sábado 27 de julho de 2024

O bom Pastor, ou uma memória de infância

7 de junho de 2021 10:19 por Edson Bezerra

O retiro do Bom Pastor é um convento situado na rua Virgínio de Campos, no bairro do Farol, onde eu, quando pequeno, vez por outra era para ali levado pela minha mãe, e, no mais das vezes, da Praça dos Martírios para lá, íamos quase sempre que a pé e, depois de subirmos pela Ladeira dos Martírios e na caminhada nos alongarmos até a Praça do Centenário, dali seguíamos pela Av. Fernandes Lima até dobrarmos pela rua (…), onde havia bangalôs elegantes, nos quais, por detrás dos muros baixos, os meus olhos de menino pobre, pelos jardins e salas, avistavam telescópios, bicicletas, velocípedes e outros objetos de desejos por coisas que eu não tinha.

Mas era uma grande alegria visitar o convento do Bom Pastor, e, por dentre as dezenas de internas, havia as freiras e, dentre muitas, havia duas que me ficariam na memória: a Madre Maria Xavier e a Madre Celina.

Se com as duas a minha mãe inteirava-se das coisas do sagrado, era no particular com a Madre Xavier que se dava a maior parte dos seus colóquios e orações, no entanto, eu não sabia se para a intimidade de seus colóquios contribuía a sua condição de cadeirante.

“A madre Xavier” — uma cadeirante — assim ficara, dizia-me minha mãe, em virtude da maldade de uma noviça, a qual, por pura maldade, fê-la cair de propósito fraturando a coluna. E isto, pontuava minha mãe, seria um segredo que morreria com ela, que por isto e também pelas penitências e rezas, a minha mãe, uma órfã outrora adotada por minha Avô Salviana, escolhera a Madre como uma segunda mãe, com o adendo de, além daquela maternidade adotada, ser ela uma santa!

Uma santa!! Dizia-me a minha mãe, e santa ou não, lembro-me dela com uma saudade atrelada de doçura. E, se por vezes, eu permanecia ali durante dezenas de minutos, horas, por outras, quando minha mãe estava nos entremeios de entrar nas intimidades de confissões, dizia-me delicadamente: meu filho, vá dar uma volta.

Ordenada a sentença, eu descia para um sitio que havia, e era um sítio com muitas árvores frutíferas, e havia as mangueiras, os cajueiros, jaqueiras, pitangueiras e outras tantas frondosas espalhadas, sob as quais se derramavam por dentre as quietudes e os cantos dos pássaros, o cocoricar das galinhas e os bandos de patos por entre uma vastidão de sombras. E, no meio do sítio, havia uma gruta com a imagem de Nossa Senhora e, diante da santa, uma construção de pedras cheia de água e repleta de peixinhos amarelos.

Lembro-me que, ao chegar na gruta, eu fechava os olhos e punha-me a rezar, e sabe-se lá quanto tempo eu ficava e o que pedia. E ali, naquele tempo, era um tempo em que eu buscava ser santo, e ali eu pensava nos mistérios de São Francisco de Assis e na história do lobo mau pelo santo amansado, e punha-me a pensar nos sofrimentos de Cristo na cruz pelos malvados, e, depois de muito pensar em Deus e na pureza dos santos e dos mistérios dos céus, eu mergulhando minha mão n’água na tentativa de brincar com os peixinhos, vez por outra olhava para a santa. Depois dali, cansado de, por dentre as árvores, ter corrido atrás das galinhas e patos, esquecido do tempo, de longe escutava uma voz: Edson, a tua mãe tá chamando, e triste, lá ia eu despedir-me da Madre, e no caminho de volta para casa, já ia ficando triste e com saudade daquele mundo.

Mas para ali eu sempre voltava e logo logo já estava eu de novo a visitar a Madre Celina e a Madre Xavier. E, entre os colóquios, invariavelmente havia os lanches regados a doces e queijos e também os pacotes de broas e de doces que as freiras faziam para vender. Havia ainda os santinhos, carinhosamente talhados em suas bordas, e eles eram lindos de se ver, pois havia o menino Jesus, a imagem de Nossa Senhora, ou ainda do Sagrado Coração de Jesus e de outros santos, arrodeados de anjos e repletos de auras.

Vez por outra, apareciam algumas noviças, e tanto elas quanto as freiras quando me elogiavam, eu ficava de cabeça baixa como se nada daquilo fosse comigo.

Depois, muitos anos depois, as visitas de minha mãe foram rareando, posto que a Madre Celina fora transferida para o Recife e em seguida morreria a Madre Xavier, e, a partir de então, as imagens e as memórias daquele lugar foram como que rareando até quase desaparecer, mas que, em mim, quase que a contrapelo, elas permaneceriam sempre enquanto fragmentos teimosos nos resíduos de memórias.

E durante os anos que roem o tempo, durante décadas, ao passar por aqueles arredores, naquele local, que, durante muito tempo sempre ter sido aquele uma geografia composta de pedras, bichos e verdes, com o avançar do tempo, eu, meio que distraído ao passar por ali, notava-o cada vez mais diminuto, pois, ano aqui, ano mais além, eu fui percebendo a sua fragmentação e enquadramento. E aos poucos e aos pedações, ele foi sendo fragmentado em um, dois, três e outras tantas partes, e eu ficava então a lembrar-me a quantas estava o vasto pomar daquele sítio e também da imagem da santa. Afinal, como estaria todo aquele mundo?

