segunda-feira 2 de dezembro de 2024

FLIP e a falsa inclusão negra em território colonial

Entre mesas compostas apenas por pessoas brancas e fantasiadas de colonizadores pelas ruas, escritores negros e independentes não têm espaço
Imagem mostra construções no Centro Histórico de Paraty,
Foto: Patricia Santos/Reprodução

Por Patricia Santos, do Alma Preta

A Festa Literária Internacional de Paraty (FLIP) acontece desde 2003 e todos os anos homenageia um escritor ou escritora com relevância no cenário da literatura. Há tempos a feira é alvo de manifestações por falta de diversidade, tanto de gênero como de etnia. Em 2023 não foi muito diferente, apesar de Pagu ter sido a homenageada, ainda faltam corpos pretos e vivos nos espaços.

A cidade de Paraty (RJ) foi fundada em 1667 e é considerada Patrimônio Histórico Nacional e, desde 2019, também Patrimônio Misto da Humanidade pela Organização das Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a Cultura (UNESCO) e parece se orgulhar em manter um cenário com resquícios de escravidão. O município chegou a ter 250 engenhos registrados em 1820.

A Estrada do Ouro, considerada um tesouro histórico de Paraty, foi construída por negros escravizados entre os séculos 17 e 19, era rota de envio de metais preciosos extraídos de Minas Gerais para Portugal e se tornou rota clandestina de tráfico de pessoas e escoamento da produção de café que se iniciava pela região.

Todos os comércios do centro histórico têm a mesma estética, as ruas são feitas de pedras gigantes e escorregadias que foram colocadas por pessoas pretas escravizadas, enquanto a burguesia andava de charrete que, inclusive, ainda é um meio de transporte da região, usada para passeios em rotas que foram de tráfico, além de pessoas vestidas como colonizadores da época. Me assustei, não posso negar.

Tive a impressão de ouvir as chicotadas, a sensação de já ter estado ali e num djavú, que nem sei explicar direito. Pude ver o sofrimento dos meus semelhantes em um filme que se passava na minha cabeça: pessoas pretas no mar na tentativa de se salvar da escravidão.

Mas falando do evento em si, preciso reforçar que Maria Firmino dos Reis foi a única mulher negra a ser homenageada, isso em 2022. O que me fez questionar se mulheres negras não escrevem textos relevantes o suficiente para serem reconhecidas em um ambiente colonial como é a cidade de Paraty? Parece que não para os curadores que organizam as mesas.

Passei por algumas e apenas mulheres brancas ocupavam as cadeiras. Na platéia, mulheres brancas e homens caucasianos assistiam, aplaudiam e entendiam as “dores” de quem estava ali. Essas devem ter vendido livros à beça.

Sou poeta e artista, escrevo textos que poderiam ser assunto de uma mesa e longe de mim querer me gabar, mas em comparação às pessoas que estavam lançando seus livros, cheio de histórias que não contam a realidade da maioria dos brasileiros, me revoltou um bocado.

Carla Akotirene, que esteve em uma das principais mesas do evento e levantou questões importantes para uma multidão de gente branca que assistia. Foi um dos momentos mais gratificantes que tive: uma mulher retinta, nordestina, falando com tanta autoridade e empoderamento sobre todo tipo de violência que assola o povo preto.

As escritoras pretas que conheço e que estavam ali não tiveram metade do reconhecimento, as mesas que ocuparam para debater textos e vivências pretas e periféricas não tinham um terço do engajamento.

Mesa de debate sobre a literatura periférica.
Mediada por Daniela Rosa, a mesa que contou com Patricia Jimin, Brenalta, Tawane Teodoro e Jéssica Campos abordou a literatura periférica e os desafios de escrever enquanto pessoas pretas. Foto: Patricia Santos

A poeta e escritora Patricia Jimin frequenta a FLIP há anos e sempre teve que “manguear”, ou seja, sair de boca em boca oferecendo um ou mais de seus oito livros publicados, para pessoas que nem sempre estavam dispostas a comprar… dela, já que viraram a esquina e entram em livrarias cheias de obras brancas, de escritores que nem estavam ali fisicamente.

Perguntei para as escritoras “quantas mesas você assistiu na FLIP?” e a maioria respondeu a mesma coisa: “eu estava ocupada tentando vender meu livro”, “não assisti porque as histórias não me contemplam”. E eu as entendo, estava fazendo o mesmo.

Uma artesã da Baixada Fluminense comentou sobre o descaso de espaços que são voltados para poéticas negras serem administrados por pessoas brancas que estão mais interessadas em receber os 20% da venda dos artistas independentes que estavam expondo, do que dar o mínimo de suporte e comodidade.

Choveu durante a semana e os espaços tiveram a estrutura comprometida por lama e falta de energia elétrica. Faltou também água para beber e para usar o banheiro.

Vi goteiras caírem no material de artistas que investiram forte para estarem ali e no fim saíram no prejuízo. Em espaços maiores, isso não aconteceu, mas também não tinham pessoas pretas ali.

Espero que ano que vem algo mude na FLIP. Quero ver pessoas parecidas comigo em painéis de debates que falem da minha realidade e a realidade da maioria dos que vivem no Brasil.

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