terça-feira 3 de dezembro de 2024

Titane (2021)

5 de novembro de 2021 7:38 por Adriano Zumba

4.5 estrelas

Países: França, Bélgica

Duração: 1 h e 48 min

Gêneros: Drama, ficção científica, horror, thriller

Diretora: Julia Ducournau

Elenco principal: Vincent Lindon, Agathe Rousselle, Garance Marillier

IMDB: https://www.imdb.com/title/tt10944760/


Citação: “Acha que não reconheço o meu próprio filho?”


Opinião: “Obra que não encontra apogeu num lugar comum.”


Sinopse: Após uma série de crimes inexplicáveis, um pai se reencontra com o filho que estava desaparecido há 10 anos. Titânio: Metal altamente resistente ao calor e à corrosão, com ligas de alta resistência à tração.


Definitivamente, Julia Ducournau não faz filmes em que o público possa se enxergar. Na verdade, passa muito longe disso. “Titane” é bizarro, gore, estranho, visceral, distópico, transgressivo, perturbador, grotesco e absolutamente simbólico. Isso nada mais é do que o estilo da jovem diretora que flui naturalmente no filme em tela – que é seu segundo longa-metragem – e pôde ser visto em seu debut: “Raw“(2016). Em seu primeiro filme, a protagonista da história sofre um trauma, fica obsessiva por algo e começa a agir de forma estranha. Em seu segundo, a mesmíssima sequência toma corpo mas com outros elementos envolvidos, entretanto, a narrativa parte para um lado surreal e/ou fantástico, que considero espetacular, mas, para muitos, pode ser sinônimo de insanidade. Em ambos os filmes, trabalha-se um subgênero do horror/terror chamado body horror, que, segundo a Wikipedia, caracteriza-se por “apresentar intencionalmente violações gráficas ou psicologicamente perturbadoras do corpo humano”. O certo é que o novo filme de Ducournau é, sem sombra de dúvidas, o mais chocante e original de 2021 – e vai dividir as percepções e avaliações por sua excentricidade.

Considero a primeira meia hora de “Titane” espetacular, asfixiante e intensa. Trata-se do período narrativo no qual o thriller impera, para, posteriormente, na segunda parte do filme, transformar-se em drama, principalmente para poder transmitir suas mensagens. Sim, um genuíno espécime do body horror pode deixar mensagens. São minutos visceralmente violentos, que exibem uma ferocidade monstruosa e facilmente podem gerar uma estranhesa – além de outros sentimentos piores – igualmente monstruosa no público pelas ligações bizarras que a diretora propõe (vide a cena pós-cirurgia da protagonista Alexia quando criança), as quais serão essenciais ao longo da exibição, e a brutalidade pujante que dá o tom nesse bloco narrativo. Há diversas cenas apoteóticas e absolutamente perurbadoras que merecem destaque: [spoillers a partir daqui] a cirurgia de Alexia, que culmina com a implantação de uma placa de titânio em seu crânio, o sexo selvagem com o Cadillac – incluíndo preliminares -, a tentativa de arrancar o mamilo da personagem Jasmine com os dentes, a tentativa de aborto com o prendendor de cabelo – que também é usado como arma -, a autoquebra do nariz de Alexia, além dos assassinados em profusão exibidos – apesar de inúteis. Considero até que a cena de sexo citada tem potencial para ser lembrada como cult no futuro. Resumidamente, o espectador é submetido a uma reação em cadeia de violência sádica e à necessidade de percepção em relação à desumanização da protagonista e sua sociopatia, adquirida após possuir uma parte metálica em seu corpo e por suas interações com o bicho homem, principalmente com seu pai.

A desconexão de Alexia com os seres humanos, as consequências de sua aproximação (em vários aspectos, inclusive o sexual) com os automóveis e a necessidade de se esconder das autoridades após seus crimes, promovem um ponto de virada na obra, que desliza do pesadelo de terror corporal para um registro dramático mais sutilmente enervante. As transformações da protagonista dão o tom na segunda parte da obra e novos personagens importantes aparecem, principalmente Vincent, um bombeiro masculinamente tóxico cujo filho desapareceu há 10 anos e que “reapareçe” na pele de Alexia em uma composição oportuna para ambos os personagens, uma ilusão necessária para a alma. Nesse ponto, Ducournau está totalmente focada na percepção individual, em como as coisas podem ser totalmente diferentes para pessoas diferentes. Um carro pode ser um objeto sexual atraente para Alexia; uma mulher grávida homicida pode ser um menino ferido que precisa de cuidados para um pai saudoso, o dolorosamente sincero Vincent. Ainda sobre esse direcionamento, a protagonista sai de seu mundo de performance feminina e entra na esfera hipermasculina do corpo de bombeiros do qual Vincent é capitão, quando é colocada entre os membros da tripulação que são tão leais que parecem dispostos a aceitar a farsa. Essa segunda parte é um desenvolvimento preparatório – e muito menos intenso – para o desfecho, que tem o condão de gerar expectativa extrema a quem conseguiu resistir à perturbação durante cerca de 90 minutos. O filme constrói à sua maneira todo o arcabouço narrativo necessário para a exibição do fato mais esperado da trama: o nascimento do filho – ou de algo que possa ser chamado de filho – de Alexia e o ígneo Cadillac.

No clímax, o filme retorna com muita potência ao caráter atrativo de sua primeira meia hora, pois volta a relacionar o fato final à premissa inicial que é deveras envolvente. Nesse momento, vem automaticamente à mente obras icônicas da sétima arte como “O bebê de Rosemary“(1968), “Eraserhead“(1977), “Alien, o oitavo passageiro”(1979), etc., pelo nascimento potencialmente perturbador e indefinido que se avizinha. E o resultado faz total sentido dentro da proposta da diretora, que se delineia fortemente a partir do ponto de virada do filme, quando o filme parte para o drama. Após tanta bizarrice, o filme resolve terminar de forma tenra, fazendo alusão a temas como o amor e a família, mas sem deixar de causar mal-estar. “Estou aqui”, diz Vincent a seu “neto”. Para coadunar com toda a estranheza gerada ao longo de todo o filme, trata-se de um desfecho absolutamente condizente.

Para encerrar, deve-se exaltar a atuação da hipnotizante Agathe Rousselle como Alexia em seu primeiro trabalho no cinema na pele de uma protagonista extremamente bem construída e interpretada, a fotografia expressiva apresentada, a montagem que concede agilidade e potencializa as sensações das cenas, principalmente àquelas dos assassinatos, e a direção espetacular de Julia Ducournau e sua natureza meio “Cronembergiana”, que mostra ao mundo da sétima arte que veio para ficar. Resumidamente, “Titane” é um filme que retira o espectador da zona de conforto e promove transformações no íntimo de cada um que vivenciou essa experiência “titânica”, com alta resistência à tração, segundo a sinopse. Indiscutívelmente, o espectador não sai da exibição da mesma forma que entrou nela – e isso é um ótimo sinal. É a prova que o “Titane” é uma obra marcante!

Obs.: Filme ganhador da Palma de Ouro no Festival de Cannes 2021 e indicado pela França para representar o país no Oscar de Melhor Filme Internacional em 2022 (quero nem imaginar os conservadores da Academia assistindo a esse filme).

O trailer segue abaixo.

Adriano Zumba

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