E os anos foram se tornando décadas e, durante décadas, eu passaria por ali, e a cada vez algo como que pulsava dentro de mim a perguntar: como estará aquilo lá? Haveria ainda o verde e a imagem da santa? E sempre que assim pensava, era a imagem de um todo o que me vinha, e se por vezes me acudia a antiga salinha dos colóquios entre as freiras e a minha mãe, por outras eram as frondosas árvores do pomar com as suas galinhas e patos e, sobretudo, a doce imagem da santa que me acudia, e também do meu rezar. E punha-me então a perguntar: Como estará tudo aquilo por dentro?

Durante anos e anos eu passaria por ali, mas, apesar do incômodo, eu postergava a adentrar-me ali até que um dia — na semana passada — eu resolvi visitá-lo, e, ao entrar, eu me procurei nos lugares de outrora. Primeiro, a sala de estar, um recanto aconchegante que ficava logo no lado esquerdo de quem entra, lugar dos colóquios e orações de minha mãe e as madres, e deparei-me com um espaço lacrado e, em seguida, pus-me a olhar na direção do portão por onde outrora eu me adentrava no sítio. Mas no lugar da porta, um tapume.

Irmã — perguntei — cadê o sítio e a gruta da Santa?

— A santa tá lá fora, meu filho, logo na entrada, e o sitio foi vendido já faz tempo, muito tempo!

Vendido! E fiquei meio que sem acreditar. E, então, pus-me a andar na direção a umas janelas de vidro, na esperança de, ao menos, olhar dali as ruinas e a solidão das fruteiras e as ruinas da gruta, mas nada da janela lacrada, não se podia transpor a vista pois estava tudo tapado. Senti um aperto na garganta e pus-me então a andar em círculos, como se assim eu pudesse reportar-me ao passado, mas era tudo solidão.

Desconsolado e triste, adentrei-me na capela e, ao lado de velhas freiras e das ladainhas dos terços, pus-me a rezar um pai nosso e recordar-me do passado, dos santinhos, das broas e das sorridentes meninas do antigo internato, nada me saía da cabeça. E também me acudiram as lembranças das correrias por dentre as folhas secas querendo pegar as galinhas, de, quando já cansado, chupar mangas e cajus e deitar-me sobre as folhas secas a contemplar o céu para além dos galhos. E quando dei por mim, algo estava molhado e triste, e ainda outra vez, na busca de concretude, aproximei-me de uma freira já bastante idosa e cadeirante, e perguntei:

— Há quanto tempo a senhora está aqui?

— Há muitos anos, meu filho, muitos anos.

‘ Olha, irmã, quando eu era pequeno vinha por aqui com a minha mãe, e havia duas freiras: a Madre Celina e a Madre Xavier.

— Ah, eu conheci, meu filho, eu era bem novinha e elas já estavam por aqui. A senhora se lembra bem delas? Indaguei.

— Muito pouco, meu filho, muito pouco, pois com a idade as coisas vão sumindo, sumindo…

E eu fiquei ali a ouvi-la e, com o passar dos minutos, eu fui revendo-me em sonhos e pus-me a recordar e a perguntar a mim mesmo: Onde estão todos vocês agora, onde está agora aquele antigo desejo louco de ser santo?

E estava ficando de noite, quando ao se aproximar da hora do Angelus, eu, mais uma vez fui rever-me com minha mãe e os meus. Com meu pai, em seu aparecer já velho, a lembrar-me de meu irmão, das minhas tias, e ali, mergulhado por dentre hinos e cantos evocados, eu pus-me a lembrar lá das bandas do Auto da Saudade, da preta Salviana nas beiradas da Praça dos Martírios, e pus-me então como que a pensar se aquilo tudo era saudade mesmo, ou se poderia ser um sonho de voltar a ser um pouco de mim mesmo. E, por entre as águas que aos poucos me chegavam, ao pôr-me como, que de esguelha, a sair, deixando-me sentir por dentre odores e ruinas, confuso e sem saber se eram elas que estavam ali ao redor e por dentre as paredes, ou se era algo dentro de mim a ruir sob o manto inelutável da saudade, quando dali me chegavam cantos:

O meu coração é só de Jesus

E a minha alegria é a santa cruz.

E eu pus-me a caminhar pelas ruas com uma saudade a girar em círculos:

No céu, no céu
Com minha mãe estarei,
No céu, no céu (…)

E assim, envolto em reminiscências, envolvi-me no indagar aos ventos na procura de encontrar, por dentre as ruas, o fugitivo rosto de minha mãe. E, então, por entre as águas que aos poucos me chegavam, ao pôr-me de esguelha a perambular, deixando-me enlaçar por dentre odores e ruinas, na sinestesia de não saber se eram os meus que estavam ali ao redor por dentre ou detrás daquelas paredes, ou se era algo dentro de mim a ruir sob o manto inelutável de uma imensa saudade de quando era puro e santo, e não acreditava na maldade do mundo.

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