25 de agosto de 2021 8:13 por Joao Marcos Carvalho
Primeiro capítulo
Na manhã de 25 de agosto de 1961, o povo brasileiro, entre estupefato e aturdido, tomava conhecimento, por meio das edições extras dos jornais impressos e do noticiário de rádio e televisão, que Jânio da Silva Quadros renunciara ao cargo de presidente da República, para o qual fora eleito em 3 de outubro do ano anterior.
O ato absolutamente inesperado por parte de um governante relativamente jovem que acendera à presidência com votação expressiva, serviu para avaliar o grau de maturidade da democracia brasileira, que não passa no teste, já que os ministros militares decidiram rasgar a Constituição ao vetar a posse de João Goulart (o Jango), sucessor legítimo do presidente demissionário.
Alegação: “o homem é um sindicalista de esquerda que poderá levar o país ao comunismo”, sentenciaram os golpistas fardados. Dessa forma, Jango, herdeiro político do trabalhista Getúlio Vargas, estava proscrito pelas forças que defendiam os interesses dos EUA no Brasil em tempos de Guerra Fria, quando o mundo se dividia entre áreas de influência do socialismo e capitalismo.
Com a intervenção golpista, o Brasil passou a viver momentos dramáticos que quase resultaram em guerra civil. De um lado, os defensores da legalidade, que exigiam que o vice-presidente tomasse posse no lugar do mandatário renunciante, conforme determinava a Constituição. Do outro, os que se dispunham a pisotear a Carta Magna para impedir que o substituto legal de Jânio assumisse seu lugar de direito.
Nos treze dias que se seguiram (25 de agosto a 7 de setembro), o fantasma da guerra fratricida pairou ameaçadora sobre a Nação. Enquanto em Brasília o Congresso Nacional empossava Reniere Mazzili, presidente da Câmara dos Deputados, como presidente interino da República, em Porto Alegre Leonel Brizola, governador do Rio Grande do Sul, assumiu a liderança da resistência armada pela posse de Jango, num episódio heroico que abortou o processo de ruptura institucional em marcha.
Entretanto, seis décadas depois da renúncia de JQ, os ataques ao regime democrático voltam com força (ou como farsa) a assombrar o povo brasileiro. O vilão do momento é Jair Bolsonaro, político medíocre, tosco e neofascista que, ao invés de governar, decidiu paralisar País com suas ameaças diárias às instituições da República com o claro objetivo de criar convulsão social suficiente para desestabilizar as próximas eleições, já que os mais renomados institutos de pesquisa preveem sua retumbante derrota nas urnas em 2020.
Retornando à crise de 1961, é fundamental lembrar que, naquela época, votava se separadamente para presidente e vice-presidente. Essa anomalia fez com que o candidato apoiado pela direita, Jânio Quadros, tivesse João Goulart (o Jango) – trabalhista que contou com o apoio das forças de esquerda – eleito como seu vice. Nascido em Campo Grande (MS) em 25 de janeiro de 1917, JQ migrou com a família para SP em 1930, onde fez carreira meteórica na política local. Entre 1948 e 1959 foi vereador, deputado estadual, prefeito da capital e governador do Estado.
Suas administrações foram marcadas pela aplicação de políticas conservadoras, tendo a vassoura como símbolo contra a corrupção, que prometia varrer. Folclórico e histriônico, Jânio notabilizou-se pela oratória contundente, pontilhada por sotaques que ele mesmo inventara. O figurino picaresco e amarfanhado completava o personagem, que se apresentava em público caprichando nas performances rocambolescas, desempenho que fez a alegria dos comediantes da época, que se esmeravam na disputa pela melhor imitação de quem consideravam “o maior ator brasileiro em atividade”, cujas interpretações sensacionalistas seduzia o eleitorado menos politizado.
Nas eleições de 1960, JQ teve Milton Campos (governador de MG entre 1947 e 51) como companheiro de chapa, em quanto seu principal concorrente, o marechal nacionalista Teixeira Lott, marchou com Jango, formando a chapa (PSD PTB).
Aberta as urnas, Jânio vence Lott por 48% dos votos, contra 32% dados ao adversário. Na outra ponta, Jango derrota Milton Campos. Assim, o “Homem da Vassoura” toma posse no governo da República em 31 de janeiro de 1961, substituindo o presidente Juscelino Kubitschek (1956-61). Jango, que já era vice de JK, segue no cargo.
Já nas primeiras semanas do novo governo, JQ causa confusão em sua base ideológica de direita ao lançar um pacote de medidas que ele chama de “saneamento moral da nação”, no qual consta a proibição de corridas de cavalo, brigas de galo, desfiles de misses com maiôs cavados e lança-perfume nos bailes de carnaval, ações respaldadas pelos conservadores.
