segunda-feira 23 de dezembro de 2024

Há 50 anos: ‘Deixo a Funai para não continuar a ser coveiro de índios’, alertou alagoano

Na década de 1970, sertanista Antônio Cotrim Soares denunciou genocídio indígena promovido por governo militar; tragédia se repete nos dias atuais

30 de janeiro de 2023 3:27 por Geraldo de Majella

Antônio Cotrim Soares | Reprodução/Youtube

O sertanista alagoano Antônio Cotrim Soares, de 82 anos, trabalhou, inicialmente, como voluntário na Fundação Nacional do Índio (Funai), convivendo por mais de 10 anos com indígenas da região Norte e do Maranhão. Em 1965, com 24 anos de idade, deixou Maceió rumo a Belém, capital do estado do Pará, onde manteve contatos e passou a trabalhar com outros sertanistas.

Cotrim participou da primeira expedição de contato com indígenas realizada na Ditadura Militar, no ano de 1965. Durante vários anos trabalhando como sertanista na região amazônica, testemunhou mortes de indígenas causadas pela Funai, propositalmente, ao deixar faltar vacinas para os funcionários que mantinham contatos com os povos indígenas, contribuindo para que estes levassem doenças até então desconhecidas pelos povos nativos até as tribos.

A Funai era ocupada por militares – coronéis, majores, tenentes e generais. Os sertanistas, entre eles, Antônio Cotrim, criaram frentes de atração e pacificação, no entanto, a mortalidade gerada pela forma de contato com os povos originários, realizada pelo Estado brasileiro, foi enorme.

“Os parakanã foram contaminados com doenças venéreas, febre e outras doenças. Alguns foram constatados com  doenças venéreas. Morreram de 18 a 20 índios. Mandaram um enfermeiro, eu estava no mato, onde ficava durante dias. O enfermeiro vacinou vários índios com a mesma seringa, contaminando e levando à morte. Naquela época, não existia seringa descartável”, relata.

Reprodução

Os relatórios do sertanista alagoano passaram a incomodar os militares pelo grau das denúncias sobre o que vinha acontecendo com os povos indígenas, sendo a Funai a responsável direta pelas mortes. A farta documentação produzida por Antônio Cotrim é, no período da Ditadura Militar, a primeira denúncia de genocídio contra os povos indígenas feita por um funcionário do órgão estatal responsável pela proteção destes brasileiros.

As denúncias feitas pelo alagoano à imprensa nacional, do massacre praticado por agentes do Estado brasileiro, deixam evidente, de forma clara e documentada, que a orientação da Funai resultaria no desaparecimento das populações indígenas.

Em entrevista ao Jornal do Brasil, em 20 de maio de 1973, declarou: “Já estou cansado de ser coveiro de índios. Transformei-me em administrador de cemitérios indígenas”. Essas denúncias foram feitas solitariamente por um cidadão, funcionário público no período mais violento da Ditadura Militar, que ficou conhecido como os “anos de chumbo”.

A Antônio Cotrim e aos muitos outros funcionários da Funai que não sucumbiram naquele período e, também, aos atuais funcionários que não se submeteram à tirania do governo Bolsonaro, devemos o alerta dado e a mobilização em defesa dos povos indígenas.

Demissão e ameaça de prisão

Por discordar dos rumos tomados pela Funai, Antônio Cotrim reuniu-se com Apoema Meirelles e Orlando Villas Bôas para deliberar sobre o que fazer diante dos fatos trágicos que vinham acontecendo. A decisão foi de que era necessário assumir posições públicas.

Os contatos com a imprensa nacional foram feitos a partir do conhecimento de Apoema Meirelles. A ideia básica era denunciar a corrupção, as mortes e, com isso, atingir o objetivo de derrubar o general Bandeira de Melo para reformular a Funai. A ideia também era que o órgão passasse a ser vinculado à Presidência da República.

