23 de julho de 2021 8:41 por Vanderlei Tenório
A ser brevemente lançado, o livro histórico comemorativo dos 170 anos de fundação da Santa Casa de Misericórdia de Maceió (SCMM), a serem completados no mês de setembro próximo, é mais uma obra escrita pelo ensaísta alagoano Marcos Vasconcelos Filho.
Viçosense, pai da Maria Julia, esposo da Mayra, professor universitário, com título de doutorado, em instituições de ensino superior (inclusive na Ufal), docente fundador do curso de graduação em Medicina do Centro Universitário Cesmac, membro, entre outras associações congêneres, das academias Alagoana e Pernambucana de Letras e dos institutos históricos de Alagoas, Pernambuco e Bahia, pesquisador interdisciplinar, é autor de vários artigos e livros que versam, em sua maioria, sobre crítica literária, história das ideias, além de personagens e temas da terra caeté.
De sua bibliografia, destacamos os estudos (alguns premiados nacionalmente) das trajetórias e das obras do jurista Pontes de Miranda (1892-1979), do dicionarista Aurélio Buarque de Holanda (1910-1989), dos pensadores Tavares Bastos (1839-1875) e Octavio Brandão (1898-1980), do filólogo Mário Marroquim (1896-1975), do cardeal Avelar Brandão Vilela (1912-1986), dos legistas José Lages Filho (1910-1997) e Estácio de Lima (1897-1984), dos cientistas sociais Gilberto Freyre (1900-1987) e Manuel Diégues Júnior (1912-1991) e dos críticos José Guilherme Merquior (1941-1991) e Antonio Candido (1918-2017).
O nosso entrevistado, que já havia publicado em 2012 uma memória histórico-administrativa do Arquivo Público de Alagoas, órgão estadual que reestruturou entre 2011 e 2015 como diretor-geral, fala-nos agora um pouco de seu mais novo produto, fruto de seu contínuo, incansável e apaixonado trabalho de pesquisa.
082 Notícias — A Santa Casa de Misericórdia de Maceió foi importante no passado e continua sendo atualmente. Qual o significado histórico da sua obra, que certamente não será referência apenas para a medicina alagoana?
Marcos Vasconcelos Filho — É um contentamento poder falar, em breves linhas, sobre este projeto. Agradeço, de saída, ao meu amado pai, Marcos sênior, que acompanhou com alegria todo o seu desenrolar, e aos amigos Sílvio Nascimento Melo, Antonio Noya e ao provedor Humberto Gomes de Melo, este que nos convidou para o desafio. O livro, dedico-o à minha filha Maria Julia, hoje com dois anos e meio, e que nasceu, por coincidência, na Unidade Farol da Santa Casa.
De fato, uma das preocupações de ordem metodológica do livro desde a sua concepção, quando do plano de trabalho, foi a de — mesmo reconhecendo a saliência do papel dos médicos (em especial, dos pioneiros e dos consolidadores) que compuseram e compõem o corpo clínico da instituição nesses 170 anos — fixar, ademais, o panorama das fundações das casas de misericórdia no mundo ocidental, os provedores e suas origens e participações sociais distintas, os capelães do pequenino templo sob orago de São Vicente de Paulo, o funcionário mais antigo no presente, o perfil dos usuários (do atendimento particular à cobertura por convênios e o defensável SUS), os serviços, a rica integração multiprofissional em defesa da saúde por fisioterapeutas, assistentes sociais, psicólogos, enfermeiros, nutricionistas, farmacêuticos e terapeutas ocupacionais, bem assim a estrutura organizacional da entidade, por meio das funções de suas gerências, assessorias, superintendências e diretorias técnicas.
Eu acredito que a obra venha a possuir, de forma complementar, ao menos mais umas duas significações. Primeiro, o resgate da memória local — traço mais óbvio; ao depois, a maneira como foi escrita — sob um tom mais informativo (uma vez que tenho preferido até aqui, em mais de vinte anos, a prosa derramada, justaposta e volteada [risos]) e focada na valorização das trajetórias, conforme redigi na introdução: “Em assuntos de método, acreditamos, piamente, naquela mensagem do velho jornalista baiano Jorge Calmon (1915-2006), irmão mais moço do renomado e aristocrático historiador: se ‘as casas também têm alma’, complementaríamos o terem em virtude de sua história haver sido construída por mãos humanas — o que explica, em parte, a incontornabilidade na emolduração dos principais representantes dos campos de atuação […]”.