Todavia, caminhando pela contramão da lógica esperada por seus aliados com relação à política externa, o presidente estimula abertamente o reatamento de relações diplomáticas com a China, União Soviética e demais países do bloco socialista, cortadas durante governo Dutra (1946-51). O fato causa profunda indignação em seus próprios aliados mais radicais, que defendiam um alinhamento automático com os Estados Unidos.
A ousadia inesperada fizera com que luzes amarelas fossem acesas pela direita, ressabiada e cada vez mais perplexa com a possível guinada à esquerda de Jânio, um político reconhecido, até aquela data, por seu anticomunismo compulsivo. A desconfiança dos direitistas de que JQ se bandeava cada vez mais para o socialismo, aumentaram consideravelmente quando ele recusou um convite de John Kennedy, presidente estadunidense, para que o Brasil participasse, com tropas, de uma invasão à Cuba com vistas a derrubar o regime comunista chefiado por Fidel Castro.
Opondo-se ao ataque à ilha caribenha, Jânio, por meio de documento escrito divulgado pela imprensa, informava: “O Brasil, reiterando sua decisão inabalável de defender neste continente e no mundo os princípios de autodeterminação dos povos de absoluto respeito à soberania das nações, manifesta a sua mais profunda apreensão pelos acontecimentos que se desenrolam em Cuba”, no caso a fracassada invasão da Baia dos Porcos pelos mercenários cubanos residentes em Miami, apoiados pelo governo Kennedy.
Se a base janista já estava com a pulga atrás da orelha com relação aos rumos “estranhos” que a política externa havia tomado, a concessão da Ordem Nacional do Mérito do Cruzeiro do Sul, a mais alta condecoração da República, ao revolucionário Ernesto Che Guevara, então ministro da Economia do governo cubano, causou pânico generalizado entre os apoiadores do presidente.
A reação mais contundente e imediata veio de Carlos Lacerda, da UDN, governador do antigo Estado da Guanabara, ligado ao governo dos EUA e protagonista do golpe de 1954, que acabou levando Getúlio Vargas ao suicídio, e das tentativas golpistas contra Juscelino Kubistchek em 1955, 56 e 59. Espantado com o suposto flerte de Jânio com a esquerda, Lacerda, em cerimônia pública, entrega, simbolicamente, a chave do Estado da Guanabara ao líder anticastrista Manoel Antônio de Verona, ação que praticamente selou sua ruptura com o chefe do governo.
Ainda dentro da conjuntura conturbada do ambíguo governo federal, em 23 de agosto, Pedroso Horta, ministro da Justiça de JQ, revela a Carlos Lacerda que o presidente tinha planos para decretar um estado de exceção, no bojo do qual pretendia fazer uma reforma constitucional, deixando, nas entrelinhas, que Jânio poderia fechar o Congresso Nacional, tornando-se ditador.
Ao confidenciar fato tão relevante a um golpista notório como Lacerda, Horta, ao que tudo indica, pretendia cooptar o governador para um golpe de estado.
Porém, a trama falhou quando Lacerda, através de entrevista coletiva concedida na noite de 24 de agosto (sétimo aniversário de morte de Getúlio Vargas), sacudiu a Nação ao revelar que o presidente Jânio Quadros, por meio de seu ministro da Justiça, o convidara para associar-se a ele num golpe de estado, proposta que Lacerda disse ter recusado “por abominar golpes”.
Durante a entrevista, o governador contou, em alto e bom som, que a missão que Jânio lhe reservara no esquema de assalto ao poder era a de convencer o ministro da Aeronáutica a aderir ao suposto golpe em curso, tendo em vista que, segundo fora informado por Horta, os ministros do Exército e Marinha já teriam concordado em romper com a legalidade em favor de Jânio.
Nesse quadro de crise política, deputados pedem, já na madrugada do dia 25, a convocação do ministro Pedroso Horta para esclarecer os fatos.
Por volta das seis da manhã, JQ toma conhecimento das denúncias de Lacerda à imprensa e chama Quintanilha Ribeiro, seu chefe da Casa Civil, a quem comunica que vai renunciar. Em ato contínuo, segue para palácio do Planalto, onde encontra o general Pedro Geraldo de Almeida, chefe do Gabinete Militar, de quem recebe a notícia segunda a qual um grupo notório de civis e militares estava preparando um manifesto em repúdio à política externa praticada pelo governo. Esse grupo, ainda segundo o general, também estava absolutamente inconformado com a condecoração nacional concedida a Che Guevara.
Às oito da manhã do dia 25, o presidente cumpre sua agenda comparecendo à solenidade do Dia do Soldado, na qual discursa em defesa de sua política externa, reafirmando seus compromissos com a ordem legal e repudiando as acusações de Lacerda.
