Por Dindara Paz, do Alma Preta
Era o ano de 1987 quando o bloco afro Olodum lançou o álbum “Egito Madagáscar”, primeiro disco do grupo que revolucionou a cena musical brasileira ao enaltecer a influência da mitologia egípcia para o povo negro e a cultura afro-brasileira.
No entanto, o barulho provocado pelos tambores do Olodum também não passou despercebido pela censura, que, mesmo após o fim do regime militar em 1985, atuou na fiscalização das produções culturais e artísticas do país através da Divisão de Censura de Diversões Públicas (DCDP), órgão vinculado ao Departamento da Polícia Federal.
Fundado em 1979, o Olodum só lançou o seu primeiro disco após oito anos da sua criação e o LP chamou atenção por revelar um Egito negro e com contos, até então, pouco explorados pela história dita tradicional.
Temáticas sobre a cultura africana já eram trabalhadas pelo Olodum em carnavais anteriores, como em 1984, quando o bloco teve como tema a Tanzânia.
Documentos obtidos pela Alma Preta Jornalismo, através do acervo do Arquivo Nacional, mostram que a composição de nove músicas do disco “Egito Madagáscar” chegaram a ser enviadas para análise ao DCDP em São Paulo.
Além da lista de músicas, o Departamento também tinha informações sobre as letras e os compositores. Todas as letras do álbum foram aprovadas pelo DCDP.
Um dos fundadores do Olodum e atual presidente da Fundação Palmares, o ativista João Jorge Rodrigues explica que a ideia original do bloco ao lançar o álbum era radicalizar a produção musical baiana.
“Esse material, que não foi censurado negativamente, passou pela censura porque era muito estranho. Não era comum afoxé, bloco afro, falar essas coisas, montar essa estrutura de capas e contracapas e dar linguagem e formato que, até então, não era tão interessante”, comenta João Jorge.
Foi através do álbum que a música “Faraó”, considerada um dos hinos do Olodum, estourou pelo país. A canção, cujo título original é “Deuses, cultura egípcia Olodum”, foi composta por Luciano Gomes quando ele tinha por volta de 21 anos e foi eternizada na voz da cantora Margareth Menezes.
A música, segundo João Jorge, narra o início do mundo através da mitologia egípcia ao mesmo tempo em que resgata uma ancestralidade repleta de riqueza sobre a população africana. “Essas músicas causavam um impacto terrível porque dava à pobreza um material, uma experiência divina e ancestral que os colonizadores portugueses não tinham”, destaca o ativista.
A ‘nota destoante do Carnaval’
Considerado o primeiro bloco afro do Brasil, o Ilê Aiyê também era observado de perto pelas autoridades. Em 1984, o Serviço de Censura de Diversões Públicas, através da Superintendência Regional da Bahia, emitiu um documento com uma lista de letras musicais autorizadas para o Carnaval daquele ano.
Dentre as canções, três eram do Ilê: “Instrumento da Raça”, composição de Haroldo Medeiros; “Depois que o Ilê passar”, de Nilton Souza de Jesus; e “Ilê, se eu não gostasse de você”, de Nilton Fernandes da Silva.
À Alma Preta Jornalismo, Antônio Carlos dos Santos Vovô, um dos fundadores e presidente do Ilê, revela que desconhecia que as canções passaram por análise da censura. Ele ainda avalia que as letras chamavam atenção pelo levante ao empoderamento negro.
“Obviamente eles ficaram muito preocupados com esse movimento do Ilê Aiyê pelo fato de ser um bloco que veio designado e dirigido só por negros. Tanto que no Carnaval de 1975 o jornal ‘A TARDE’ colocou aquela nota chamando a gente de racista, que a nota destoante do Carnaval foi o Ilê Aiyê”, relembra.
Criado em 1° de novembro de 1974, durante a Ditadura Militar, o Ilê Aiyê foi pioneiro ao ser formado exclusivamente por pessoas negras. Um ano depois, o grupo colocou o seu bloco nas ruas e enfrentou as autoridades em um período marcado por repressões.
