quinta-feira 21 de novembro de 2024

Anadia: a cultura e o saber fazer do povo

Cultura é vida, acontece. É dinâmica e tem dono. O povo guarda as coisas enquanto fizerem sentido para ele.

1 de fevereiro de 2022 3:06 por Marcos Berillo

Acreditamos que uma das definições mais polissêmicas nas Ciências Sociais seja o conceito de Cultura¹: saber acumulado por um povo. Tradicionalmente se conceitua como “todo esforço humano para controlar a natureza” (VAN DER POEL, 2013, p. 283). Mas, ao mesmo tempo podemos afirmar que a Cultura é construída socialmente ao longo da história de um povo.

Por isso, Cultura é vida, acontece. É dinâmica e tem dono. O povo guarda as coisas enquanto fizerem sentido para ele. É tradição e criatividade; se renova onde há povo, comunidade, sendo sistemas vivos que evoluem ao largo da história.

A lembrança do passado e da origem é fundamental para se compreender o presente e construir o futuro. Diz-nos o professor BRANDÃO (1998, p. 11): “não devemos esquecer que a lembrança não reconstrói apenas um passado ou uma fração do passado. Ela funda cada vez um presente ao restabelecer as suas origens”.

Nasci, cresci e vivi em Anadia nas décadas de 60 e 70 do século passado e como todo menino do interior bebia e comia na fonte da sabedoria popular: festas, danças, comidas, devoções, fé, celebrações de vida e de morte. No último domingo de novembro, “os bandos” da Tapera. No Natal, o pastoril, impecável: ensaiado pela “Zefinha Leandro” da Rua do Alagadiço, com suas belas pastoras. Também não faltava o guerreiro da Mestra Joana Gajuru de Maribondo. Na festa de Nossa Senhora da Piedade, o “Quilombo” do mestre Abílio de Limoeiro e nas festas juninas as quadrilhas que pipocavam em todos os arraiás pela nossa cidade.

Lembro-me com muita saudade do Guerreiro do Grupo Escolar Rui Barbosa pelos idos de 1969/1970 para arrecadar dinheiro e adquirir uma banda fanfarra para o mesmo, formou um Guerreiro² , que teve a direção da nossa “Zefa do Grupo, com seu senso folclorista, numa exigência em alto grau, para que tudo saísse a contento. Mestre Sabino Fidélis e todo figural cantando³: “Eu sou campeão de Alagoas,/ bato prego, a ripa voa,/ serro caibro a casa cai, volto pra trás / tô mudando de assunto:/ quatro é pouco, cinco é muito/ seis não dá, sete é demais” (Domínio público). E na riqueza do nosso folclore siamos dançando e arrecadando dinheiro pelo interior do estado: São Miguel, Coruripe e tantas outras cidades. Tudo era festa, alegria e idealismo em viver o saber do povo.

Hoje, depois de mais de cinquenta anos, esse saber tradicional foi se “desbotando”. Saudade…e como diz o grande poeta português:

Saudades! Tenho-as até do que me não foi nada, por uma angústia de fuga do tempo e uma doença do mistério da vida. Caras que via habitualmente nas minhas ruas habituais – se deixo de vê-las entristeço; e não me foram nada, a não ser o símbolo de toda a vida (PESSOA, 1935).

Mas, “apesar de você”, como canta outro poeta de cá, “Folclore é a vida do povo que relembra suas origens e delas faz sua própria maneira de viver” (REIS, 1990, p.47). Continuamos teimosamente vivendo a cultura popular e como fez Paulo Freire (1921-1997) inseriu a cultura popular como parte essencial da pedagogia do oprimido. Uma coisa é certa: a promoção do folclore pode ser um dos caminhos para a democracia. Nessa teimosia, ainda sobrevive os “bandos” na Tapera e o “Guerreiro Campeão Vencedor” da Chã de Anadia, composto por trinta membros, tendo à frente o Mestre Benedito Misael da Silva (64 anos) popularmente chamado de “Mestre Biu da Festa”.

