segunda-feira 29 de abril de 2024

Avanço do mar na foz do São Francisco leva fome a quilombolas de Alagoas

A razão para este avanço é a redução drástica dos níveis de vazão no Velho Chico
Reprodução

Por Adriana Amâncio, do Mongabay

O sal é um tempero conhecido por fazer a diferença no preparo do alimento. Mas na dieta das famílias quilombolas da comunidade de Pixaim, no litoral de Alagoas, ele tem sido o algoz. Aqui, o sal em questão é da água do mar, que tem avançado sobre as águas doces do Rio São Francisco, invadindo o solo e as águas subterrâneas das comunidades do entorno.

A razão para este avanço é a redução drástica dos níveis de vazão no Velho Chico. Em 2018, quando a vazão do rio atingiu o número mais baixo, 550 m³, a água do mar se estendeu por 16 quilômetros sobre o leito fluvial, gerando um percentual de salinidade entre 2,59 e 4,50 ppm (partes por milhão).

Segundo o Conselho Nacional do Meio Ambiente (Conama), para ser considerada doce, a água precisa registrar teor de salinidade inferior a 0,5 ppm. Isso significa que, em 2018, a água do rio São Francisco estava cinco vezes acima do nível tolerado. A sigla ppm quer dizer partes por milhão, que mede a proporção do sal diluída na água, o que faz com que esta seja considerada doce ou salobra.

Esses dados são do artigo científico “Agricultura familiar no baixo São Francisco: estudo de caso em comunidades rurais ribeirinhas em Alagoas”, produzido por um grupo de pesquisadores da Universidade Federal de Alagoas (Ufal).

Uma das bases dessa pesquisa são os relatórios das Expedições Científicas do Baixo Rio São Francisco, força-tarefa científica que reúne pesquisadores de diversas instituições acadêmicas e empresas estatais dos estados de Alagoas, Pernambuco e Paraíba. Anualmente, as expedições traçam uma radiografia do Rio São Francisco, atualizando dados sobre os principais problemas ambientais que afetam o rio.

Algumas casas da comunidade quilombola de Pixaim ficam a poucos metros das margens do Rio São Francisco e, mesmo assim, as famílias sofrem com a falta de água para o plantio devido ao alto teor de sal. Foto: Iara Calixto/arquivo pessoal

Levando em conta que esse processo vem ocorrendo há mais de três décadas, hoje o solo e as águas subterrâneas chegaram a um ponto crítico, como explica o professor e pesquisador da Universidade Federal de Alagoas (UFAL), Emerson Soares. “A intrusão salina sempre existiu como um fenômeno natural, que dependia das marés altas. Mas, com a construção da barragem de Xingó, a cunha salina foi se intensificando”, diz. Cunha salina é o termo que define a intrusão do sal, ou seja, a água do mar que avança, pela profundidade, sobre a água doce.

A barragem de Xingó, construída em 1987, é considerada uma das mais importantes para o sistema hidrelétrico nacional por abastecer boa parte da região Nordeste com energia elétrica. Ela está localizada entre os municípios de Piranhas, em Alagoas, e Canindé de São Francisco, em Sergipe, a 250 km da foz do São Francisco, e retém 3,8 bilhões de m³ de água.

Quando a maré das praias estava alta, a água salgada naturalmente avançava sobre o rio. A partir do momento em que foram construídas barragens de enrocamento, ou seja, aquelas que retêm a água para a produção de energia elétrica, as vazões começaram a reduzir de forma drástica. A combinação de poucas chuvas, intensificada pelo avanço dos efeitos das mudanças climáticas, e comportas fechadas resulta na baixa vazão do rio.

“As barragens que seguram água do rio [São Francisco] são Três Marias, em Minas Gerais, Sobradinho, na Bahia, e Itaparica, no sertão de Pernambuco”, enumera Emerson.  A Usina Três Marias movimenta 21 bilhões de m³ de água. Já Sobradinho comporta 34 bilhões de m³, e, por fim, a barragem de Itaparica movimenta 11 bilhões de m³.

À medida que essas barragens retêm esses grandes volumes de água para a produção de energia elétrica, a vazão do rio fica ainda mais baixa. “Em outras palavras, é um monopólio na água do Rio São Francisco. O sistema elétrico monopoliza a água enquanto as comunidades ficam sem acesso ao recurso”, explica Emerson.

Mesmo em anos de baixa pluviosidade, o que por si só faz com que o rio perca volume de água, as barragens de enrocamento permanecem retendo grande quantidade de água sob o argumento de que, caso contrário, o sistema poderá entrar em situação de alerta.

Usina Hidrelétrica de Xingó, no Rio São Francisco. Foto: High source, CC BY-SA 4.0, via Wikimedia Commons

Agricultores transformados em pescadores

Por conta desta salinidade, a secular cultura do arroz, responsável pelo sustento das mais de 40 famílias da comunidade de Pixaim, na área rural de Piaçabuçu, Alagoas, tornou-se inviável. A agricultora e pescadora Angelita Santos Calixto, por exemplo, hoje tem como única fonte de sobrevivência a pesca.

Angelita costumava plantar arroz em regime de arrendamento. Ela arrendava o pedaço da terra e pagava o aluguel com parte da colheita de arroz. “Se a terra [alugada]tivesse um alqueire, a gente pagava de quatro a cinco sacos de arroz”, explica.