Nas suas músicas, a exaltação da beleza negra, a emancipação do povo negro e a denúncia contra a violência policial eram as principais bandeiras nas letras do Ilê, o que pode ter causado um alerta por parte das autoridades, conforme conta Vovô.
“Tudo o que a gente ouvia de ruim: que o negro fede, que o negro é feio, que seu cabelo é ruim, tudo a gente voltava de forma positiva. Assim, fomos conquistando a consciência do povo negro, resgatando esse orgulho de ser negro, mas as músicas também começaram a falar de negro no poder e sei que eles ficavam de olho nisso tanto que ouvi, em uma gravação, o secretário de segurança pública na época dizer para ter cuidado com esses ‘mocinhos’ que eles queriam tomar o poder”, conta Vovô.
Perseguição
Para além da atuação no Carnaval, os blocos Ilê Aiyê e Olodum também tiveram importante participação em ações do movimento negro em Salvador. Encontros, palestras e reuniões também foram monitoradas durante o período da Ditadura.
Um documento de 1983, do Serviço Nacional de Informações (SNI), detalhou como foi o ‘I Encontro de Negros do Estado da Bahia’ e listou entidades e militantes que participaram do evento, a exemplo do Ilê Aiyê.
Classificado como “confidencial”, o documento descreve o seguinte: “O Encontro contou com a presença de 400 participantes, todos de cor negra, e visou discutir os meios para vencer as barreiras que ‘impedem’ a ascensão do negro na escala social. Foram discutidas as consequências da perseguição policial sofrida pelo negro; as dificuldades encontradas para a manifestação da sua cultura; e as formas de luta para ocupar maiores espaços dentro da comunidade, inclusive ocupação de cargos públicos de maior destaque, dentre eles a eleição de vereadores e deputados. A tese de que o negro é maioria na população do Estado reforçou todos os argumentos apresentados”.
Apesar do Ilê nunca ter sido notificado sobre suas letras de música, Antônio Carlos Vovô conta que era frequente a perseguição da polícia nos ensaios do bloco.
“Nós nunca fomos notificados sobre a questão da música. Nos ensaios a polícia vinha sempre aqui. Tinha uma patrulha chamada ‘mista’ que sempre ficava aqui na rua. Qualquer coisa eles suspendiam os ensaios. A gente tinha que pegar as fichas de inscrição e levar para a Secretaria de Segurança Pública para eles darem o visto porque a gente só saia depois disso”.
Outro encontro do movimento negro monitorado pelo SNI foi o IX Encontro de Negros do Norte e Nordeste, realizado em 1989, em Salvador. Na ocasião, o evento contou com a presença de nomes importantes do movimento negro no país, como o ativista Abdias do Nascimento; a deputada Benedita da Silva; o ativista Gilberto Leal, na época, representante do Núcleo Cultural Niger Okan (BAHIA), entre outras entidades, como o bloco Os Negões e o Núcleo Cultural Afro-Brasileiro do Calabar. O ex-presidente do Olodum, João Jorge, também é citado no documento.
Mesmo após o fim da Ditadura, integrantes do Olodum sofreram uma série de perseguições e atentados cometidos pela polícia. O primeiro aconteceu em 1990, quando o diretor artístico do grupo, Eusébio Queiróz, foi baleado após ser “confundido” com um assaltante.
Em 1993, o percussionista Gilmário Marques de Andrade também foi atingido por tiros dados por um soldado. Segundo nota da Folha de São Paulo na época, o músico teria sido “confundido” pelo soldado com um homem suspeito de não pagar dois picolés.
Já no ano seguinte, em 1994, um episódio fatal marcou a história do grupo, quando o percussionista Joselito Alves Barbosa, que na época tinha 21 anos, foi assassinado por um policial militar com um tiro na testa.
“Nós choramos durante dois dias. Na terça-feira nós fomos até a Piedade, levamos 50 instrumentos e colocamos na porta da Secretaria de Segurança Pública e dissemos que só íamos sair de lá quando eles aparecessem com os policiais que atiraram”, conta João Jorge.