(Foto: Mestre Biu e o Guerreiro Campeão Vencedor – www.focuarte.com.br)

 

 

Teria tanto o que lembrar: lugares, pessoas, fatos. Mas, para não permanecer no pessoal e na tentação de me perder na minha subjetividade, gostaria de concluir lembrando o que diz o grande folclorista Luís da Câmara Cascudo: “o folclore é o popular, mas nem todo o popular é folclore”. É preciso resistir, e a resistência cultural dá-se no cotidiano. A Profª Ecléa Bosi nos disse:

Nós encontraremos a pessoa, reduzida nas linhas de montagem, embrutecida nos bares, ansiosa nas filas do INSS, paciente nas greves. Uma resistência diária à massificação e ao nivelamento, eis o sentido das formas da cultura popular. Empobrecedora para com a nossa cultura é a cisão com a cultura do povo: não enxergamos que ela nos dá agora lições de resistência como nos mais duros momentos de luta de classes (BOSI, 1985, p.33).

É urgente que afastemos para longe qualquer “ranço” ou “preconceito” com a cultura do povo. Sabemos que o preconceito é gestado pela ignorância que temos, isto é, do não conhecimento do outro, do diferente de nós. Porque o mesmo leva sempre à marginalização, discriminação, intolerância e violência como temos assistidos nos anos que vivemos neste nosso país. É preciso “despreconceituar”: deixar de acusar o pobre de apatia, preguiça, ingenuidade e fugas nas suas festas. Infelizmente ainda se diz: “Pobre não gosta de ler”, “Morre de fome, mas tem televisão” e “Não sabe administrar o que tem”. Segundo o filósofo Leandro Konder, na antiga Roma, “os pobres eram tolerados desde que se expressassem com humildade. Se, porém ousavam reivindicar algo, passavam ser vistos como arrogantes” (2002, p. 51). Alguma semelhança com a realidade em que vivemos é pura coincidência?!

Gostaria de terminar esse texto de memórias, que brotam dos fatos reais a imaginação evocando a esperança, cantada por um compositor cearense, Zé Vicente , na década de 80:

Quando o dia da paz renascer/Quando o Sol da esperança brilhar/Eu vou cantar./ Quando o povo nas ruas sorrir/E a roseira de novo florir/Eu vou cantar!

Quando as cercas cairem no chão/ Quando as mesas se encherem de pão Eu vou cantar/ Quando os muros que cercam os jardins, destruídos / Então os jasmins vão perfurmar!

Vai ser tão bonito se ouvir a canção / Cantada de novo / No olhar da gente a certeza de irmãos / Reinado do povo!

Notas 

1- Do latim “colere”, habitar, cultivar, zelar.

2- Folguedo natalino surgido em Alagoas entre os anos de 1927 e 1929, sendo a fusão de reisados alagoanos, da chegança, dos pastoris e do auto das   caboclinhas (Pedro Teixeira de Vasconcelos.

3- Figuras: rei, rainha, embaixadores, lira, índio Peri, mateus, a estrela de ouro…

REFERÊNCIAS:

BOSI, Ecléa. Problemas ligados à Cultura das classes pobres. In.: VALLE, Edênio et al. A cultura do povo. 3. Ed. São Paulo: Cortez, 1985.

CASCUDO, L. Câmara. Dicionário do Folclore Brasileiro. Rio de Janeiro: Ediouro, 2005.

KONDER, Leandro. A questão da Ideologia. São Paulo: Cia das Letras, 2002.

PESSOA, Fernando. Escritos íntimos, Cartas e Páginas Autobiográficas. (Introdução, organização e notas de Antoónio Quadros). Lisboa: Publ. Europa-América, 1986.

REIS, Vanilson. Joaíma em versos e poemas. Belo Horizonte: Imprensa Oficial, 1990.

 

 

 

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