9 de dezembro de 2022 9:36 por Reynaldo Rubem Ferreira Jr
(*) Reynaldo Rubem Ferreira Jr (Professor da Faculdade de Economia, Administração e Contabilidade – FEAC – da UFAL)
Desde o resultado da eleição presidencial em 30 de outubro, o cenário fiscal brasileiro para os próximos anos tem provocado muito ruído no mercado financeiro. A bolsa tem se desvalorizado, assim como o real frente ao dólar. A principal polêmica está na retirada do teto dos gastos de R$ 198,0bi nos próximos quatro anos proposta na “PEC da transição” apresentada ao Congresso Nacional pela equipe de transição do próximo governo. Na proposta, R$ 157,0bi seriam para o pagamento de R$600,0 do Bolsa Família, mais R$ 18,0bi destinados às despesas de R$ 150,0 para as famílias (por crianças com idade de até seis anos) e R$ 23,0bi para investimentos.
O estranho é se tomar como referência um teto de gastos no qual há consenso entre boa parte dos economistas, de diferentes correntes, que deve ser revisto em virtude de sua total inviabilidade.
Isto significa que defendo ausência de regra fiscal? Não. A nossa posição nesse debate é de que é preciso ter um novo arcaboço fiscal que não só contemple uma regra bem desenhada de controle de gastos (responsabilidade fiscal), sujeita à ajustes e aprimoramentos como sugerido no artigo de Braúlio Borges e Claudio Gonçalez (Valor Econômico), como também inclusão social (responsabilidade social). Além de uma regra eficiente, eficaz e efetiva para os gastos (ou seja, que evite a prociclicalidade das despesas públicas e preserve o seu caráter contracíclico) é crucial uma reforma tributária que retire a atual regressividade na distribuição da carga tributária, que tanto penaliza a população de baixa renda assim como o setor produtivo (ou seja, que passe a taxar a renda e o patrimônio progressivamente e desonere a produção).
O nosso objetivo aqui, no entanto, é mostrar que, no debate da questão fiscal, uma parte importante da apropriação do orçamento público, a financeira, é desconsiderada e precisa ser discutida. Em outras palavras, para se buscar conciliar responsabilidade fiscal e social é imperativo que politicamente se enfrente o “pensamento único” macroeconômico (focado no orçamento primário) para que seja possível se abrir espaço para uma agenda de desenvolvimento.
A pergunta que você deve estar se fazendo neste momento é: o que vem a ser esse tal “pensamento único”? A partir dos anos 90, o debate macroeconômico em grande parte do mundo passou a ser dominado por uma espécie de “pensamento único” macroeconômico (conhecido na literatura econômica como “Novo Consenso Macroeconômico”), que está na base do famoso tripé macroeconômico. O resultado negativo deste pseudo consenso foi relegar as demais visões econômicas ao ostracismo pressupondo-se que estas careciam de fundamentação teórica e aplicação prática. As lições tiradas a partir das crises financeira de 2008 e sanitária da Covid19 explicitaram a fragilidade de tal pressuposto.
Na visão do mercado financeiro, às vezes simplificadamente chamada de mercado, o crescimento com estabilidade de preços depende, em primeira instância, de uma meta nominal de inflação e de a taxa real de juros de curto prazo ter como referência as taxas de juros estrutural e de crescimento do produto potencial da economia a longo prazo, sendo ambas variáveis não observáveis (Regime de Meta de Inflação). A austeridade fiscal é outro pilar destacado para se manter a relação dívida/PIB caíndo no tempo. Por fim, o último fundamento é o regime de câmbio flutuante (com livre entrada e saída de capitais).
Em síntese, cabe aos gestores da política macroeconômica fazer o “dever de casa”, com base no manual do mainstream macroeconômico (que deve ser aplicado à qualquer país indepentemente de sua estrutura sócio-econômica), e manter a inflação na meta, ancorando, deste modo, as expectativas inflacionárias. Assim fazendo, mesmo com o advento de choques exógenos temporários, o nivel de atividade tenderá a seu nível de pleno emprego a longo prazo. É a famosa “coincidência divina”: mantenha a inflação na meta que o livre mercado se encarregará de sustentar a economia em seu potencial de crescimento.
A narrativa do “pensamento único” macroeconômico vem sofrendo uma série de críticas, principalmente nos países desenvolvidos, a partir da crise financeira de 2008. A primeira crítica diz respeito aos Bancos Centrais (BCs) só utilizarem como único instrumento para estabilizar os preço a taxa de juros básica (no caso do Brasil, a selic), mesmo que a natureza da inflação não seja de demanda. Até o momento a maioria dos BCs tem se mostrado resiliente à essa crítica, apesar dos choques de oferta se constituirem na principal causa da inflação na maioria dos casos (notadamente os provocados pela Covid19).
