24 de setembro de 2021 4:14 por Redação
Os 204 anos da Emancipação Política de Alagoas é um marco político, mas será que também serve como marco histórico para definir, cronologicamente, a musicalidade alagoana? Bem, Jorge de Lima, em seu livro Calunga, publicado em 1935, faz referência ao livro Viçosa das Alagoas, de Alfredo Brandão Filho, de onde retirou a seguinte explicação: “O vocábulo cambembe serve hoje na Viçosa para designar o povo baixo do campo. Tal designação é recebida quase como uma afronta, vendo-se, portanto, que ela pertenceu a uma raça que se degradou. Segundo penso, a palavra cambembe é uma corruptela de caamemby, vocábulo indígena que se decompõe em casa, mato, e memby, flauta, gaita ou buzina. Literalmente a tradução será: mato de gaitas, de buzinas ou flautas. Desta etimologia depreendem que os cambembes deveriam ser um povo amigo de músicas. É bem possível que haja alguma identidade desses índios com os bardos dos caetés, os quais, conforme relata Ferdinando Diniz, acompanhavam os guerreiros nas pelejas, incitando-os com seus cantos. Ainda hoje entre os caboclos descendentes dos cambembes encontram-se exímios tocadores de pífano.”
IMO INDÍGENA
Como encontraremos ainda em Calunga, de acordo com Jorge de Lima, a subtribo dos cambembes espalhou-se no mundo. Pois bem, como alagoano, também faço parte dela e entendo que muito da nossa musicalidade, tão rica e plural, tem origem no cerne atávico à nossa geografia histórica, povoada pelos povos das flautas, das danças, dos ritmos, loas e cantos de guerra. Então, quem será capaz de afirmar que a música produzida hoje em Alagoas não é tão somente o prolongamento, uma extensão do que nos originou musicalmente? Será coincidência o fato da cidade de Marechal Deodoro ser um celeiro nacional de músicos de instrumentos de sopro, e Viçosa ter no Esquenta Mulher, do Mestre Bia, um dos ícones da cultura alagoana, ou será apenas uma referência meritória e direta ao povo cambembe e caeté? As bandas de pífano, do litoral à Zona da Mata, não ecoam em sua originalidade musical, em sua formação singular, os sons ancestrais dos que nos precederam há muito mais de 200 anos?
IMO ÁFRICA
Então, o que somos começa bem antes da efeméride, mas também, começa quando somos, de modo musical e cultural, o caldo da principal etnia trazida para o Brasil, os bantos, o povo que durante o período colonial brasileiro, ocupava a maior parte do continente africano ao sul do Equador. Musicalmente, embora muitos não tenham interesse em saber e se perceber como tal, somos resultado dos batuques nos atabaques que ressoam nossa miscigenação, em cujas veias vagueiam o sangue e o cerne da base biológico-musical banto, irmanada em Angola, Benguela, Cabinda, Maputo, Congo e Alagoas, queira ou não nossas elites. Alguém admite negar que somos um povo que tem a grandeza do coco, que provavelmente tenha surgido na zona de fronteira entre Alagoas e Pernambuco, nas serras ocupadas no século XVIII pelo revolucionário Quilombo dos Palmares, e que a partir dessa região espalhou-se por todo o Nordeste, onde recebeu nomes e formas coreográficas diferentes?
IMO EUROPEU
É manifesto que outro ramo do núcleo da nossa ancestralidade musical tem âncora incontestável na colonização europeia, imposta ao nosso encanto tropical e repleta de balda e virtudes, para o bem e para o mal. De acordo com o docente e pesquisador da UFAL, Nilton da Silva Souza, […] “o mapeamento musicológico dos arquivos musicais de Alagoas passa pelo acervo da música sacra, da música erudita, da música semierudita, das composições instrumentais para banda de música e das composições instrumentais para piano.” Ele afirma ainda que: “Um estudo mais detalhado aponta para manifestações musicais voltadas quase exclusivamente para fins religiosos, seja durante o culto católico, a missas ou a novena, ou mesmo durante as procissões e festas religiosas.” E revela uma curiosidade: “Em termos musicais, o Estado de Alagoas pôde ser dividido em sete polos de ação de grupos musicais: Baixo São Francisco; Maceió e Orla Lagunar; Zona da Mata; Litoral Norte; Litoral Sul; Agreste; e Sertão. Dessa forma, o Baixo São Francisco foi o primeiro polo de desenvolvimento musical considerável, haja vista a criação das primeiras Sociedades Musicais e bandas de música em Alagoas.” Tudo, claro, sob o ponto de vista de uma elite dominante que ignora, por exemplo, que a música dos terreiros também é originária e representativa de um culto sagrado, portanto, sacra.
