quinta-feira 18 de abril de 2024

Indivíduo e coletividade em “Lavoura arcaica”

Júlio González, Camponês com um grande forcado, c.1920

Por Fábio Luiz San Martins*, para o site A Terra é Redonda

Considerações sobre o livro de Raduan Nassar

“André: Era Ana, era Ana, Pedro, era Ana a minha fome, era Ana a minha enfermidade, ela a minha loucura, ela o meu respiro, a minha lâmina, meu sopro…” (Raduan Nassar, Lavoura arcaica).

“André: ‘Se já tenho minhas mãos atadas, não vou por iniciativa atar meus pés, também. […] Não se pode esperar de um prisioneiro que sirva de boa vontade na casa do carcereiro. Da mesma forma, de quem amputamos os membros, seria absurdo exigir um abraço de afeto. Maior despropósito que isso, só mesmo a vileza do aleijão, que, na falta das mãos, recorre aos pés para aplaudir o seu algoz; age quem sabe com a paciência proverbial do boi: além do peso da canga, pede que lhe apertem o pescoço entre os canzis. Fica mais feio o feio que consente o belo. Mais pobre o pobre que aplaude o rico; menor o pequeno que aplaude o grande; mais baixo o baixo que aplaude o alto. E assim por diante. Imaturo ou não, não reconheço mais os valores que me esmagam. Acho um triste faz-de-conta viver na pele de terceiros, e nem entendo como se vê nobreza no arremedo dos desprovidos; a vítima ruidosa que aprova o seu opressor se faz duas vezes prisioneira, a menos que se faça essa pantomima atirada por seu cinismo” (Raduan Nassar, Lavoura arcaica).

Lavoura arcaica, de Raduan Nassar, publicada pela primeira vez em 1975, é considerada pela crítica literária especializada uma obra clássica da literatura de ficção brasileira do século XX.

Com estilo caudalosamente poético, Nassar reconta a parábola do filho pródigo, tendo como núcleo uma família camponesa. André, o protagonista do enredo, carrega os segredos inconfessáveis da família: ama Ana, sua irmã, e é correspondido nesse amor, mas impossibilitado de viver essa paixão incestuosa, duplamente dolorosa pela culpada rejeição de Ana e pelos austeros códigos de conduta do Pai, resolve fugir da fazenda e aventurar-se nas decepções, nas misérias e na solidão de uma vida fora dos laços familiares.

Pedro, o filho primogênito, é encarregado pela Mãe de descobrir o paradeiro do filho ausente e trazê-lo novamente para o seio da família, a qual desde sua fuga mergulhara em sombria desolação e tristeza. Pedro cumpre sua missão, e tem-se, a partir do retorno de André, o desenvolvimento trágico da trama.

No mais longo e tenso capítulo da obra, o Pai e André dialogam sobre os motivos que o levaram abandonar a família.

O Pai primeiramente olha com tristeza o rosto de André, constatando nele marcas que desfiguravam suas adolescentes expressões. Afirma, então, ao filho que elas eram fados de ele ter “abandonado a casa por uma vida pródiga” (Lavoura arcaica, p. 158). André concorda que levou longe da família uma vida dissipadora, mas sem rodeios replica ao Pai que “a prodigalidade também existia em nossa casa” (Lavoura arcaica, p. 158).

O Pai espanta-se com esta fala de André, na medida em que a fazenda, embora modesta de recursos e baseada no trabalho solidário de todos os seus integrantes, jamais deixou de prover as necessidades básicas dos filhos: “Nossa mesa é comedida, é austera, não existe”, diz o Pai, “desperdício nela, salvo nos dias de festa” (Lavoura arcaica, p. 159). André, por sua vez, volta a confundir as noções do rigoroso e sisudo Pai dizendo que essa mesa, tão generosa dos bens necessários, não continha os “alimentos” que ele ansiava para “apaziguar sua fome”(Lavoura arcaica, p. 159).