Após o episódio, os policiais envolvidos no assassinato foram presos e condenados. “A sequência de ameaças foi mostrando que a lógica era carimbar como um grupo criminoso, violento e atingir pessoas, músicos, diretores”, cita o ex-presidente do Olodum.
Contribuições
A atuação musical dos blocos afro é apenas uma das vertentes para emancipação do povo negro. O Olodum, por exemplo, foi criado inicialmente como uma opção de lazer para a comunidade do Maciel/Pelourinho, que na época era abandonado e marginalizado pelas autoridades e sociedade baiana.
A partir de uma reformulação do Olodum, nos anos 80, o grupo ampliou as suas atividades e se tornou um dos pioneiros na adoção de ações sociais nas comunidades, como o Festival de Música e Artes Olodum (FEMADUM), a escola Olodum, o bando Teatro Olodum, além do Centro Digital de Documentação e Memória, que reúne uma série de documentos, livros, vídeos, abadás, com intuito de preservar a trajetória do grupo.
“Não éramos mais um bloco afro antigo, não era só mais um bloco de Carnaval, era uma ação social permanente e impactou em todos os blocos afros. A maioria passou a ter uma escola, uma atividade social, procurou-se ter sede, relações internacionais, e no nosso caso, o modelo que a gente cunhou em 84 é um modelo dos blocos afros hoje. O Olodum não foi o primeiro, mas foi o pioneiro em busca de política e sociabilidade”, diz João Jorge.
Tombado pela ONU como Patrimônio Cultural Imaterial do Estado da Bahia, o Olodum se tornou um dos mais importantes símbolos da música baiana, principalmente pela criação do samba-reggae, criado pelo maestro Neguinho do Samba.
‘Fizemos revolução através da música’
Desde a sua fundação, o Ilê Aiyê, considerado patrimônio cultural da Bahia, também desenvolve projetos sociais voltadas para a promoção de crianças e adolescentes de comunidades nas áreas da educação e arte através da Escola de Percussão, Canto e Dança, a Banda Erê e a Escola Mãe Hilda, nome da ialorixá que deu início a história do bloco.
A escola impulsionou a criação da Lei 10.639, que estabelece a inclusão da história e cultura afro-brasileira nas instituições de ensino de todo o país.
“A grande contribuição do Ilê Aiyê, ao invés de ficar fazendo reuniões e discursos que o pessoal já estava de olho, nós fizemos a revolução através da música e isso foi seguido pelos outros blocos exaltando a raça negra, a beleza da mulher negra e isso também deu para aumentar o empoderamento”, cita Vovô.
Carnaval 2024
No Carnaval de 2024, o Olodum traz como tema “Wodaabe: O Povo do Sorriso – Uma História de Beleza e Diversidade”, em celebração a um grupo nômade africano em que as mulheres detêm, principalmente, poder econômico.
O bloco inicia os desfiles a partir da sexta-feira (09), às 15h, no Circuito Batatinha, no Pelourinho, centro histórico de Salvador. No mesmo dia, às 19h, o Olodum sai no Circuito Osmar, na Avenida Campo Grande, centro da capital baiana.
No domingo (11), o grupo desfila no Circuito Dodô, na Barra-Ondina, com concentração a partir das 14h. Na terça (13), o Olodum volta para o circuito Osmar, na Avenida, às 11h. Confira aqui a programação completa.
Já o Ilê tem como tema “Vovô e Popó, com o Axé de Mãe Hilda Jitolu, a Invenção do Bloco Afro – Ah, se não Fosse o Ilê Ayiê”. O título é uma homenagem aos fundadores do bloco, Antônio Carlos dos Santos Vovô e Apolônio Souza de Jesus Filho, conhecido como ‘Popó’.
A programação do bloco será no sábado (10), às 21h, com saída no Curuzu. Já na segunda (12) e na terça (13), o Ilê desfila com seu bloco no circuito Osmar, no Campo Grande, às 18h e às 19h, respectivamente. Confira aqui a programação completa.