Por Fabio de Sá e Silva, do The Intercept Brasil
No dia 7 de maio de 2024, terça-feira, uma comitiva da extrema direita brasileira foi ao congresso norte-americano para denunciar o que afirmam ser um regime de censura no Brasil, comandado por uma aliança entre o ministro do Supremo Tribunal Federal, o STF, Alexandre de Moraes, e o presidente Lula.
Para apresentar o necessário contraponto, convidado pelos democratas, estava este humilde colunista. Não comentarei sobre meu próprio depoimento, pois seria suspeito para fazê-lo.
Houve certa repercussão no momento em que ergui a foto de Vladimir Herzog, jornalista assassinado pela ditadura civil-militar brasileira, que depois tentou alegar que ele havia se suicidado na prisão. A isso, chamei de “ter sido suicidado”, embora não saiba se os congressistas entenderam.
No geral, busquei enfatizar:
1) O contexto em que os tribunais brasileiros tomaram decisões de suspender postagens e perfis – ataques bolsonaristas ao STF desde 2020 e tentativa de golpe de estado em 2022;
2) os motivos pelo quais a suspensão de postagens e perfis é plenamente possível no direito brasileiro; e
3) meu ponto favorito, a audácia de certos congressistas americanos que, com o dedo em riste, acusam nossos tribunais de violarem a “liberdade de expressão” sem terem o mais básico conhecimento do direito brasileiro e do funcionamento de nossas instituições.
Quero comentar, no entanto, o mau desempenho das testemunhas dos republicanos. Os depoimentos destes consistiram em:
1) Manifestar preconceito contra homossexuais e judeus – fato que não passou despercebido pela deputada democrata Susan Wild;
2) apelar para teorias da conspiração, como as de que há um complô mundial financiado por George Soros e que a CIA ajudou a colocar Lula na presidência – narrativa na qual nem a deputada republicana Maria Salazar embarcou; e
3) mostrar a falta de credenciais democráticas, pois sequer são capazes de reconhecer que o golpe de 1964 foi uma ruptura com a democracia.
Ao final da audiência, estava claro, para quem assistiu in loco, que esse mau desempenho deixou o presidente do subcomitê que abrigou a audiência, o deputado Chris Smith, visivelmente desconcertado.
“Smith não conseguiu obter o que queria,” disse-me um assessor dos deputados democratas, “e as testemunhas mostraram suas verdadeiras cores” (their true colors, expressão da língua inglesa para “mostrar sua verdadeira face”).
Considerando a quantidade de trolls na plateia, achei que a metáfora fazia sentido(na trilha sonora da animação Trolls da DreamWorks, há música com esse mesmo título, true colors, gravada por Justin Timberlake e Anna Kendrick)
Esse mau desempenho justifica, em parte, porque os bolsonaristas deram pouca divulgação à audiência, pela qual lutaram durante meses.
Outra parte da explicação vem de que parlamentares desse campo estavam, em bloco, tirando fotos e gravando vídeos nos EUA no momento em que brasileiros do Rio Grande do Sul enfrentavam a maior enchente de uma geração, que, entre mortos, feridos e desalojados, gerou estatísticas dignas de guerra.
Nisso, também me distanciei deles. Comecei meu discurso enviando meus “pensamentos e orações” às vítimas das enchentes, às quais manifestei minha irrestrita solidariedade.
Mas 24 horas depois, a maior parte daqueles congressistas estava de volta à carga nas redes sociais, espalhando desinformação sobre a enchente.
Essas fake news têm consequências reais e perniciosas
O pesquisador David Nemer, da Universidade da Virgínia, que há anos observa a movimentação da extrema direita nas redes, disse que desde a eleição de 2018 nunca viu um volume tão grande de fake news, veiculadas por meio de texto e vídeos falsos ou descontextualizados.
Minha percepção é que nunca vi um volume tão grande de fake news como agora (sobre o RS). O mais próximo disso foi na campanha do Bolsonaro em 2018. Isso mostra: o financiamento da infraestrutura humana da desinformação está pesado, estão investindo muito dinheiro nisso.
— David Nemer (@DavidNemer) May 10, 2024
Um estudo da USP, divulgado originalmente pela jornalista Daniela Lima, da Globo News, identificou três linhas principais em torno das quais essas práticas de desinformação se estruturaram:
1) o Estado não ajuda – não chega a tempo; é preguiçoso;
2) o Estado atrapalha – cria obstáculos a quem efetivamente se mobiliza, os cidadãos e os milionários; e
3) pânico econômico, com previsão de desabastecimento e estímulo a que as pessoas estocassem alimentos.
Segundo igualmente noticiou Lima, entre os principais disseminadores dessas fake news, estão justamente alguns dos réus nos inquéritos das fake news e dos atos antidemocráticos.
Ironia do destino, as forças armadas agora estavam entre os principais alvos desses perfis. “É como se esses disseminadores estivessem indo à desforra agora,” disse à jornalista, “por conta do que o Exército não fez no 8 de Janeiro; alguns deles escrevem isso mesmo.”
Essas fake news têm consequências reais e perniciosas. Elas prejudicam a atuação das autoridades e podem ter aumentado o número de vítimas, pois diminuem a coesão social e a possibilidade de cooperação entre Estado e cidadãos em um momento crucial.
Não à toa, o Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul ordenou que fossem removidas sob pena de multa.
Às vésperas da audiência dos bolsonaristas no congresso americano, havia quem dissesse que a chave do país em relação aos inquéritos do STF estava virando, o Judiciário vinha se desgastando e caminhávamos para uma anistia.
Que a extrema direita está trabalhando para que seja assim mesmo, não há dúvida. Mas a audiência nos EUA e a desinformação em torno das enchentes do RS mostraram que o uso da mentira como arma política pela extrema direita não é uma “ameaça que passou” .
Cabe às instituições não se deixarem levar pela enxurrada.