Não tenho qualquer base antropológica ou científica para afirmar, portanto, suponho que o amálgama dessas três vertentes citadas, do núcleo originário da musicalidade alagoana, resulta, também, na riquíssima cultura popular, que muitos denominam de folclore, cuja diversidade musical e rítmica há séculos motiva e dá vida aos seus brincantes. Porém, não é por se tratar de uma efeméride de 200 anos que não possamos ressaltar uma questão atávica e embrionária da nossa herança colonialista, atrelada ao amargo social, paradoxalmente implícito à cana-de-açúcar, seus senhores de engenho e às práticas patronais de uma elite que pouco evoluiu em seus conceitos e preconceitos. Aliás, fazendo uma precária arqueologia histórica, na tentativa de manter as coisas em perspectiva, sabemos que, nas melhores rodas, nos ufanamos de ser o Estado que possui o maior número de folguedos populares do Brasil, que temos a maior diversidade cultural e toda essa verborragia, que parece apenas servir para o pavoneamento intelectualoide de alguns e, logo em seguida, é relegada a meros dados estatísticos, que cumprem seu propósito informativo nos lampejos da vaidade alagoana. Raramente, somos transparentes o bastante para nos posicionarmos diante dos fatos e admitirmos que, com exceção de alguns atores sociais abnegados pelo universo dos folguedos populares e seus brincantes, continuamos a não dar a devida atenção social e política às classes menos favorecidas da nossa população. E parece que mais 200 anos não serão suficientes para compreendermos, que é justamente nelas, que se mantêm vivas as tradições da nossa cultura.
Afinal, por definição, somos a “terra dos marechais” e não dos guerreiros, pastoris e fandangos. Cultuamos o bélico e não o lúdico. Aclamamos fardas, paletós e não as fitas, adereços e espelhos. Reverenciamos o senhor de engenho e seu poder amargo, e não o pisador do pagode com seu trupé e canto agridoce. Portanto, a demagogia política de há muito detectou o quanto essas pessoas são vulneráveis e indefesas, apesar da força arrebatadora do trupé nos ritmos marcados por instrumentos não-sofisticados. Apesar dos cantos e loas nas vozes ásperas e expressionistas que emanam do profundo abissal daqueles que, de berço, trazem a cultura popular pululando em suas veias. Enfim, é triste saber que a penúria deles pode estar perversamente conectada ao nosso bem-estar por mais de 200 anos.
Conhecidas as bases da nossa pirâmide musical, sem mais delongas, temos que dar um salto cronológico até à modernidade do século XIX e à contemporaneidade do século XXI, lamentando a impossibilidade do aprofundamento no vasto e rico universo que cada tópico já exposto é capaz de nos proporcionar. Afinal, nada mais prazeroso do que o autoconhecimento que a realidade histórica nos proporciona. Se o século XIX foi considerado o século de ouro dos grandes compositores mundiais de música erudita, Alagoas também foi contemplada com o nascimento em Satuba, em 1896 (mesmo ano de nascimento do também alagoano Jararaca), do seu maior expoente, o compositor, maestro e arranjador Hekel Tavares, cuja obra vem sendo revisitada por inúmeros intérpretes e obtendo o reconhecimento inevitável. Já no século XX, os anos 40 foram bastante efervescentes musicalmente, com inúmeras formações de jazz band, sob nítida influência americana, no clima da 2ª guerra mundial, onde a sociedade alagoana se reunia em matinês e soirées dançantes. No final dos anos 40, mais precisamente em 1948, é inaugurada a Rádio Difusora com uma vasta programação musical ao vivo e os memoráveis programas de calouros, coisa que o Haroldo Miranda já fazia no Cinema Capitólio, com um programa de auditório aos domingos, repleto de calouros e cantores expoentes da cena musical daquela época. Era a famosa época de ouro do rádio e o bom é que ainda chegamos a tempo de também protagonizá-la.
O final dos anos 70 e começo dos anos 80, do século passado, com a onipresença dos festivais de música, que dominavam a cena nacional e local, com uma produção musical riquíssima e como válvula de escape para as circunstâncias terríveis de um regime ditatorial em vigor no nosso país, os festivais foram determinantes para o surgimento de alguns artistas que hoje são, digamos assim, a velha guarda da atual cena musical alagoana. Sou um dos remanescentes dessa época e, nesta condição, um observador privilegiado do que aconteceu ao longo dos anos na nossa ainda pueril realidade. Chegamos à contemporaneidade com avanços e retrocessos, com êxitos individuais e coletivos, com acertos e erros, talvez, não assimilados, mas com a certeza de que se, provavelmente, tudo começou lá atrás, com os cambembes, o fim não saberemos qual será, pois, haverá um fim? Creio que não, posto que a fonte que gerou Hekel Tavares, Augusto Calheiros, Jararaca, Jacinto Silva, Tororó do Rojão, Juvenal Lopes, Roberto Becker, João do Pife, Beto Batera, Mestre Verdelinho, Mestra Hilda do Coco, só para citar alguns dos ícones, e mais uma plêiade de artistas, intérpretes, compositores e músicos maravilhosos e contemporâneos, essa fonte não seca, nem secará por, pelo menos, mais 200 anos.
*Fotos das talas do artista Pedro Cabral
No +, MÚSICABOAEMSUAVIDA!!!
Mácleim (23/09/2021)