No dia 27 de junho de 1972, através da portaria 196/P, o general Bandeira de Melo demitiu Cotrim por justa causa e mandou abrir um processo para caracterizá-los – outros três funcionários também foram demitidos – todos como comunistas, conforme é publicado no Correio Braziliense, de 9 de julho de 1972.

Um mês após as demissões, o sertanista Apoema Meirelles, filho de Francisco Meirelles, companheiro do marechal Rondom, faz a seguinte declaração ao Jornal do Brasil: “É de estranhar que homens com os Villas Bôas, com grande conhecimento de causa, também se houvessem calado, assim como meu pai, Chico Meirelles, no momento em que Cotrim, um sertanista de extraordinário valor, resolveu abrir o jogo”.

Trabalho sujo

O trabalho sujo teve continuidade durante o governo Bolsonaro com o genocídio dos Yanomami, tendo, novamente, a Funai como operadora de mais uma barbárie. Não é coincidência ter entre os dirigentes militares e civis que assassinaram indígenas, facilitaram a aliança entre traficantes de drogas, contrabandistas de ouro e outros minerais e madeireiros identificados pela Policia Federal, mas, que foram protegidos pelo então ministro do Meio Ambiente, Ricardo Salles, e pelo presidente da República.

Diário de Campo

Na penúltima página de seu Diário de Campo, de 1968, Cotrim sistematiza uma lista de “assassinos de índios” com nove nomes, com atuação entre os marcos 1 e 3 do mapa da área indígena onde vivia o povo Parkatejê Gavião antes de sua remoção forçada para mais de 200km de suas terras.

“O cacique não exerce nenhum poder coercitivo, que se resolve emprestar à sua figura. O índio não conhece a hipocrisia social. A etmologia moderna prova que a cultura indígena não é primitiva em relação à nossa, mas, paralela. Não se salta de uma cultura para outra sem que na transição percam as características culturais, econômicas, sociais e tribais. A integração deve ser feita de maneira lenta e progressiva, o índio só sobreviverá dentro de sua própria cultura. Possui um patrimônio que não é apenas brasileiro, pertence a própria humanidade. Não há lugar para o índio dentro da nossa civilização”, escreve.

Reprodução

Veja entrevista com Antônio Cotrim:

Fonte: armazemmemoria.com.br/acervos-pessoais-antonio-cotrim-soares/

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6 Comentários

  • Que bom saber de pessoas assim, corajosas, como o sertanista Cotrin.

  • Muito importante é adequada ao momento a matéria, com a entrevista, sobre Antônio Cotrim. Espero que, após a reorganização da Funai, o órgão possa contar com o apoio de sertanistas da qualidade de Cotrim .

  • Excelente matéria do grande Majella sobre uma das figuras mais adoráveis que ja conheci, mostrando como voltamos no tempo.

  • Antes de tudo, parabéns pela excelente matéria e pelo resgate da figura desse grande sertanista alagoano – Antonio Cotrim Soares. Em segundo lugar, a matéria me traz grande decepção com pessoas que eu tanto respeitava, como os Villas Bôas, Francisco Meirelles e certamente muitos outros, pela omissão no genocídio indígena de na perseguição a Soares, embora saiba o quanto trabalharam pelos indígenas. Por fim, não deixo de repetir: os crimes contra os indígenas, o sangue indígena, cobre as mãos dos brasileiros há 500 anos. Nos omitimos agora, com os yanomamis e outros povos, como dantes… há 500 anos…

  • Infelizmente, o indígena, ainda não é gente, “está quase lá”!, como foi dito por alguém, há pouquíssimo tempo!

  • Parabéns, Majella, pelo excelente texto com o querido tio Toinho que realmente tem uma bela e atribulada vida. Apenas uma correção: acho que a grafia correta é Apoena, e não Apoema. Ficou algumas vezes hospedado na casa da Hilda em Brasília. Merecia um texto também essa figura importantíssima do sertanismo brasileiro. Abraços.

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