sexta-feira 29 de março de 2024

A Câmara de horrores e as fragilidades de uma  democracia mambembe.

Em 1955, a Câmara dos Deputados e o Senado Federal aprovaram, em sessões separadas, o impedimento do presidente Café Filho, sem abrir-lhe processo. Simplesmente declararam, mediante Resolução, que o presidente, afastado para tratamento de saúde, não reunia condições para reassumir a presidência da República.

14 de maio de 2021 1:32 por Roberto Amaral

Presidente Café Filho. Acervo O Globo

 

Em artigos anteriores, e em outros textos, tenho discutido a singularidade dos  golpes de Estado “constitucionais” ou simplesmente “legais”, nos quais o Brasil se especializou. Refiro-me àquelas alterações de poder levadas a cabo sem a condicionante clássica de fratura no império formal do direito dominante. Ao contrário, as alterações desse tipo se concluem “nos termos da lei”, sob a vigilância dos juristas orgânicos do sistema. O gênero golpe de Estado, portanto, não constitui monopólio dos Executivos, nem requer o prévio desfile de tanques, embora jamais conheça o bom êxito quando não dispõe do beneplácito dos fardados. Fora das ruas e dos quartéis, os golpes são gestados e concluídos nos palácios dos poderes civis. Golpes desse gênero se dão pelas mãos do Congresso ou do Judiciário, ou pela conjunção dos dois poderes, de que serve de exemplo a deposição de Dilma Rousseff. Lembro, a propósito, que a sessão do Senado Federal transformado em Tribunal que “julgou” a ex-presidente foi dirigida pelo então ministro Ricardo Lewandowski, então presidente do Supremo Tribunal Federal, nossa mais alta Corte, cume do poder dos homens e mulheres de beca preta. Foi uma série de decisões do STF (a vedação da posse de Lula na Casa Civil, a denegação de habeas corpus, que lhe valeu a prisão e o impedimento de disputar as eleições etc.) que abriu caminho para a ação parlamentar golpista, e na sequência a eleição do capitão, para a qual foi decisivo o papel de um juiz de primeiro piso, malfeitor do direito.

Não se tratam, porém, de fatos isolados.

Em 1955, a Câmara dos Deputados e o Senado Federal aprovaram, em sessões separadas, o impedimento do presidente Café Filho, sem abrir-lhe processo. Simplesmente declararam, mediante Resolução, que o presidente, afastado para tratamento de saúde, não reunia condições para reassumir a presidência da República. Vago o posto, assumiu o vice-presidente do Senado, Nereu Ramos, como mandava a Constituição. Chamado a julgar habeas corpus interposto pelo presidente impedido de exercer o cargo, o Supremo declarou que falara por todos a força do  direito emanado de uma insurreição armada. Referia-se ao golpe-contragolpe do marechal Lott, ministro da Guerra, cujo objetivo era, em suas palavras, ao colocar as tropas da Vila Militar nas ruas e cercar o Palácio do Catete, repor o país “aos quadros constitucionais vigentes”.

O Congresso é useiro e vezeiro na construção dessa sorte de golpes. Em 1961, acionado pelas baionetas e tanques do general Odílio Denys, então ministro da Guerra e líder da intentona militar que vetava a posse do vice-presidente João Goulart, reformou o regime e, em horas, transformou em parlamentarismo de fancaria o presidencialismo que vinha de 1889. Para não prosseguirmos nesse arrolar de casuísmos legislativos, sempre comandados pelo viés antidemocrático, lembro o golpe de 1964, que encontrou as portas abertas pelo presidente do Congresso Nacional, o senador Auro de Moura Andrade, que, pusilamimente,  declarou vaga a presidência da República, quando o presidente João Goulart se encontrava em Porto Alegre. A sequência de atos desprimorosos parecia não ter fim: os militares tomam o poder civil e o presidente do STF, ministro Ribeiro da Costa, que na sequência melhoria sua biografia, saúda, em nome da Casa, a violência institucional que dava por fim a democracia de 1946, e mais tarde, num ato de força, alteraria a composição do próprio STF.

Ainda nesse 1964, acuado, com grande número de seus membros cassados, outros ameaçados, o país ocupado militarmente, o Congresso se reúne para eleger o primeiro ditador da série do mandarinato militar, segundo as regras dos novos príncipes. A subserviência de nada lhe valeu, pois várias vezes foi mutilado em sua composição, teve seus poderes ceifados e várias vezes foi posto em recesso.
Quando este artigo estiver sendo lido, possivelmente não teremos mais democracia digna deste nome, porque não teremos mais Poder Legislativo, pois não há democracia onde não há Parlamento, e não há Parlamento quando é retirado da minoria o direito de participar do processo legislativo, como tratam de fazer os senhores Arthur Lira e Marcelo Ramos, com largo apoio da maioria governista.

Este, porém, é mais um perigoso passo dado pelo Congresso na sua caminhada autofágica na direção do autoritarismo; mais dissabores devem vir, pois até novembro as duas casas implantarão uma “reforma política” solicitada pelo “Centrão”, e serão alteradas as condições de propaganda política, com vistas às eleições de 2022. Nada será evitado na caminhada que visa a impedir a alternância de poder.