De volta ao palácio, Jânio reúne seu ministério e reitera a renúncia, ignorando os apelos dos ministros militares para que seguisse no cargo. Como último ato de governo, o presidente redige e manda entregar no Congresso Nacional uma mensagem contendo as explicações para seu gesto. Nele, o mandatário demissionário diz, em resumo, que a causa de seu ato é culpa “das forças terríveis” que se levantaram contra ele, impedindo-o de governar. Mas não informa que forças seriam essas. Por volta das 10 horas, ainda do dia 25, JQ embarca em avião da FAB com destino à Base Aérea de Cumbica, em Guarulhos, SP. Lá, sob porre alcoólico, se reúne com os governadores Carvalho Pinto, de SP; Magalhães Pinto, de MG; Nei Braga, do PR e Mauro Borges, de GO, que tentam, sem sucesso, dissuadi-lo da renúncia.
No final da tarde daquele mesmo dia, em Brasília o deputado Ranieri Mazzilli, na condição de segundo na linha sucessória, toma posse como presidente da República provisório, uma vez que Jango, o vice, estava fora do País em missão oficial na China, articulada por Jânio.
Pesquisas históricas realizadas ao longo dos anos por renomados estudiosos daquele período, demonstram cabalmente que Jânio Quadros realmente convidara Lacerda para um golpe de estado. Entretanto, ao não aderir à trama palaciana, o governador da Guanabara obrigou, involuntariamente, Jânio a colocar em prática um “plano B”.
Pego de surpresa com a atitude Lacerda em botar a boca no trombone através da imprensa denunciando o golpe, Jânio – pelo que se depreende estudando os acontecimentos daquele dia – arquitetou nova tática. Ele deve ter avaliado que uma atitude radical como a renúncia de um presidente em início de mandato iria provocar uma comoção nacional com mesma amplitude gerada pelo suicídio de Getúlio Vargas, ocorrida sete anos antes. Tanto é verdade que sua carta-renúncia guarda clara similaridade com a carta-testamento deixada por Vargas, em 1954. Nessa esteira, Jânio acreditava que os ministros militares fossem reconduzi-lo ao poder, para o qual só aceitaria voltar com o Congresso Nacional dissolvido e com ele na condição de ditador respaldado pelo povo, que, imaginava, sairia às ruas em grandes manifestações para exigir sua volta ao palácio do Planalto.
Esse raciocínio estava amparado na certeza que Jânio tinha na tendência golpista de seus os ministros militares – Marechal Odílio Denis (Guerra), Almirante Silvio Heck (Marinha) e brigadeiro Grun Moss (Aeronáutica) – em impedir a posse de Jango, em viagem oficial à China comunista, uma armadilha previamente agendada e urdida pelo próprio Jânio como parte de seu “plano B”, cuja intenção era incompatibilizar seu vice-presidente com a ala anticomunista militar, representada por seus ministros fardados, que também incluía o então general Cordeiro de Farias, chefe do Estado Maior das Forças Armadas, o qual, em depoimento à Fundação Getúlio Vargas no final dos anos 70, disse que a renúncia de JQ foi apenas uma explosão emocional. “Ele não se controlou diante das dificuldades do momento e renunciou”, avaliou o ex-comandante de um dos destacamentos da legendária Coluna Prestes (1924-27).
Entretanto, com o paulatino distanciamento temporal dos fatos relacionados à renúncia, já bastante desbotados na memória histórica nacional, infelizmente debilitada por lamentável amnésia crônica, é possível espremer os bastidores da crise política da época para extrair conclusões que nos permite discordar de Cordeiro de Farias e afirmar que Jânio quis, sim, dar um golpe de estado, mas esqueceu (ou não se interessou), por se julgar autossuficiente, em combinar os detalhes com os militares, que seriam os fiadores da ruptura institucional.
Aliás, Jânio confessou a articulação golpista em entrevista concedida em 1992 ao seu neto, Jânio John Quadros Neto, que a registrou no livro “Jânio Quadros: Memorial à História do Brasil”.
Em 27 de janeiro de 1961, o presidente demissionário embarca em navio para Londres, onde cumpriu exílio voluntário. Volta ao país em meados do ano seguinte e disputa a eleição para governador de São Paulo de 1962, perdendo para Adhemar de Barros.
Apesar de ter apoiado o golpe militar de 1964, Jânio teve os direitos políticos cassados pela ditadura ainda no dia 10 de abril daquele ano. Em 1982, já com os direitos recuperados, candidata-se ao governo de São Paulo, sendo derrotado por Franco Montoro. Mas, em 1985, vence Fernando Henrique Cardoso e se torna prefeito da capital paulista pela segunda vez, cargo que exerce entre 1986 e 1988. Jânio da Silva Quadros, que governou o País por menos de sete meses, faleceu na cidade de São Paulo em 16 de fevereiro de 1962, aos 75 anos.
Leia, amanhã, o segundo capítulo de “1961: A renúncia de Jânio e o golpe abortado”, que trata da resistência legalista de Leonel Brizola que possibilitou a posse do vice-presidente João Goulart (o Jango), sucessor legal de Jânio Quadros.