Que espécie de “fome” era aquela, indaga o velho Pai (cada vez mais convencido da “loucura do filho”), que não era satisfeita com a colheita dos produtos da terra lavrada pela própria família, com o pão amassado pelas mãos diligentes da Mãe e das irmãs? O Pai manda que André seja mais “claro” nas suas palavras, que dê ordem a seu pensamento e responda sem volteios incompreensíveis “por que abandonou a família”.

André argumenta, em contrário, que jamais “abandonou” a família: “Desde minha fuga, era calando minha revolta (…) que eu, a cada passo, me distanciava lá da fazenda, e se acaso distraído eu perguntasse ‘para onde estamos indo?’ – não importava que eu, erguendo os olhos, alcançasse paisagens muito novas, quem sabe menos ásperas, não importava que eu, caminhando, me conduzisse para regiões cada vez mais afastadas, pois haveria de ouvir claramente de meus anseios um juízo rígido, era um cascalho, um osso rigoroso, desprovido de qualquer dúvida: ‘estamos indo sempre para casa’.” (Lavoura arcaica, p. 35-36)

Na verdade, acrescenta André, a fuga de casa era uma forma que ele encontrou para poupar a família de vê-lo “sobrevivendo à custa das (…) próprias vísceras”(Lavoura arcaica, p. 160), de evitar expor suas carências que não lhe “apaziguavam a fome”; como “queria o (…) lugar na mesa da família” e não o possuía partiu para encontrá-lo em outras “mesas” pelo mundo afora.

O Pai vê nessas palavras de André sintoma de alguma “enfermidade” (“Você está enfermo, meu filho…” Lavoura arcaica, p. 161), pois não condiziam com a realidade: jamais faltou pão e outros bens necessários à vida da família, e os pais e irmãos nunca proibiram que André se ausentasse da mesa quando fosse “repartido o pão” (Lavoura arcaica, p. 161); ao contrário, continua o Pai, foi quando abandonou a família que a presença dele foi mais lamentada por todos eles: como, pergunta o cada vez mais chocado Pai, foge de casa para encontrar em outros lares, em mesa de estranhos, o lugar que era dele no seio da família?

Com efeito, o Pai não poderia compreender as aspirações do filho, pois André não ansiava apenas a presença física na mesa da família, dividindo com os irmãos e os pais o “pão” bem como outros alimentos para simplesmente sobreviver: André almejava compartilhar com a família seus sentimentos e incertezas, dividir e consumir outro “pão”: sua individualidade e liberdade. É o que declara ao Pai: “… eu só estava pensando nos desenganados sem remédio, nos que gritam de ardência, sede e solidão, nos que não são supérfluos nos seus gemidos; era só neles que eu pensava” (Lavoura arcaica, p. 165).

André reclama, pois, “direito à vida” (p. 166), e considera o ambiente familiar regido por normas e leis que lhe são “hostis” (p. 166), porque incapazes de saciar e “apaziguar sua fome”. Ele aspira à liberdade e a uma vida que não se resumisse a uma cansativa jornada de trabalho na lavoura e noutras tarefas domésticas; por isso replica ao Pai: “Ninguém vive só de semear, pai” (p. 163). André explica, então, ao Pai: o fato de não ter o seu “lugar na mesa da família” levava-o a representar, “vivendo na pele de terceiros” (p. 164). Como repelia profundamente essa “pantomima” (p. 164), porque o sufocava de um modo intolerável, resolveu, por isso, fugir da fazenda.

Esse magnífico diálogo não mostra apenas choque entre “tradição e liberdade” (como nota Amoroso Lima em comentário de divulgação do romance), entre as “solenes” leis do patriarca e as exigências de vida e de liberdade do filho. Revela, sobretudo, que a histórica luta humana por liberdade e vida dignificantes requerem antes bases materiais maduras para que essas superiores aspirações se realizem.

