20 de maio de 2021 8:20 por Geraldo de Majella
Texto produzido pelo Coretfal
Querido Godoy, cá estamos juntos, mais uma vez e de outra forma. Foram décadas de convivência e grandes aventuras pelo mundo. Cantando por todos os cantos, rindo da mesma piada, dividindo o café da manhã, às vezes, improvisado. Foram tantas partituras e tantos trajes e tanto frio na barriga, antes de entrar no palco. Foram esforços e cansaços pelas longas viagens e o coração esquentando pelos aplausos. Foram os carões das maestrinas Maria Augusta e Fátima Menezes, por nossas mancadas e, ao mesmo tempo, a visão mágica da regência elegante e entusiasmada.
Mas hoje, Godoy, estamos muito tristes, menino. Não dava pra adiar esta partida precoce? Pedimos tanto a você que reagisse, resistisse. Havia até a hashtag #reageGodoy! Tentamos usar todo poder de persuasão, junto ao Criador. Rogamos a todos os santos, com todos os ritos. Desafiamos o Altíssimo, perguntando, atordoados e atônitos: pra que essa pressa em subtrair de nós uma linda fonte de alegria, talento e loucura? Já estamos tão desfalcados de vida, de compaixão, de amor ao próximo, nesses dias sombrios, pra que aprofundar esse abismo?
No entanto, quem somos nós em relação aos mistérios da vida, aos desígnios insondáveis do destino? Somos tão menores que nossas dúvidas e certezas, não é? E, pensando bem, você não ia querer nos ver desolados, sem esperança, sem música. Principalmente sem música e sem alegria.
Então, logo vem você, apaziguando, pedindo calma. Sim, apesar de todo o alvoroço juvenil, você sempre foi conciliador, capaz de perdoar ofensas e deslizes alheios, talvez pelo anseio de ver todas as situações em seus supostos devidos lugares e os protagonistas gozando da mais doce satisfação. Era assim mesmo: nada de rusgas que durassem mais de um par de horas; nada de se ausentar da cena deixando alguém magoado, entristecido por palavra ou gesto seu. Nem pensar! Ficaria o dia inteiro remoendo, se sentindo culpado, querendo acabar com qualquer dissabor. Assim, o rancor se dissipava e cedia lugar a convites tentadores para novas aventuras, cheias de promessas nem sempre cumpridas, mas que sempre divertiam e aconchegavam seus queridos.
De repente, você protagonizava performances com perucas ruivas, em nosso ônibus de viagem, lembra? Irreverência? Sim, nada demais, apenas um artista seguindo seu curso. E surgia um leque feito de notas de 50 reais, abrandando o calor de Porto Alegre. Ostentação? Não, apenas uma forma de expressar que nossa companhia e a música eram muito mais importantes que notas frescas, recém-saídas do caixa eletrônico. De repente, a aprovação em um vestibular longe de casa, enquanto o Coretfal excursionava pelo sul do país. Novidade? Não, só uma inquietude que lhe fazia querer tudo-ao-mesmo-tempo-agora.
Era assim mesmo. Num belo domingo qualquer, nos buscava e íamos parar em algum interior, meio sem planos, só pelo prazer de estarmos juntos. Sabia, sabia demais! Falava com orgulho das mais de 40 aprovações em vestibulares diversos. Fazia longos discursos para explicar que o correto é “vou à casa” e não “para casa”. Nos desafiava, via WhatsApp, com questionários de língua portuguesa, empolgado por nossa participação. Dava sempre um jeito de manter contato. Saber como estávamos. Planejar uma visita. Era assim, sempre em velocidade máxima. Não parava por nada. A voz? Belíssima, apaixonada! Seu coração tinha espaço para várias ciências, mas talvez a música fosse sua maior paixão. Ou seria a língua portuguesa?
Em 2012, o Coretfal ensaiava um de seus mais belos espetáculos, o Baião de Dois – homenagem ao centenário de Luiz Gonzaga – quando você, com sua espontaneidade e irreverência, nos presenteou com uma cena “orgânica”, como diria nosso diretor do coração, René Guerra. A música era ABC do Sertão, em que Luiz Gonzaga celebrava o abecedário do “cabôco sertanejo”: “o jota é ji, o ele é lê. O esse é si, mas o erre tem nome de rê”. Coisas que os mais preocupados com a tal norma culta, na mesquinhez de quem não compreende o Brasil e seus diversos brasis, chamaria de errado. Você podia ser um craque em português – ô, se era! – mas também adorava distribuir seu conhecimento, com generosidade. Num show à parte, nos explicou que, segundo a normativa brasileira, etc., etc,, etc…. René gostou. Assim nasceu uma das cenas mais interessantes do espetáculo.
Você era sempre extravagante – porque não nasceu pra ser discreto e viver à sombra, afinal, é uma estrela. Organizava encontros regados a muita, mas muita comida e salamaleques engraçados. As portas de sua casa se abriam para nós, os convidados seletíssimos, sem distinção entre grupo A ou B. E sabíamos que era uma forma de nos inserir e contar sobre si e sobre a família – prioridade absoluta, para quem você sempre quis ser motivo de orgulho. Era também um atalho para nos homenagear e dizer o quanto apreciava ser membro desta trupe itinerante de cantores, dançadores e adoradores da arte, em geral, vulgo, Coretfal –, de membros presentes e ausentes que não se apartam uns dos outros. Você tinha orgulho de nós e nos exibia feito troféus que se ofertam, mutuamente.
Você emprestou sua voz e irreverência aos tenores, nos trouxe sorrisos, levou umas rebordosas. Criou bordões de que nunca esquecemos: “moço, pegou meu rostinho?” – só pra descontrair na hora das 300 fotos oficiais que precisávamos fazer nas viagens. E sempre que via um microfone dando sopa, durante a passagem de som, aproveitava: “Godoy lindo, lindo. Godoy lindo!”.
Você pulsou num ritmo intenso, num diapasão frenético de vida e partilha que deve seguir pelo universo afora. Afinal, é muito difícil estancar uma força da natureza, não é, não? Como acreditar que todo esse bom humor, esse turbilhão de amor, projetos e generosidade não nos mostrará mais seu “lindo rostinho”? Querido Godoy, dessa vez você não nos fez rir. Mas, como diria Cazuza, o nosso amor a gente sempre inventa.
1 Comentário
Lindo texto escrito por Gal e Ludmila Monteiro, que tão bem representou todos nós do Coretfal.
Godoi também foi meu aluno no curso de Francês da Uneal. A tristeza é grande, a saudade imensa. Siga em paz Edson Godoi! ?