29 de novembro de 2021 10:18 por Braulio Leite Junior
Alguns anos atrás uma das poucas relíquias de Maceió antiga esteve ameaçada de desaparecer quando, por duas vezes seguidas, se verificou aquilo que em linguagem empolada poderia ser classificado como atentado involuntário ao passado: por duas vezes – um caminhão e depois uma Belina invadiram estrepitosamente o recinto de uma padaria no centro da cidade. Logo procuramos saber como estava o leão. Ah, o leão estava bem, tinha escapado ileso, haviam-no posto agora a salvo em lugar elevado, não mais no balcão onde vivia, há dezenas de anos, espionando tranquilamente, como leão jacente e de louça, o pessoal comprando massa:
– Me dê um quilo de simpatia! Me enrole dois pães doce de coco! Meio quilo de rosca, por favor! Três “pão” d’agua!
O velho e quieto leão sempre foi um encanto para as crianças, estranho e belo leão branco, cópia fiel dos outros que víamos, quando armavam o circo na praça da Cadeia. Só que aqueles velhos leões dos circos dos irmãos Stevanovich, Nerino e outros eram escuros, sujos e fedorentos e o leão da padaria lá ficava, no balcão, muito limpo e brilhante, sem odores, como um ser especial, acima de qualquer julgamento humano.
Após os seguidos acidentes, prudentemente, a direção do estabelecimento mandou colocar vergões de ferro no passeio para impedir os arrebatamentos de outros veículos tresloucados e talvez – quem sabe? – até o doloroso despedaçar do belo leão, cuja idade certa ninguém sabe, só que deve ter sido importado naqueles doces tempos em que Maceió só recebia produtos da Europa, desde o bacalhau da Noruega até o chá Lipton, servido no “five o’ clock tea” da Helvética. Dos antigos símbolos comerciais de Maceió talvez seja o derradeiro que resta, sem esquecermos o grande globo rosado daquela drogaria de Rua do Comércio; e há um elo curioso entre ambos – Persistência, através dos anos, dos nomes comerciais de fantasias que as respectivas imagens impuseram aos estabelecimentos que os abrigam. Os anos passam, os donos mudam, as ruas se modificam, a cidade cresce, as gerações se sucedem e lá estão ambos, firmes, inalteráveis, cuidadosa e milagrosamente mantidos, preservados, conservados nesta época vertiginosa em que o progresso parece querer derrubar, destruir, ofuscar e obliterar o passado.
Na memória dos velhos maceioenses repassam, como num velho filme, aquela grande interrogação pendurada na fachada daquele restaurante de categoria e que dava para a rua Doze de Junho – o Grande Ponto; a Bota de Ouro na sapataria de um italiano, na rua 1º de Março, enorme, dourada, até lembrando mesmo a Itália desenhada nos mapas, parecendo querer dar um pontapé na Sicília; quem sabe aquele terremoto de dezembro de 1908, em Messina, não teria sido causado por discreto pontapé, dado à noite? Quando a guerra rebentou e o Brasil declarou a Itália nossa inimiga, o povo foi lá e largou pedrada na pobre bota dourada – a Bota de Ouro. Lembramos ainda o relógio da Lordsleem, a original coberta de ferro e vidros coloridos, protegendo a entrada da Nova Aurora no prédio ao lado, sobre a fachada, pequeno mercúrio de louça, o belo pano de boca do teatro Deodoro, representando a cachoeira de Paulo Afonso, e que se franzia ao meio, subindo majestosamente, ao soarem as três pancadas de Molière. Foi destruído pelo fogo. Restam-nos ainda o globo rosado e o leão branco. Quem sabe a idade do leão?