da pessoa que consome o peixe.
A cicutoxina também é estável ao calor e pode produzir rabdomiólise, podendo ser responsável pelos sintomas da doença de Haff. E concluem: “Mais pesquisas são necessárias para identificar a toxina. Nossos dois pacientes haviam comido o mesmo tipo de peixe antes desse incidente, indicando que o fator causal não é apenas a espécie de peixe, mas se o peixe consumiu a toxina antes de ser cozido”.
Na China
Embora os primeiros registros de surto da doença, na China, sejam de 2000, houve um grande surto ao longo do rio Yangtze, na província Anhui, entre junho e agosto de 2016. Dos 672 casos identificados, 560 (83,8%) ocorreram em apenas duas cidades (Wuhu e Ma’anshan), tendo sido registrados mais de 200 casos em um único dia. O lagostim (Procambarus clarkii), relatado em todos os casos, foi identificado como o vetor principal. Detalhada pesquisa foi realizada, incluindo grupo controle, onde foi possível verificar que aumentaram os riscos para a doença naquelas pessoas que ingeriram o fígado do crustáceo ou maior quantidade da carne.
Os estudos mostram um padrão sazonal (verão e outono) e, embora haja registro, na China, de um surto, em 2009, provocado pela ingestão do que eles chamam Pomfret de água doce (Colossoma brachypomum), também neste caso houve associação com o consumo do lagostim.
Diversos estudos toxicológicos e análises químicas foram conduzidos em pesquisas efetuadas na China, tendo sido analisadas amostras dos animais, da água e do solo dos locais onde o pescado foi capturado, mas, os resultados foram negativos ou abaixo do limite de toxicidade. Os animais envolvidos nos casos estudados têm em comum hábito alimentar onívoro e se alimentam no fundo dos ambientes em que vivem, sendo, portanto, potenciais acumuladores de toxinas do ambiente. Entretanto, sugestões de que a etiologia possa incluir arsênico ou palitoxina permanecem sem confirmação, afirmam.
Necessidade de estudos
Enquanto não forem envidados esforços para esclarecer as causas da doença, continuaremos nos surpreendendo com os surtos e com as desinformações decorrentes. Por exemplo, a informação de que o peixe ingerido pode não ter sido bem cozido, ou ter sido mal manuseado, ou ter vindo de ambientes contaminados. Todas essas observações são válidas para o consumo de qualquer alimento. No entanto, vale ressaltar que, nos casos registrados da doença de Haff, a síndrome de rabdomiólise não foi desencadeada por infecção.
E agora?
Contudo, estamos aqui, 82 anos depois da recomendação de Z.J. Bruno, constatando que as informações sobre o que causa a doença, até agora, são suposições. Não há casos de endemismo da doença em qualquer área, nem de uma determinada espécie de peixe eleita como a causadora dos sintomas. Estudos controlados comprovaram que não é a carne do pescado que provoca os sintomas, mas sim, alguma substância do ambiente, que ficou acumulada nos músculos do animal que serviu de alimento para humanos.
Por outro lado, considerando que peixes, crustáceos e moluscos são componentes da dieta de muitas pessoas, notadamente das populações humanas que vivem da pesca artesanal, são necessários esforços e recursos para estes estudos.
Recomendação
Havendo sintomas ou suspeitas da doença de Haff, as recomendações médicas são para que as pessoas entrem em contato com os Centros de Controle e Prevenção de Doenças e, se possível, consigam restos dos peixes consumidos ou daqueles ainda armazenados, que podem ser enviados para análise laboratorial.
[i] MARQUES, B.A.; COSTA, G.A.; BENTES, A.A. Mialgia aguda epidêmica. Boletim Científico da Sociedade Mineira de Pediatria, v. 4, n. 46, maio 2017.
[ii] https://diariodonordeste.verdesmares.com.br/metro/doenca-rara-tem-novos-casos-1.2009199
[iii] Disponível em: https://www.researchgate.net/publication/41166698_Outbreak_of_Haff_Disease_in_the_Brazilian_Amazon. Acesso em: 24 fev 2021.
[iv] DIAZ, James. Don´t be half-educated about Haff disease in Louisiana. J La State Med. Soc., v. 167, n.1, p. 6-10, 2015.
4 Comentários
Mas que situação! Ao comer peixe vamos nos perguntar se o animal andou se metendo com toxinas. Ninguém merece… Pesquisas no Brasil de Bolsonaro? Complicou!
Pois é, amiga. Cada dia nos surpreendemos com o que a natureza tem a nos ensinar. E os obstáculos se somam exigindo, de todos e todas, determinação e responsabilidade para enfrentá-los, cada um(a) fazendo a sua parte sem “soltar a mão de ninguém”.
Prezada Fátima, parabéns pela matéria! Muito esclarecedora a luz do conhecimento científico e diante das incertezas da ciência! Sigamos. Grande abraço.
Cara Maria do Carmo, o tema é interessante. A situação nos põe em contato, mais uma vez com um fato inusitado, no qual a natureza desafia a ação dos homens. Há inúmeros papers mostrando esforços já realizados por pesquisadores, principalmente na China, buscando uma resposta – qual a toxina que provoca os sintomas? Nenhum conseguiu responder. O que há, até o momento, são suposições. Não postei aqui todas as referências bibliográficas para não ficar cansativo, mas estou preparando um texto mais completo para atender à solicitação da Associação dos Engenheiros de Pesca de Pernambuco, onde vou citar as referências mais interessantes e que poderão inspirar pesquisadores da área. Grata pelo feedback.