13 de janeiro de 2023 9:01 por Reynaldo Rubem Ferreira Jr
(*) Reynaldo Rubem Ferreira Jr (Professor da Faculdade de Economia, Administração e Contabilidade – FEAC – da UFAL).
A chegada de um novo governo sempre suscita muita especulação quanto ao sucesso ou não da política econômica. Estamos vivendo exatamente este momento no Brasil e o mercado financeiro procura descontar a valor presente suas expectativas futuras quanto ao preço dos ativos. Mas é preciso distinguir a incerteza oriunda de eventos econômicos inesperados da reação ao modelo de gestão econômica considerado não market friendly assumido pelo atual governo ao longo da campanha presidencial.
O nosso ponto aqui é que o sucesso econômico do Brasil nos próximos anos dependerá, primordialmente, da superação da narrativa mercado versus Estado com responsabilidade social. Para tanto é preciso deixar claro que o setor financeiro é uma parcela do mercado. No caso do Brasil, as atividades financeiras respondiam por 6,9% do PIB em 2020 depois de atingirem 8% em 2016, quando a selic alcançou 14%aa. Logo, a política econômica não pode ser orientada pelos interesses estritos das instituições financeiras.
Mas vamos tratar da distinção entre incerteza e reação à política econômica sinalizada pelo novo governo, colocada acima.
No tocante a precificação do futuro, o economista norte americano Paul Samuelson certa vez disse que Wall Street havia previsto dez das últimas seis recessões nos EUA. O fato dos economistas só eventualmente acertarem suas previsões está diretamente associado à economia não ser, para a frustração de muitos dos meus colegas de profissão, uma ciência exata, mas sim social e moral como considerava Keynes. Na realidade, não dá para fazer ilações macrodinâmicas a partir da agregação de decisões microeconômicas dos agentes econômicos como se estes não tivessem interesses divergentes. Isso significa dizer, em outras palavras, que não dá para desconsiderar o caráter político da política econômica, cujo sucesso está diretamente relacionado à capacidade de negociação com os diferentes segmentos da sociedade civil.
Recentemente o economista Olivier Blanchard, que está longe de ser considerado um heterodoxo, foi criticado por seus pares por afirmar que a inflação é o resultado da luta dos agentes econômicos (empresários e trabalhadores) por maior apropriação da riqueza gerada no país. Assim, reduzir um fenômeno tão complexo como a inflação à uma dimensão puramente monetária (excesso de demanda sobre a oferta) é o que tem levado o próprio Blanchard a criticar a visão do “pensamento único” macroeconômico de estabilização de preços: “um instrumento (juros), uma meta (inflação)”.
A reação do mercado financeiro à proposta do novo governo de gestão macroeconômica, a meu ver a razão primordial para a chiadeira, o ponto de discordância está na visão, dita não amigável ao mercado, que a política econômica deve coordenar os instrumentos de políticas monetária e fiscal visando dar estabilidade e sustentabilidade ao crescimento, com inclusão social e desconcentração da renda. A execução de tal política não atende aos interesses do mercado financeiro porque mexe com a estrutura de distribuição da riqueza, alterando a estrutura tributária e tornando-a menos regressiva. Também, requer juros compatíveis com o retorno dos setores produtivos.
A construção de tal sintonia fina entre os instrumentos de política macroeconômica, por sua vez, não só demanda tempo como só é possível com um arcabouço fiscal que envolva tanto o lado dos gastos (com regra crível e ajustável de controle das despesas) quanto o da receita (a partir de uma reforma tributária que possa diminuir o caráter regressivo da distribuição dos impostos no país). Do ponto de vista monetário, para que o sistema financeiro seja funcional (com os recursos fluindo da esfera financeira para a produtiva da economia) a taxa básica de juros não pode ficar acima da taxa de crescimento do PIB.
O legado da macroeconomia amigável ao mercado tem sido a drenagem de recursos dos setores produtivos mais dinâmicos, notadamente o industrial, para o setor financeiro. Ou seja, temos a maior taxa básica de juro real do mundo, de 7,5%aa, alavancando a rentabilidade dos bancos no Brasil, o que explica a presença de quatro entre os dez maiores bancos do mundo (Santander, Itaú Unibanco, Banco do Brasil e Bradesco) no ranking de rentabilidade sobre o patrimônio (ROE) de instituições com mais de US$ 100 bilhões em ativos, segundo levantamento da Economatica em dezembro de 2021. Enquanto o faturamento real da indústria brasileira, por sua vez, caiu 22,5% em relação ao seu pico em agosto de 2013, a participação da indústria de transformação no PIB passou de 15% em 2010 para 11,3% em 2021.
Os reflexos sociais de tal política econômica são pronunciadamente negativos. A taxa média de desemprego (IPEA) que era de 7,4% em 2012 atingiu 13,5% em 2021. De acordo com dados do IBGE no mesmo período, 17,9 milhões de brasileiros estavam na extrema pobreza e 62,5 milhões na pobreza. Estimativa da Organização das Nações Unidas para Alimentação e Agricultura (FAO), 61,3 milhões de pessoas no Brasil lidam com algum tipo de insegurança alimentar.
Em termos de distribuição da riqueza, segundo a BBC, “os 50% mais pobres possuem apenas 0,4% da riqueza brasileira (ativos financeiros e não financeiros, como propriedades imobiliárias) (…) Os 10% mais ricos no Brasil possuem quase 80% do patrimônio privado do país. A concentração de capital é ainda maior na faixa dos ultra-ricos, o 1% mais abastado da população, que possui, em 2021, praticamente a metade (48,9%) da riqueza nacional. Nos Estados Unidos, o 1% mais rico detém 35% da fortuna americana”.
As consequências econômicas e sociais desse quadro de exclusão não podem ser ignoradas no desenho da política de desenvolvimento para o país. Para enfrentar esse desafio, é preciso desconstruir a narrativa que a política econômica com responsabilidade social é prejudicial aos setores produtivo e financeiro. Na realidade, no tocante aos primeiros, tal política sustenta a necessidade da maior articulação entre as políticas industrial, agrícola, comercial, tecnológica e ambiental, endereçando as parcerias estratégicas entre os setores públicos e privados. Quanto aos bancos, tanto públicos como privados, é preciso resgatar a funcionalidade do sistema com foco no financiamento aos setores produtivos a taxas que permitam a rentabilização dos investimentos.
Transitar da política amigável aos interesses do mercado financeiro, adotada até então, para uma que contemple o bem-estar da maioria da sociedade não será fácil. Mas estou convencido de que as perspectivas de desenvolvimento econômico, social e ambiental para o Brasil dependerão do sucesso de tal transição e que, como diz um velho adágio popular, “não se faz omelete sem quebrar ovos”.