Agora, um aperitivo: o capítulo 12 trata da internação e da intervenção cirúrgica numa perna por que passara Graciliano Ramos (1892-1953) na Santa Casa de Misericórdia de Maceió nos meses iniciais de 1932. Entretanto, o enfoque a se lançar é no sentido conjugado de apresentação, ao leitor, da presença (um traço evidente de universalidade proporcionada pela literatura ficcional) do antigo hospital de caridade em seus escritos — seja nos contos “O relógio do hospital” e “Paulo”, textos depois coletados em “Dois dedos” (1945) e em “Insônia” (1947), seja na prosa mais extensa do romance “Angústia” (1936) ou do testemunho póstumo “Memórias do cárcere” (1953).
Mais um tira-gosto (e lhe prometo ser a saideira [risos]): no derradeiro dos capítulos — o 13! —, abordo a primeira perícia das cabeças dos cangaceiros liderados por Lampião, mortos nos meados de 38. Elas foram justo examinadas na morgue da Santa Casa, pelo clínico e legista da equipe, o médico José Lages Filho (1910-1997) — aliás, personagem de um outro nosso livro, lançado em 2014, e que aproximaria, num nível de amigo, o especialista-mor no assunto pleno de imaginário, que é Frederico Pernambucano de Mello, ao autor, hoje seu colega de Academia Pernambucana de Letras e de Instituto Arqueológico, Histórico e Geográfico Pernambucano. Foi um apinhado de gente para ver aqueles despojos, então; e cujo flagrante foi congelado num instantâneo.
082 Notícias — Para o pesquisador, um dos dramas são os arquivos, pois nem sempre são bem cuidados. Quais foram as dificuldades encontradas para escrever o livro?
Marcos Vasconcelos Filho — Você tem razão. E eu registro, da mesma sorte, esse aspecto no trabalho.
Privilegiamos a entrevista direta, num primeiro momento, inclusive com visitas domiciliares. Éramos então presença já carimbada nos corredores do complexo hospitalar. Na quase totalidade das vezes, fomos recebidos pelos servidores de braços abertos, salvo os raríssimos casos daqueles que, ora por rixas, ora por insensibilidade, perderam o bonde da narrativa histórica e participaram, por conta disso, de maneira tímida do enredo.
Além desse aspecto, não foi nada fácil reconstruir os meandros desde a pedra fundamental até o 170º aniversário. Ao longo de muitas gestões de provedorias (mais de quarenta, reveladas uma a uma), quase nada sobrou do acervo da SCMM. Razão pela qual nos aproveitamos da nossa própria experiência de bibliófilos e pesquisadores interdisciplinares, de há muito experimentados em matéria de fontes primárias, com o fim de compensar a lacuna. A isso se somam a estruturação técnica e intelectual do querido Arquivo Público de Alagoas (APA) entre os meados de 2011 e o começo de 2015, quando de nossa direção-geral, e o aprendizado docente, como um dos seus mestres fundadores, no curso de graduação em Medicina (a terceira escola médica do estado alagoano) do Centro Universitário Cesmac, em meados de 2014.
Carinho particular dispensamos às ilustrações, por concebermos serem uma janela didaticamente empática de acesso à leitura entre documentos irmãos de modo algum desprezados (periódicos, livros, legislações, relatórios, estatísticas, sítios, coleções privadas, instituições públicas e até lápides de cemitérios) e que merecem estatuto de legitimação pela dura academia.
Basta que aqui eu cite a abertura, pela oportunidade primeira, do acervo da família Ib Gatto Falcão à minha pessoa para se ter uma ideia da dimensão e do rigor que desejamos emprestar sempre aos nossos ensaios. Todavia, sem que deixássemos de fora a procura por auxílio de documentos disponíveis em nosso Instituto Histórico e Geográfico de Alagoas (de que somos, com orgulho, o membro mais moço desde 2006), na Casa do Penedo (então dirigida pelo saudoso amigo e parceiro de ideal Francisco Alberto Sales), no Arquivo da Cúria Metropolitana de Maceió (personificado na figura de altruísta do médico e pesquisador apaixonado do temário “O clero nas Alagoas” Paulo Victor Diegues de Arecippo Júnior), no Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), na Fundação Biblioteca Nacional (FBN), e por aí segue.
