18 de novembro de 2021 2:32 por Adriano Zumba
Países: França, Holanda, Bélgica
Duração: 2 h e 11 min
Gêneros: Biografia, drama, história, romance
Elenco principal: Virginie Efira, Daphne Patakia, Charlotte Rampling
Diretor: Paul Verhoeven
IMDB: https://www.imdb.com/title/tt6823148/
Citação: “Você mente até o fim.”
Sinopse: No século XVII, uma freira italiana, Benedetta Carlini, vive em um monastério na Toscana, na cidade de Pescia, desde quando era criança. Doutrinada por sua mãe como sendo a noiva de Jesus, ela tem perturbações e visões religiosas e eróticas. Com a chegada de uma nova garota ao monastério, Bartolomea, que é acolhida por Benedetta, um romance homossexual entre as duas toma corpo.
Para fazer qualquer análise sobre “Benedetta“, acho pertinente ter em mente dois conceitos pouco conhecidos e alusivos à arte e ao mundo do cinema: Arte Transgressora e Nunsploitation. Vou apenas definir os conceitos, sem, contudo, aprofundar a discussão. Arte transgressora é a arte que visa transgredir (obviamente); isto é, ultrajar ou violar a moral e a sensibilidade básicas. O termo transgressivo foi usado pela primeira vez nesse sentido pelo cineasta americano Nick Zedd e seu “Cinema de Transgressão” em 1985. Nunsploitation é um subgênero dos filmes de exploitation que teve seu auge na Europa e no Japão na década de 1970. Esses filmes geralmente envolvem freiras cristãs (nuns, em inglês) que vivem em conventos durante a Idade Média. O principal conflito da história é geralmente de natureza religiosa ou sexual, como opressão religiosa ou supressão sexual por viver em celibato. A Inquisição é outro tema comum.
O filme em tela, “Benedetta“, enquadra-se perfeitamente em ambos os conceitos por suas temáticas abordadas e principalmente pela forma como foi conduzido pelo provocador Paul Verhoeven, cuja filmografia mostra muita controvérsia e, porque não, transgressão. “Benedetta” não poderia ter caído em melhores mãos para ganhar vida através do cinema. O filme foi adaptado do livro “Immodest acts: The life of a lesbian nun in renaissance Italy” (1987) da historiadora Judith C. Brown, que, segundo averiguei, possui uma narrativa cheia de lacunas pela dificuldade de obter informações precisas de um fato ocorrido há séculos. Como consequência dessa afirmação, muita liberdade narrativa acabou sendo obtida por Verhoeven e seu colega roteirista David Birke, que assinam o enredo da obra cinematográfica. Isso é um presságio de ousadia, o que realmente pode ser visto no filme.
“Benedetta” é um filme que conta com elementos mais do que suficientes para chocar, principalmente pela liberdade artística provida pela suposta imprecisão e falta de detalhes da obra-base. Suas temáticas olhadas em conjunto são antagônicas, e, olhadas individualmente, sempre promovem boas discussões. São elas: poder, sexualidade e religião, que são desenvolvidas no âmbito da Igreja católica, mais especificamente num monastério – ou mosteiro. O principal conflito é entre o espiritual (a fé) e o carnal (o sexo), que são partes integrantes de qualquer ser humano, mas não deveriam dialogar na hipócrita conjuntura proposta. Apenas por sua concepção, nota-se que é um filme polêmico, e, após a exibição, tenham a certeza que a controvérsia será potencializada, pois outras temáticas acessórias e não menos polêmicas são introduzidas, como a homossexualidade (no seio da Igreja no século XXVII), por exemplo, nudez e erotismo em demasia é apresentada e algumas cenas são construídas com uma gênese realmente transgressora. Muitos irão identificar um quê de profanação, enquanto outros, um quê altamente artístico e condizente com a proposta do filme. Particularmente, considero que “Benedetta” está na galeria dos melhores filmes de 2021, por seus excelentes aspectos técnicos e narrativa desestabilizadora, quebradora de alicerces e fonte de incômodo. É o cinema saindo de seu lugar comum.
O foco é na personagem que intitula o filme, Benedetta, interpretada magnificamente pela ótima Virginie Efira. Desde cedo, Benedetta dá mostras de sua orientação sexual, vide a cena do acidente com a imagem da Virgem logo no início do filme, que representa crença e desejo ao mesmo tempo, que é o grande dilema do filme e representa duas grandes características da protagonista – uma pessoa com uma fé impressionante e com um lado sexual reprimido (pelos dogmas da Igreja), que só necessita de uma fagulha para se transformar em um super vulcão. Com a chegada da protagonista à fase adulta e a introdução da personagem Bartolomea na história, tem-se o que se chama de tempestade perfeita. Concomitantemente, as visões erótico-religiosas de Benedetta se tornam cada vez mais blasfêmicas, e daí, Verhoeven começa a ser ferir o sagrado de morte, mas dentro de uma conjuntura lógica perfeita, mas deveras agressiva pela forma como é mostrada. Destaco duas cenas com um viés até profanador, as quais ficarão gravadas em minha mente para sempre: a cena de Jesus crucificado, que vou chamar de cena 1, e a cena do uso da estátua da Virgem utilizada com outro propósito, que vou chamar de cena 2. Ambas as cenas são psicologicamente violentas, mas representam nuances importantes dentro do roteiro. A cena 1 confirma a orientação sexual da protagonista através da revelação bombástica provida por seu amor de sempre, Jesus, e a cena 2, que considero o ápice do filme, promove uma junção perfeita entre o carnal e o espiritual, como já salientado. O antagonismo intrínseco entre as duas temáticas se transforma em harmonia, e, a cada orgasmo, mais empoderamento pode ser visto na protagonista. Trata-se de uma ousadia surreal e magnífica.
Um dos grandes atrativos do filme é a dúvida. Benedetta transita facilmente entre a santa, a vigarista, a gananciosa por poder e a vadia. Pode-se facilmente identificar bons e maus elementos através do comportamento da jovem freira. Os “milagres” exibidos são contestáveis e a aura construída é duvidosa, principalmente pela imprecisão apresentada através das palavras ditas pela própria protagonista. Essa dúvida se espalha pelos personagens coadjuvantes, gerando algumas situações acessórias que reforçam a tendência principal da narrativa: fomentar a incerteza. Nesse contexto, destaca-se a personagem Irmã Christina e a Irmã Felicita, que também atua fortemente no desenvolvimento da temática do poder dentro da instituição sagrada e tem participação decisiva no desfecho da história.
O filme também não se furta de caracterizar bem a época de seus acontecimentos. A peste, que dizimou boa parte do mundo, ronda a narrativa. O uso do fogo para punir pessoas com crimes eclesiásticos é bastante conveniente. A alusão a Joana d’Arc também é muito pertinente, já que morreu queimada e foi torturada. A direção de arte caprichou em locações, figurino e fotografia, mas a cena do cometa achei meio teatral, contudo, a essa altura, o espectador já está envolvido e não leva em consideração supostos deslizes.
“Benedetta” ousa como há tempos o cinema necessitava e colhe suculentos frutos advindos de seus pecados. A arte simplesmente agradece, pois o padrão foi jogado na lata do lixo. Talvez, o filme não proporcione uma jornada sem percalços, mas uma coisa é certa: o impacto é profundo, para o bem ou para o mal.
Obra-prima!
O trailer com legendas em inglês segue abaixo.
Obs.: O filme estreará nos cinemas em janeiro de 2022 e, logo após, será exibido nos canais Telecine.
Adriano Zumba
TRAILER