quarta-feira 4 de dezembro de 2024

O estranho e inapreensível homem que (também) comia com as mãos

13 de agosto de 2021 9:47 por Edson Bezerra

Para meu Pai, Manoel

Sentados ao redor da mesa, almoço ou jantar, geralmente eram cinco os comensais. Além do pai, mãe e dos dois filhos, ainda havia uma tia-Avó, somatório de almas, ao qual, se se voltasse alguns anos na cronologia do menino, também se acrescentaria à eles, uma outra tia-avó ainda mais gasta que a primeira.

Coisa estranha as vezes acontecia naquela mesa, posto que, a mãe, professora primária, sempre se esmerava em educar os filhos. Todavia, a diferença para com ela ficava por conta do Pai, logo ele, o Pai, que, vez por outra se punha a comer com as mãos.
Coisa estranha achava o menino ao ver o Pai abandonar garfo e faca, e, depois de tratar a mistura e amalgamar farinha, arroz e feijão, levar tudo à boca.

Mas, não era só nisto que se revelava a rusticidade daquele homem, posto que, todo ele era de um primitivismo gritante. Bastava prestar atenção sobre o seu trajar para logo se ver que, entre ele e o mundo, havia como que, uma espécie de estranhamento e uma diferença que não se somava. De cabelos negros penteados para trás, vestia quase sempre uma calça desbotada pelo tempo, e, se por acaso se fosse verificar a sola de seus sapatos, logo se notaria que, nos saltos, havia um mais gasto do que o outro, como se ele não conseguisse andar no alinhamento das ruas.

Todavia, o notar estas coisas pelo menino somente veio muito depois, quando, ao perceber o estranhamento entre aquele homem e o mundo, o menino às vezes fugia ao não querer se confundir com o Pai. No entanto, quando pequeno, não poderia ser diferente, visto que, o menino naquele tempo, – coisa que de resto ninguém nunca soube o porque – era mudo, e sem poder falar, nele ficavam sem vazar, os sonhos e os alvoroços do mundo.

Mas, em seu apreender o mundo, o menino não se sentia assim, posto que, antes, muito antes de se enquadrar no discernimento do tempo, havia entre o menino e o estranho homem, um aprendizado de vida que se multiplicava no entranhado do tempo. Dentre elas, todas as noites havia entre os dois um riacho, o menino e os peixes, e entre eles, o riacho, o menino e os peixes, a voz calorosa daquele homem. É que, o menino sendo mudo, e não podendo expressar o que lhe chegava e o que ele via por não falar, ele vivia a se sentir ilhado ao não poder compartilhar as coisas, e, ao contemplar a estrelas e ao tentar delas balbuciar o nome, ou das coisas que via, lá estava ele, o estranho-homem-pai a lhe apontar luas e os brilhos dos astros e isto, todas as noites, fosse noite de lua ou noite de breu, pois que, quando lua não havia no céu, o menino era posto no colo do Pai a se entranhar entre rios, meninos e peixes.

Não, não precisava falar, o Pai já sabia, e, quando o menino tateava em busca do livro lá estava o homem logo ali bem perto a lhe abrir o livro vermelho, e, lá vinham elas, estórias e mais estórias e todas as noites as mesmas estórias de um menino a se banhar em um rio de águas claras em meios aos peixes e de peixes que viravam meninos e meninos e peixes que falavam, e, lá estava o Pai sentado com o menino no colo.

Não fosse ali no quarto perto da hora de dormir, era na praça com o menino correndo atrás da lua, correndo e caindo atrás da Lua, quando o pai lhe segurava nos braços e o menino, ao ficar ainda mais perto da Lua, tão perto e quase tocando, se punha a balbuciar gritando e o estranho-homem-pai, ria e ria e era por dentre os risos e sorrisos e, somente parava de rir e largar o menino quando acendia o cigarro.

Quando, muito tempo depois e já grande e culto, o agora homem se punha a se lembrar do Pai, e, dentre um turbilhão de imagens, uma das mais fortes que lhe vinha, era a imagem daquele homem comendo com as mãos, e, no que ele, o menino-homem agora pensava, era que, aquelas – as imagens do estranho-homem a comer com as mãos – não eram imagens simples de se evocar, posto que, ao delas se recordar, tudo nele se misturava em lembranças de lua, de meninos, de peixes e de águas, posto que, – era o que ele sentia – o seu pulsar originário, desde sempre esteve ali naquele homem, pois, até aonde ele podia alcançar, as suas entranhas vinham dali, tudo advinha dali, como se, por um desatino do tempo, as águas que agora lhe brotavam nos olhos a se lembrar do Pai, eram as mesmas águas de quando ele, o menino mudo, escutava as palavras do Pai como se fossem sonhos.

E agora então, desde há muito ele se põe a divagar pensando: os sonhos vagam? Os sonhos andam? Os peixes correm? E, de onde me vêm então agora estas águas que não cessam, estes sonhos que se avolumam e, de onde vêm agora homens com os quais as vezes converso e falo e agora transformados em peixes?

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1 Comentário

  • Belo escrito, grande Edson. ???????

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