23 de abril de 2022 9:03 por Redação
BLOGUE DE HOMERO FONSECA
Jornalista, jornalista. Escritor menor. Leitor maior.
Há uns bons anos, fui me consultar com um renomeado otorrino-laringo-etc. Sentei na frente da sumidade. Ele perguntou qual meu problema. Descrevi. Ele pegou o talão de receituário e prescreveu um remédio qualquer. Fez só aquela pergunta inicial. E nenhuma vez levantou a vista para mim. Saí da sala, rasguei a receita e joguei na lixeira. Fui procurar um médico menos afamado, mas que ao menos olhasse para o paciente.
De lá para cá, ouvi muitas histórias semelhantes. E, observando a turma do jaleco em ação, percebi que cada vez mais esse padrão de alheamento — em paralelo à dependência cada vez mais da parafernália tecnológica para diagnosticar qualquer doença, de uma coceira à esclerose lateral amiotrófica.
Comecei a desconfiar de que havia algum problema no ensino médico, somado à mentalidade individualista extrema que grassa em nossa época. Como leigo, não me aventurei a abordar a espinhosa questão. Agora, vejo que — felizmente — profissionais da área andam se preocupando com o assunto e estudos e iniciativas estão em andamento, no Brasil e lá fora.
Aqui mesmo uma jovem psiquiatra — doutora Carla da Fonseca Zambaldi — escreveu um interessantíssimo artigo em que, além de confirmar o diagnóstico, traz uma sugestão surpreendente e inovadora: a de que a literatura pode ser um conhecimento complementar indispensável à boa prática médica. Todos sabemos como a vivência médica contribui para a medicina. Basta pensar em Anton Tchekov e João Guimarães Rosa. Entretanto — confesso — eu não havia pensado antes no caminho inverso.
Dra. Carla Zambaldi — uma mineira com sólido currículo em medicina — também é graduada em letras. Fala, então, com amplo conhecimento de causa.
Em artigo[1] onde a sua tese está sintetizada, ela se pergunta se a literatura poderia ser um recurso para promoção da humanização da medicina. Ao se debruçar no tema para responder à questão, ela constatou:
A modernidade trouxe avanços inimagináveis para o conhecimento médico. Para abarcar a complexidade do progresso das evidências científicas a formação médica tem reforçado e privilegiado o conhecimento científico. O investimento na formação de habilidades humanísticas, de linguagem, comunicação, capacidade de escuta e empatia não se equiparou à formação técnica. Tal desequilíbrio tem mostrado prejuízos na capacidade do médico moderno escutar com atenção, acolher, compreender globalmente e se relacionar adequadamente com seus doentes. Para cuidar de ser humanos, a compreensão de sistemas, patologias, protocolos e técnicas não é suficiente, é preciso sensibilidade, humanidade e visão integral do indivíduo, de sua história e contexto.
Basicamente, a médica-humanista aponta três características da leitura literária que fazem dela uma ferramenta fundamental para a relação médico-paciente: a literatura como fonte de escuta, de empatia e de autorreflexão.
Em relação ao primeiro aspecto, diz dra. Zambaldi:
A escuta médica é essencial ao diagnóstico clínico, ela constrói a relação médico paciente e é terapêutica por si mesma A escuta corre grande risco de não ser efetiva numa relação desigual entre as partes. O médico na postura de mais forte, superior ou detentor do saber, dita as regras e impõe sua verdade, sendo desnecessário ouvir o que o paciente diz. A escuta médica também pode minguar se o médico não tem o hábito de ouvir histórias. Com intuito de familiarizar o médico com narrativas, algumas escolas médicas têm Medicina Narrativa em seus curriculum, outras tem treinamento em habilidades de comunicação, curso de leitura e escrita literária, ou outras formas de utilizar a literatura como recurso de incremento da prática médica.
Sobre a empatia — a capacidade de se colocar no lugar do outro e compreender seu mundo e suas dores — ela destaca estudos científicos onde se constatou que leitores habituais de ficção mostram maiores níveis de empatia e que a leitura pode levar a aumentar essa habilidade. Daí considerar esse sentimento “primordial para a prática médica”. Diz ela:
Foi observado que leitores habituais de ficção mostram maiores níveis de empatia e que a promoção da leitura pode levar a aumento desta habilidade. (…) Ao abrir um livro o leitor se dispõe a perceber a vivência do personagem, a se emocionar, se projetar, se identificar e compreender uma nova realidade. A leitura literária permite exercitar a capacidade de se sentir na pele de outro, de se deixar tocar e sentir o que o outro sente, de se imaginar em seu lugar e de fazer inferências mentais e prever pensamentos e ações. O leitor, na leitura ficcional, é levado à identificação, imaginação e percepção de outras vivências e perspectivas.
Quanto à autorreflexão, explica a psiquiatra:
A literatura pode promover momentos de reflexão, insight, autoconsciência, ampliando pontos de vistas e ensinando a ter pensamento crítico. A complexidade do texto literário, fator que exige disposição e empenho para a compreensão, o tempo contemplativo que se passa na leitura literária e o efeito da desfamiliarização são fatores favoráveis à promoção da autorreflexão.
E arremata:
A autorreflexão é indispensável para o médico perceber a si mesmo, sua prática clínica, sua conduta moral diante dos dilemas, o sentido de seu trabalho, a identidade médica e o papel da medicina nos tempos atuais.
Por fim, dra. Carla Zalbaldi cita pesquisas e experiências, inclusive o surgimento da categoria Medicina Narrativa, como avanços na direção de uma relação médico-paciente mais humanística.
Nem tudo está perdido, camaradas. Lutemos por um novo Iluminismo para os desafios tremendos destes novos tempos.
[1] “A literatura e a medicina — A literatura como fonte de escuta, empatia e autorreflexão”. Medica Review — International Medical Humanities Review — Revista Internacional de Humanidades Médicas: www.journals.gkacademics.com/revMEDICA/issue/view/231