Do ponto de vista fiscal, a crítica é de que o “pensamento único” macroeconômico se baseia na polêmica hipótese da “contração fiscal expansionista” cujo efeito no tempo seria a diminuição do risco país, levando à redução dos juros e ao aumento dos investimentos privados. O problema dessa hipótese é que desconsidera a importância dos multiplicadores fiscais dos gastos públicos sobre a renda da economia, cuja relevância, mais uma vez, ficou evidenciada na crise econômica global provocada pela Covid19.
Notadamente, no caso brasileiro, não há como negar que, sem as transferências fiscais para as famílias, empresas e estados, fora do teto dos gastos, a economia brasileira poderia ter retraído 8% do PIB em 2020, de acordo com o FMI. Ademais, além de neutralizar o caráter contracíclico da política fiscal, uma vez que congela os gastos reais por vinte anos, a política de austeridade fiscal brasileira desconsidera o nível de regressividade da carga tributária, do lado da receita, e uma parte extremamente relevante, como será mostrado a seguir, das despesas públicas, do lado das despesas financeiras.
Vamos aos dados.
A principal distorção provocada pelo “pensamento único” macroeconômico na economia brasileira, do nosso ponto de vista, pode ser observada no gráfico nº 1. Ou seja, apesar dos superávits primários, notadamente no governo Lula, das reformas trabalhista e da previdência no governo Temer, de 1996 a 2021 só em dois anos (2010 e 2021) a taxa de crescimento real da economia esteve acima da taxa de juros real. Não há dívida que se mantenha em uma trajetória de redução em relação ao PIB com tamanha disfunção financeira, que se mantém desde o governo FHC.
As consequências sobre a economia brasileira são taxas médias de crescimento do PIB próxima a zero e do PIB per capita negativa no período de 2011 a 2020, 0,2% e -0,6% respectivamente, a segunda década perdida desde os anos oitenta.
Os dados do gráfico n° 2 deixam claro a herança do modelo de gestão macroeconômico do “pensamento único”. Comparando-se o último ano do governo Lula com o penúltimo do Bolsonaro, observa-se que os recursos destinados à dívida pública representam a maior parcela das despesas pagas do orçamento federal executado, ou seja, 45,3% e 50,9%, respectivamente. Não só houve aumento da participação financeira no bolo, no período em análise, como se deu em detrimento dos recursos destinados aos investimentos produtivos e ao pagamento de pessoal e encargos sociais, sendo este último sempre colocado como o vilão do desequilíbrio fiscal na narrativa do mercado financeiro.
Para se ter uma ideia da apropriação por parte do setor financeiro do orçamento público, com base nos últimos dados de 2022 dos gastos totais executados, a educação, saúde, cidadania e ciência e tecnologia representam 24,9% do que foi pago com juros e encargos mais amortização da dívida. Este valor é muito semelhante ao observado em 2010 (24,7%), o que demonstra que o problema está no modelo de gestão macroeconômica do “pensamento único”, independentemente das diferenças ideológicas dos governos.
Na narrativa do mercado financeiro, o estoque da dívida é composto por uma infinidade de pequenos poupadores que adquirem títulos por meio do Tesouro Direto. De acordo com dados do Tesouro Nacional, em outubro de 2022 o estoque do Tesouro Direto alcançou um montante de R$ 101,23 bilhões, enquanto o Dívida Pública Federal atingiu R$ 4,64 trilhões. Ou seja, 2,12% representam o percentual da riqueza financeira abocanhada por uma miríade de poupadores (cerca de 2,1 milhões de investidores ativos), ficando os demais 97,8% nas mãos das instituições financeiras (28,1%), dos investidores não residentes (9,8%), fundos de previdência e de investimentos (62%).
Para concluir, é preciso ter em mente a relevância das políticas sociais em um país que, segundo o IBGE, em 2021, entre cada dez brasileiros, aproximadamente três viviam abaixo da linha da pobreza e um em condição de extrema pobreza. São 62,5 milhões vivendo em condições de exclusão social. Ante contexto tão sombrio não dá para colocar mais de 50% das despesas financeiras do governo fora da conta para se buscar combinar responsabilidade fiscal com social. Sem enfrentar a armadilha do “pensamento único” macroeconômico não há como se implementar uma agenda de desenvolvimento econômico e social com sustentabilidade ambiental. No Brasil, exceto em momentos de injeção de gastos públicos autônomos na economia, o rentismo só tem gerado “voo de galinha”.