O Congresso Nacional de há muito deixa a desejar. A atual legislatura simplesmente dá continuidade aos absurdos que devemos à regência de Eduardo Cunha, o capo cassado e  processado por corrupção. Pois deve-se ao Congresso passado, entre outros crimes contra o país, o tal “teto de gastos” que coarta nosso desenvolvimento, para o gáudio dos neoliberais ensandecidos. O Congresso de hoje, Câmara dos Deputados à frente, é o braço legal do bolsonarismo, atendendo-o no seu afã reacionário, obscurantista, antipopular, antinacional e antidemocrático. Suicida, empresta vestes legais ao autoritarismo a caminho da ditadura. Neste sentido, sem dispor de poder constituinte, vem, sistematicamente, demolindo a ordem constitucional de 1988, revogando princípios e normas, pondo por terra o pacto político que nos trouxe até aqui. Tudo “dentro da lei”, embora possa estar contra o direito.

Deputado Eduardo Cunha. Foto: Fábio Rodrigues Pozzebom/Agência Brasil

Rebento tardio do pior da política alagoana, trazido às luzes pela chaga do bolsonarismo, o atual presidente da Câmara dos Deputados se esmera na faina autoritária; ao tempo em que serve ao chefe a quem deve sua ascensão ao posto, financiada com recursos públicos que começam a ser revelados (“Esquema do governo destina R$ 3 bilhões em emendas para auxiliar base no Congresso”. Estadão. 9/5/2021; “Torneira aberta das emendas corróis discurso de Bolsonaro”. Folha de S. Paulo, 12/5/2021),  comanda na Câmara o silenciamento da minoria, para que o poder legislativo, amordaçado, sirva melhor aos senhores de hoje.

No momento em que escrevo chega o anúncio de que foi aprovado o pedido de urgência para a votação (e, diga-se logo, para a aprovação) da proposta de reforma do Regimento Interno da Câmara dos Deputados (PRC nº 84/2021). A votação deverá efetivar-se entre quarta e quinta-feira, quando então poderemos ouvir o réquiem da democracia fundada na teoria montesquiana dos três poderes, pois um deles não haverá mais, curvado à prepotência do Executivo, aquele que inescrupulosamente controla o erário e dispõe do concurso das baionetas e tanques.

O projeto de reforma regimental, liderado pelo presidente da Câmara, mas apoiado por partidos como o MDB e o PSDB, pretende que o diálogo democrático, de que se alimentam as democracias dignas do nome, se transforme num monólogo da maioria comprada e bem cevada. Seu objetivo é impedir a existência da minoria, o sonho de todo candidato a déspota.

O projeto da maioria reduzirá o tempo destinado ao encaminhamento de votações em plenário; capará o tempo destinado às sessões não deliberativas, reduzindo assim o espaço para o debate, em uma casa que se destina ao confronto político. E assim segue o projeto em seu diapasão autoritário. O mais grave atentado é aquele que se efetivará com o fim dos limites temporais para as sessões deliberativas, fazendo com que elas sejam mantidas indefinidamente, segundo o arbítrio do presidente de ocasião, monitorado pelo planalto, até que a pauta seja vencida. Com tal medida, o projeto cava a sepultura de um dos mais sagrados direitos da oposição em qualquer plenário, que é o exercício da obstrução. Trata-se de grave agressão ao direito de as minorias exercerem seu papel de oposição, dever que lhe foi mandatado por parcela da soberania popular, que, assim, fica sem representação.

Não satisfeito com tanto rigor antidemocrático, o  relator do projeto ainda quer que as orientações de bancada não possam, ser feitas antes da votação, que pretendem encaminhar, como é  atualmente aqui e em todos os parlamentos do mundo.   Assim, os líderes da minoria perdem uma oportunidade de, com argumentos, convencer deputados oponentes a mudar de voto – o que é sempre admissível, numa democracia funcional.

Lamentavelmente, porém, não se encerra neste ponto a devastação com a qual nos ameaça a Câmara dos Deputados. Outra já se apronta. Previsto para votação ainda nesta triste semana está o relatório de um deputado (do mesmo PP de Lira) que dispensa da obrigatoriedade de licenciamento, entre outros, projetos de pecuária semi-intensiva, projetos de estações de tratamento de água e esgotos e a construção de usinas de triagem de resíduos sólidos. Levantam-se os paus da porteira pela qual o ainda ministro do meio ambiente pretende fazer “passar a boiada” da destruição ambiental.

A oposição parlamentar  quase nada pode fazer: são pouco mais de 100 deputadas e deputados, num colégio de 513 parlamentares. Podem protestar, reclamar, denunciar. E mesmo esse direito (que é um dever diante da cidadania) o “centrão” lhe está retirando.

Um ponto a destacar, sobre amordaçamento da oposição na Câmara, é que ele (como os golpes aos quais me refiro no início deste texto) está sendo feito sem qualquer ruptura da legalidade, pelo contrário, seguindo os chamados ritos procedimentais. Se o nosso horizonte for a institucionalidade liberal, não há do que reclamar.

Penso que está na hora de os partidos da oposição de esquerda discutirem qual é, nas circunstâncias, o papel mais consequente de seus deputados e senadores, no parlamento e fora dele. Inclino-me mesmo a sugerir que o papel mais relevante  pode estar fora das casas do Congresso, na sociedade, nos sindicatos e nas demais organizações populares, exercendo o embate ideológico (abandonado, com os prejuízos conhecidos, em prol do eleitoralismo) e a organização popular, relegada a segundo plano pela irresistível atração dos gabinetes.

Roberto Amaral é escritor e ex-ministro de Ciência e Tecnologia

 

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