sexta-feira 22 de novembro de 2024

‘A música da alma’ – uma extraordinária crônica de Rubem Alves

A gente quer que os poemas sejam lidos de novo, ainda que os saibamos de cor: a alma relê o poema, e ele fica vivo novamente, apossa-se do seu corpo, faz amor com ele, provoca riso, choro, alegria

26 de março de 2021 10:05 por Rubem Alves

Angelus Silesius (1624-1677), místico que só escrevia poesia, disse o seguinte: “Temos dois olhos. Com um contemplamos as coisas do tempo, efêmeras, que desaparecem. Com o outro contemplamos as coisas da alma, eternas, que permanecem”. Eis aí um bom início para compreender os mistérios do olhar. Para entender os mistérios do ouvir, eu escrevo uma variação: “Temos dois ouvidos. Com um escutamos os ruídos do tempo, passageiros, que desaparecem. Com o outro ouvimos a música da alma, eterna, que permanece”.

A alma nada sabe sobre a história, o encadeamento dos eventos que acontecem uma vez e nunca mais se repetem. Na história, a vida está enterrada no “nunca mais”. A alma, ao contrário, é o lugar onde o que estava morto volta a viver. Os poemas não são seres da história. Se eles pertencessem à história, uma vez lidos nunca mais seriam lidos: ficariam guardados no limbo do “nunca mais”.

Mas a alma não conhece o “nunca mais”. Ela toma o poema, escrito há muito tempo, no tempo da história (escrito no tempo da história, sim, mas sem pertencer à história), ela o lê, e ele fica vivo de novo: apossa-se do seu corpo, faz amor com ele, provoca riso, choro, alegria. A gente quer que os poemas sejam lidos de novo, ainda que os saibamos de cor, tantas foram as vezes que os lemos.

A gente quer que os poemas sejam lidos de novo, ainda que os saibamos de cor: a alma relê o poema, e ele fica vivo novamente, apossa-se do seu corpo, faz amor com ele, provoca riso, choro, alegria

Como as estórias infantis, irmãs dos poemas. As crianças querem ouvi-las de novo, do mesmo jeito. Se o leitor tenta introduzir variações, a criança logo protesta: “Não é assim”. Nisso se encontra minha briga com os gramáticos que fazem os dicionários: eles mataram a palavra “estória”. Agora só existe a palavra “história”. Frequentemente, os sabedores da anatomia das palavras ignoram a alma das palavras. Guimarães Rosa inicia “Tutaméia” com esta afirmação: “A estória não quer ser história. A estória, em rigor, deve ser contra a História”.

Um revisor responsável, ao se defrontar com esse texto, tendo nas mãos a autoridade do dicionário, se apressaria a corrigir: “A história não quer ser história. A história, em rigor, dever ser contra a História”. Puro nonsense. Mas aconteceu com um texto meu que, pela combinação da diligência do revisor com a minha preguiça (não reli suas correções), ficou arruinado. Escrevi essas palavras à guisa de uma explicação “a posteriori” para uma cena da minha vida acontecida há muitos anos, que vi de novo com meu segundo olho há poucos minutos. Também a ouvi com meu segundo ouvido, porque nela havia música. Veio-me no seu frescor original. Não havia tempo algum entre o seu acontecimento no passado e o seu acontecimento há pouco. As mesmas emoções.

Não. Corrijo-me. A sua beleza estava mais bela ainda, perfumada pela saudade. Entendo melhor o que escreveu Octavio Paz: “Parece que nos recordamos e quereríamos voltar para lá, para esse lugar onde as coisas são sempre assim, banhadas por uma luz antiquíssima e ao mesmo tempo acabada de nascer. Um sopro nos golpeia a fronte. Estamos encantados. Adivinhamos que somos de outro mundo. É a “vida anterior” que retorna”. Sim, algo da minha vida anterior retornou como um sopro a me golpear a fronte.

A cena é assim -quase escrevi “foi assim”, corrigi-me a tempo: as cenas da alma não têm passado, elas acontecem sempre no presente. Eu e o meu filho de três anos estamos na sala de estar da nossa casa. Só nós dois. Havíamos terminado de jantar. No sofá, sua cabeça está deitada no meu colo. É a hora de contar estórias, antes de dormir. Aí ele me diz: “Papai, põe o disco do violão”. Levanto-me e pego o disco. Tomando toda a capa, a figura de um violino. Mozart. Ponho a peça que ele mais ama, “Uma Pequena Serenata”. É impossível não amar a pequena serenata. Quem poderia resistir à tentação de voar que ela produz?

Pode ser que o corpo não voe. Mas a alma voa. Ouvir “Uma Pequena Serenata” é uma felicidade. (Note que a pequena serenata é inútil. Não serve para nada. Ela é uma criatura da “caixa dos brinquedos”, lugar da alegria.)

Quando eu me esforçava por exercer a arte da psicanálise, ouvi de uma paciente: “Estou angustiada. Não tenho tempo para educar minha filha”. Psicanalista heterodoxo que eu era, não fiz o que meu ofício dizia que eu deveria fazer. Não me meti a analisar seus sentimentos de culpa. Apenas disse: “Eu nunca eduquei meus filhos”. Ela ficou perplexa. Desentendeu. Expliquei, então: “Eu nunca eduquei meus filhos. Só vivi com eles”.

Ali, naquela noite, não me passava pela cabeça que estivesse educando meu filho. Eu só estava partilhando com ele um momento de beleza e felicidade. E se Adélia Prado está certa, se “aquilo que a memória amou fica eterno”, sei que aquela cena está eternamente na alma do meu filho, muito embora ele tenha crescido e já esteja com cabelos brancos. Parte da alma dele é “Uma Pequena Serenata”, o disco do violão. E por isso, por causa da pequena serenata, ele ficou mais bonito.

Rubem Alves em sua coluna “Sabor do saber”. in: Folha de S. Paulo. 22 de fev de 2005.

Fonte: Revista Prosa Verso e Arte

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