André era membro de uma família patriarcal, cujas condições de existência material se erguiam sobre bases precárias e pouco evoluídas: a produção era voltada para o autoconsumo, e até onde se extrai da leitura do romance nem sequer dispunha de produto excedente para intercâmbio com outras comunidades camponesas: “(…) é enxergando os utensílios, e mais o vestuário da família, que escuto vozes difusas perdidas naquele fosso, sem me surpreender contudo com a água transparente que ainda brota lá do fundo; e recuo em nossas fadigas, e recuo em tanta luta exausta, e vou puxando desse feixe de rotinas, um a um, os ossos sublimes do nosso código de conduta: o excesso proibido, o zelo uma exigência, e, condenado como vício, a prédica constante contra o desperdício, apontado sempre como ofensa grave ao trabalho; e reencontro a mensagem morna de cenhos e sobrolhos, e as nossas vergonhas escondidas no rubor das faces, e a angústia ácida de um pito vindo a propósito, e uma disciplina às vezes descarnada, e também uma escola de meninos artesãos, defendendo de adquirir fora o que pudesse ser feito por nossas próprias mãos, e uma lei ainda mais rígida, dispondo que era lá mesmo na fazenda que devia ser amassado o nosso pão: nunca tivemos outro em nossa mesa que não fosse o pão-de-casa, e era na hora de reparti-lo que concluímos, três vezes ao dia, o nosso ritual de austeridade, sendo que era também na mesa, mais que em qualquer outro lugar, onde fazíamos de olhos baixos o nosso aprendizado da justiça.” (p. 79)

Os meios de ganhar-se a vida e reproduzi-la em condições mínimas e estáveis eram bastante limitados na família de André, de modo que o coletivo devia, por isso, colocar-se à frente das necessidades individuais. Exigia-se que os membros individuais sacrificassem suas aspirações pessoais em favor das necessidades do coletivo, e era justamente o Pai, o patriarca da família (guardião das tradições e das leis familiares), o amálgama que, por sua autoridade, conferia unidade ao todo, disciplinava as peças individuais que uma vez bem dirigidas podiam, assim, garantir no fio da navalha a reprodução continuada da família.

Portanto, as rigorosas normas de conduta, de vigilância permanente, a austeridade no trato dos bens da família assim como no trabalho do campo não decorria, como acusava André, de uma mera imposição brutal da vontade do Pai, mas nasciam das próprias condições da vida familiar: estas eram muito precárias e modestas para permitir que os indivíduos pudessem expressar suas aspirações e, simultaneamente, garantir a mínima sobrevivência familiar.

Se o individual prevalecesse sobre o coletivo corria-se o risco de a vida da família fragmentar-se num caos de “mônadas isoladas recolhidas dentro de si mesmas” (Marx, A Questão Judaica), situação na qual cada um dos seus membros faria do outro simples meio para alcançar seus objetivos egoístas e exclusivos (Marx, Grundrisse), sem direta relação com a comunidade familiar, e mesmo em oposição a ela, cujos resultados incertos poderiam ser catastróficos para a sua futura existência. Motivo pelo qual eram necessárias, para manter viva a unidade familiar, a inconteste autoridade do patriarca, as suas exigências de disciplina no trabalho e nos hábitos, ao menos enquanto vigorasse essa mesquinhez na reprodução da existência material da família.

Isso explica os sermões do patriarca antes das refeições, quando eram sempre repetidas as seguintes palavras: “(…) humilde, o homem abandona sua individualidade para fazer parte de uma unidade maior, que é de onde retira sua grandeza; só através da família é que cada um em casa há de aumentar sua existência, é se entregando a ela que cada um em casa há de sossegar os próprios problemas,é preservando sua união que cada um em casa há de fruir as mais sublimes recompensas; nossa lei não é retrair mas ir ao encontro, não é separar mas reunir, onde estiver um há de estar o irmão também…” (Lavoura arcaica, p. 148).