O plantio do arroz tem início entre os meses de março e abril, período da chuva, e leva entre quatro e cinco meses até a colheita. Segundo Angelita, a colheita pode ultrapassar alguns dias caso a semente do arroz seja “demorada”, ou seja, leve mais tempo para se desenvolver.

Parte do município de Piaçabuçu está tomado por dunas de areia, protegidas por uma Área de Proteção Ambiental. Pixaim está isolada atrás das dunas, e todo deslocamento  deve ser feito de barco. Foto: Farol da Foz Ecoturismo, CC BY-SA 3.0, via Wikimedia Commons

No início dos anos 2000, lembra ela, as sementes começaram a atrofiar, ou seja, cresciam pouco ou não brotavam. O solo havia perdido a capacidade de produzir devido ao excesso de sal. “Tinha vezes que dava para ver o salitre, aquilo branco na plantação”, recorda.

O arroz não apenas deixou o prato das famílias mais vazios, assim como também os bolsos e a história alimentar desta comunidade tradicional da qual essa cultura fazia parte há séculos. “Hoje a gente só come arroz se comprar, mas eu não gosto desse arroz da rua [do supermercado], acho que tiram toda a vitamina do arroz. Eu prefiro o arroz que eu plantava”, queixa-se Angelita.

Outro cultivo tradicional que desapareceu foi a mandioca, ingrediente essencial no preparo do bolo de massa puba. Essa iguaria acompanhava a cultura alimentar dos quilombolas do Pixaim há várias gerações, mas, hoje, só pode ser consumida se for comprada na padaria ou supermercado. Dona Angelita recorda ainda que o quiabo era outro alimento abundante na comunidade antes da salinidade tornar o solo impróprio.

“A gente plantava o quiabo no meio do munduru [monte feito de estrume com uma covinha no meio]. Abria aquele buraquinho e botava a semente. Dava muito quiabo, a gente botava no feijão e alguns a gente vendia”, lembra a pescadora.

Sem muito tempo para pensar, pois o ronco da barriga não dava descanso, dona Angelita começou a pescar para sobreviver. De acordo com ela, a salinidade também não dá sossego à pesca: no verão, os peixes de água doce ficam mais escassos no rio. Quando a vazão do rio baixa e a água salgada invade o leito do São Francisco, os peixes que habitam o rio se afastam ou morrem por não terem estrutura física adaptada para a sobrevivência na água salgada.

“O peixe [de água doce]que não é acostumado com o sal, vai embora para longe. Não dá para ir até lá pescar três vezes ao dia. Gasta muito tempo e muito dinheiro [com o combustível para movimentar o barco]”, explica.

Cavar poços para achar água

A salinidade também compromete o acesso à água de consumo humano da comunidade de Pixaim. Sem acesso a água encanada e rede de esgoto, os moradores precisam cavar poços artesianos.

“Aqui, cada um mora em um canto, então, cada um cava um poço. Tem poço que apanha duas casas [famílias], tem poço que apanha três quatro casas, mas, não é em todo lugar que dá água boa. Aí vai cavando até achar água boa. A gente não recebe carro-pipa, a gente não tem ajuda de ninguém”, diz Angelina.

As famílias de Pixaim têm dificuldade de acessar água de qualidade, por isso chegam a cavar poços até encontrar água minimamente adequada ao consumo humano. Foto Arquivo Sete Segundos

Encontrar saídas para viabilizar o cultivo de alimentos em Pixaim seria determinante para devolver a soberania alimentar do seu povo. Mas a solução para isso não é simples, rápida e muito menos barata, como explica o pesquisador Emerson Soares.

“A instalação de dessalinizadores, a exploração de águas nos aquíferos, o uso de tanques-pulmão são alternativas caras, que não podem ser implementadas de qualquer jeito. Antes de serem instaladas, dependem de estudos, da aquisição de outorgas e licenças ambientais, além da aquisição de equipamentos caros”, diz Emerson.

Os dessalinizadores são tecnologias que purificam a água salobra ou salgada. Já os aquíferos são formações geológicas subterrâneas que armazenam e movimentam as águas em condições naturais. Por fim, os tanques-pulmão são estruturas cilíndricas gigantes que possuem capacidade de armazenar e tratar grandes volumes de água com baixo teor de salinidade.

Desde março deste ano, moradores da área urbana de Piaçabuçu contam com água melhorada por tanques-pulmão, viabilizada por um projeto implementado pelo Comitê da Bacia Hidrográfica do Rio São Francisco. Foram instalados três tanques com capacidade total para armazenar 875 m³ de água oriunda de um manancial com menor teor de sal. Mas a iniciativa de mitigação da salinidade não chegou à área rural, especialmente atrás das dunas que encobrem a comunidade quilombola de Pixaim.

A reportagem da Mongabay fez contato com a prefeitura de Piaçabuçu para saber se há previsão de extensão do projeto de melhoramento da salinidade da água implantado no meio urbano para a comunidade de Pixaim. Também fizemos contato com o Instituto Chico Mendes de Conservação da Biodiversidade (ICMBio) para saber quais medidas estão sendo tomadas em relação ao problema da salinidade. Nenhum dos órgãos retornou nosso contato.

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