terça-feira 3 de dezembro de 2024

Resenha publicada hoje, 21, na coluna “Depois do Play”, do jornal O DIA

21 de agosto de 2021 11:15 por Mácleim Carneiro

NASCIMENTO NO XIRÊ
Apraz-me apreciar um trabalho, no qual é perceptível a realização conceitual. Em outras palavras, um trabalho artístico, sobretudo fonográfico, que foi pensado e gestado a partir de um conceito pré-definido. Gosto da ideia onde o conceito estabelece os parâmetros, de tal maneira que logo torna-se compreensível à primeira audição. ‘Força de Mulher’, segundo álbum da cantora e compositora alagoana Mel Nascimento, certamente, tem essas características bem evidentes. Embora, o ecletismo de ritmos e gêneros, que formata o repertório do álbum, possa parecer um tanto paradoxal. Porém, a questão conceitual vai além dessas peculiaridades. Até porque, como a própria Mel Nascimento já declarou, esse álbum é uma espécie de encadeamento do que ela vinha fazendo em seus projetos: “Sempre com três frentes em sua temática: a música autoral alagoana, a resistência negra e o empoderamento da mulher.”

Aos 13 anos, Mel Nascimento começou sua lida na seara da música, cantando em coros, como a Camerata Pró Música de Alagoas. Depois, enquanto conquistava o seu bacharelado em canto, foi vocalista de um grupo que teve uma trajetória bastante exitosa na cena aquariana, o grupo Malacada. Certamente, Mel Nascimento não é uma artista de queimar etapas e sabe da importância em criar musculatura musical, para que o desenvolvimento de sua arte não retroaja. Por isso, ela também atuou como backing vocal para vários artistas alagoanos, em gravações e shows. Assim, foi construindo sua trajetória, fazendo shows em nossa latitude e além fronteiras. Mel Nascimento impressiona pela forte postura cênica e potência vocal, cujo timbre intenso e singular está inteiramente ajustado ao repertório e ao discurso de suas inquietações musicais e sociais. Além disso, ela trafega em vários gêneros da música negra, que vão do samba ao funk, passando pelos ritmos de matizes africanas.

Evocação dos Orixás
‘Força de Mulher’ é um álbum bem representativo de todas essas potencialidades e características da artista alagoana, tendo como pano de fundo – que em vários momentos assume o protagonismo – o intenso discurso do empoderamento feminino e resistência das minorias pelas lutas sociais atávicas ao povo brasileiro! ‘Meu Zambelê’ (Toni Edson) abre o álbum batendo asas e voando com Juó e Macacauá, apresentando a tônica de toda negritude e força que permeiam esse trabalho. A começar pela introdução, nas convenções que se repetem várias vezes, como a avocar a atenção para algo que está para acontecer e requer foco. Expressões originárias do linguajar da nossa ancestralidade africana povoam a letra e nos reconecta com o que nos é embrionário, trazendo, à memória, palavras como: assuncê, supapo, aguacê, zambelê, saracuteia e encerrando com xirê, uma palavra iorubá, que significa roda ou dança utilizada para evocação dos Orixás. Portanto, nada mais apropriado para acender os trabalhos.

Sem dar fôlego ao ouvinte, ‘Força de Mulher’ (Arnaud Borges e Mel Nascimento), música que dá título ao álbum, tem em sua atmosfera rítmica um quê de calmaria, porém, como as que precedem tempestades, implícita na força dos atabaques e dos versos que dizem: “Luto com a força de Dandara / Com braços de mulher Quilombola / E trago na voz a luta / Que mostra minha força e minha cor.” Na sequência, ‘Meu Belo Mandacaru’ (Gustavo Gomes e Mirian Monte) põe os pés no Sertão nordestino e o arranjo na hibridez das distorções das guitarras, amalgamadas ao ritmo regional, numa globalização de gêneros tantas vezes experimentada por tantos. Embora estejamos abaixo da linha do equador e Cuba seja um pontinho acima dela, a salsa está bem ali, na faixa 4 ‘O Grito’ (May Honorato) e no dadivoso passeio em gêneros musicais, que esse trabalho proporciona!

Discursos Variados
Em ‘Negra Soul’ (Arielly Oliveira) chegamos à metade do repertório, composto de dez músicas. Para cada uma delas, praticamente, um compositor(a) diferente. Isso demonstra a diversidade e a coletividade desse trabalho, que, não por acaso, é fruto de um financiamento coletivo. É em ‘Negra Soul’ que o lugar de fala do empoderamento da mulher negra e sua ancestralidade se faz presente: “Minha cor, black do gueto soul / Sinta a África em ti, sinta a África em ti.” Aqui, o contrabaixista Misael Dantas, que assina a direção musical do álbum, firma sua participação como músico, num longo solo de contrabaixo, que termina em fad out. Daqui por diante, até chegar à última faixa do álbum, os discursos vão variando e também as preferências rítmicas, passando por uma grata surpresa em ‘Pagode de Canto de Parede’ (Telma Cesar), como se fora uma taieira estilizada, sem os tempos fortes do tambor, de letra inteligente e bem aos moldes da Telminha.

Diante de tantos lançamentos de músicas para boi dormir, pastéis de feira que não se sustentam em pé sem os modismos regurgitados, Força de Mulher, Mel Nascimento e o seu compromisso em reunir a maior quantidade possível de mulheres compositoras, revigora-nos a certeza de que a tal pós-modernidade oca jamais será hegemônica, e nos fiúza a convicção de que a fonte que gerou, por exemplo, Mestra Luiza Simões, Mestra Maria Benedita, Mestra Maria do Padeiro e Mestra Hilda não secará tão cedo! Ah, e para não parecer que eu sonegaria essa informação, esse álbum foi pré-selecionado para o Grammy Latino. Sinceramente, torço para o êxito nesse sentido, embora, soe para mim como o Oscar. Ou seja, não é sinônimo do que eu assistiria!

SERVIÇO
Força de Mulher, Mel Nascimento
Plataformas digitais: Spotfay, Deezer, YouTube, Apple Music, Amazon Music
Plataforma física: Em pencard, pelo fone 82 996141658
Preço: 30,00

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