Razão pela qual o áspero diálogo do Pai e de André revela inevitavelmente mútua incompreensão: o Pai não entendia as ideias do filho, julgando-as “extravagantes”, meros “disparates”, reflexos de “perturbações” e até de “murmúrios do demônio”, porque as aspirações de André, se realizadas, alterariam todo o quadro tradicional da existência familiar, relegando o coletivo a um plano inferior ao do individual, sem que, entretanto, as condições materiais que propiciassem tão dramática reviravolta ainda estivessem prontas.

André, por outro lado, não compreendia também as razões da dureza e rigidez do Pai: considera-o seu “carcereiro” e “algoz” (p. 164), e não se colocava a questão (porque tal como o Pai não está preparado para propô-la) se suas justas e nobres reivindicações poderiam ser atendidas por um modo de produção da vida tão modesto e primário; reconhecendo-se, nesse caso, impotente diante do poder e da autoridade do Pai, André apela, então, explicitamente ao irracional: “… aos derrotados de partida, ao fruto peco já na semente, aos arruinados sem terem sido erguidos, não resta alternativa: dar as costas para o mundo ou alimentar a expectativa da destruição de tudo…” (p. 166). Resigna-se, assim, passivamente à realidade, vez que não podendo mudá-la, e sentido-se principalmente incapaz de nela adaptar-se, prefere então sua destruição total.

Eis é o sentido da conclusão trágica desse lindíssimo romance: durante a festa em que a família e amigos comemoravam o retorno de André, Ana bruscamente aparece vestida de “dançarina oriental”, decorada de adereços e objetos de uma caixa furtivamente furtada a André e que este ganhara das mulheres que conheceu pelo mundo. Ao mesmo tempo, o Pai toma conhecimento através de Pedro do incesto e parte furioso com um “alfanje” nas mãos rumo à erótica dançarina, golpeando-a mortalmente: o horror da trágica cena apavora a família e o romance se encerra com os gritos e suplícios da Mãe e filhos.

O destino trágico dos personagens centrais de Lavoura arcaica não decorre somente de a relação incestuosa dos irmãos contradizer as piedosas normas ancestrais guardadas com zelo irredutível pelo patriarca.

O conflito entre as aspirações de liberdade e vida dignificantes, representadas por André e Ana e pela relação amorosa deles, colidem-se com as condições materiais da vida familiar, inadequadas porquanto imaturas para realizá-las; a solução desse choque e antagonismo deve, por isso, concluir-se tragicamente. Não é o incesto (para escândalo de muitos) o núcleo do trágico, mas o conflito insolúvel, no interior das condições de vida familiar, entre as aspirações de André de “um lugar na mesa da família” e as possibilidades de realizá-las.

É o que ocorre também em outro momento do romance: Ana depois de entregar-se amorosamente a André mergulha num sentimento de pesarosa culpa e recolhe-se na capela da fazenda; André tenta convencê-la do seu amor, mas Ana mantém-se impassível, ajoelhada no altar, rezando indiferente aos apelos de André; este, então, é tomado por uma violenta cólera pela rejeição de Ana, e bem poder-se-ia questionar o ato extremo de André e seu acesso de fúria e impaciência: por que ele não aguardou que os sentimentos culposos de Ana não fossem absorvidos com o tempo? Quem sabe dias depois ela não cederia a seus apelos apaixonados?

Se Raduan Nassar tivesse desenvolvido a trama conforme estas indagações não teria produzido boa literatura, mas um piegas roteiro para novela televisiva: a grande literatura de ficção busca os extremos nas relações humanas, aonde os conflitos podem ser explorados ao máximo, e os personagens são apenas veículos dessas tensões e forças contraditórias que movem concretamente os homens desde sempre na história.

*É doutor em economia pela Universidade Federal do Paraná (UFPR).

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