082 Notícias — O que ainda resta dos projetos arquitetônicos iniciais da Santa Casa, como e quando foram modificados?
Marcos Vasconcelos Filho — Algo que sempre me inquietou enquanto estive pelos corredores da Santa Casa de Misericórdia com a finalidade de concretizar a escritura desse estudo é a avalanche de pequenas reestruturações — diárias! — a real impossibilidade de se preservar os traços arquitetônicos, em particular, e estéticos, no senso mais vasto dos conceitos, da matriz, de seus dois pavilhões (de cirurgia — o Domingos Leite — e de obstetrícia — a Maternidade Sampaio Marques), das casas contíguas das primevas enfermarias, do velho Hospital do Câncer à Dias Cabral, do antigo Hospital Infantil e da emergência.
Se nós nos lembrarmos que a Santa Casa, nos seus primeiros decênios, pelo menos até cerca de 1880, contava com apenas um andar, um médico, uns três cuidadores, um zelador, uns trinta leitos, três alas, um porteiro, um altar e até algum escravo, e hoje é um patrimônio com matriz e quatro unidades externas, duzentos e tantos setores, quase setecentos médicos em quatro dezenas de serviços, mais de quatrocentos e cinquenta leitos e um total de três mil e poucos colaboradores nas centenas de funções específicas, torna-se impossível uma preservação estrutural ante a sua modernização.
Evidencia-se a impossibilidade, destarte, de se atender àquela noção (aqui elastecida) de leitura contextualizada e estrutural de conteúdo dos “monumentos”, conforme as sugestões do fantástico Panofsky [Erwin Panofsky (1892-1968), crítico e historiador da arte alemão, 1892-1968]. Não deixa de ser uma pena, claro, pois ainda hoje flagramos, em andanças pelas suas alas, traços remanescentes de um tempo seu transato (pisos, janelas, portas, colunas e escadas) que, em vão, se vão: vãos de uma época, ecos e sombras diante da inevitabilidade das exigências da inovação e do conceito empresarial que pesam sobre qualquer pessoa jurídica que se queira competitiva, autossustentável, invejada, respeitável.
No livro, recordo uma das primeiras reformas: em 1901, portanto no raiar do século passado, um de seus provedores chamou o arquiteto italiano radicado nas Alagoas, Luigi Lucarini (1842-1907), e este reformou e ampliou completamente o primitivo edifício da Santa Casa, conferindo-lhe uma nova ala e uma fachada remodelada, quando é praticamente duplicado o tamanho do prédio, com o acréscimo, ainda, de um frontão triangular, com quatro pseudopilares no acesso de entrada pela escadaria externa, sendo esta mantida na sua originalidade.
082 Notícias — Qual a importância dos arquivos da Santa Casa de Maceió para a história de Alagoas?
Marcos Vasconcelos Filho — Bem, conforme eu mencionei acima, a SCMM não guardou o seu documentário mais antigo, salvo alguma coisa de cerca de meio século para cá, vale dizer, um terço de sua presença na comunidade. Consultei um ou outro livrão, caso não papéis avulsos, os quais catalogamos e estão entre os milhares de caixas do Arquivo Público Estadual. Nesses códices, encontramos alguns prontuários de pacientes datados dos começos do século passado, se não ofícios trocados com presidências provinciais e governos estaduais. Já imaginou a riqueza de detalhes se reuníssemos por completo fontes como essas nesse empenho de reconstituição de um passado não apenas organizacional, mas da saúde coletiva? Quais as técnicas de se valiam em seus contextos os profissionais de saúde para debelar os males? Que lições podemos tirar nos campos das administrações pública e hospitalar?
Para evitar uma teorização e complicar o troço, eu penso, numa ligeira resposta, que, sociologicamente, as instituições governam os indivíduos com grande força de influência — ou, para não ser radical e ortodoxo, ao menos elas nos guiam as condutas no mundo social e são, a um só tempo, uma forma de apreender a dinâmica da existência em sociedade. Daí que as suas dimensões ideológicas, jurídicas, religiosas, culturais, científicas, infraestruturais, tecnológicas, e até micro-históricas, caso bem apreendidas, nos servem de parâmetro crítico a fim de (re)pensarmos a formação social alagoana em algumas de suas virtudes (quiçá, muito poucas) e nos seus muitos traumas coletivos.