Por Orlando Calheiros, do The Intercept Brasil
Me permitam um preâmbulo.
O ano é 2021, grupos bolsonaristas no Whatsapp e Telegram registram picos de atividade, dedicando-se quase que exclusivamente a difusão de notícias falsas a respeito da pandemia de Covid.
Digo “quase que exclusivamente”, pois entre os anúncios de remédios milagrosos sem nenhuma comprovação científica e teorias da conspiração a respeito da real natureza do vírus, corriam estranhos ataques direcionados a algumas autoridades militares.
Mensagens apócrifas que os “denunciavam” enquanto comunistas disfarçados – ou seria melhor dizer recalcados? -, xingando-os de “melancias”, pois “verdes por fora e vermelhos por dentro”. Mostravam imagens dessas mesmas autoridades presentes em eventos do governo Lula e Dilma. Uma prova cabal de seu suposto alinhamento político, diziam!
Detalhe crucial de toda essa histórias, essas autoridades “denunciadas” ou faziam parte ou orbitavam a alta cúpula do governo Bolsonaro.
Você ouviu falar disso? Provavelmente não. Os ataques coordenados aos militares jamais conseguiram ganhar a tração necessária para ultrapassar as fronteiras dos grupos mais extremistas do Bolsonarismo, o próprio “coração” de todo esse ecossistema.
Os ataques não ganharam tração – e digo isso sem medo – pois os militares ainda eram tidos como um dos principais aliados do governo. Mais do que isso, os colocavam como sendo a última linha de defesa da nação contra as ameaças do marxismo cultural e da máquina de terrorismo biológico do regime chinês.
Com outras palavras, no fantástico submundo da extrema-direita, os militares seriam os anticorpos da nação contra as ameaças que adoeciam as mentes e os corpos dos brasileiros.
No entanto, por mais que estes ataques aos militares tenham falhado em seu intuito e se tornado irrelevantes num contexto mais geral da política, a sua mera existência indicava algo que estava longe de ser trivial: um conflito intestino no e pelo “coração” do Bolsonarismo.
Um conflito que se originava na cisma entre olavistas e os próprios militares pelo comando de pastas estratégicas do governo Bolsonaro. Mas quis a história que ambos perdessem essa disputa para o Centrão!
Porém, essa é, com o perdão da repetição, uma outra história, o que nos importa aqui é que essa cisma reemerge no ocaso do governo Bolsonaro. Evento do qual a caserna sai com a pecha de traidora e covarde por supostamente não ter embarcado na tentativa fracassada de golpe de Estado.
Essa alcunha de traidora, inclusive, lhes custou a confiança de uma parcela considerável de outros segmentos da direita, ao ponto disso aparecer em pesquisas quantitativas realizadas no ano passado.
E por que estou rememorando essa história? Porque ela nos ajuda a compreender o presente e, de certa forma, antecipar o futuro. Ela nos ajuda a entender o sentido de um dos eventos mais aterradores do momento: a quantidade de notícias falsas envolvendo a tragédia no Rio Grande do Sul, especialmente aquelas envolvendo militares.
E como os leitores antigos dessa coluna devem imaginar, eu não tenho qualquer preocupação com a preservação da imagem dos militares, a minha questão aqui é outra, é compreender o que esses ataques representam e, tão importante quanto, quem se beneficia deles.
Para que se tenha ideia, um levantamento da Quaest indicou que, entre os dias 3 e 10 de maio, 70% das menções ao Exército nas redes sociais foram negativas. Em sua maioria esmagadora, “notícias” e “denúncias” que circulam por meio de perfis ligados a direita.
Esse tipo de ataque, especialmente em meio a uma tragédia de proporções inéditas na história no país, não acontece de forma espontânea, ao acaso.
Imagine, se entre tanta destruição, mortes e tristeza, a prioridade das pessoas, do povo, seria atacar o exército. Tudo isso é fruto de uma ação coordenada e muito bem coordenada. E como toda ação coordenada ela tem um propósito!
Setores da direita parecem ver na tragédia gaúcha uma oportunidade única para recuperar ou conquistar o protagonismo político dentro da própria direita, ao mesmo tempo em que propagam sua mensagem para grupos mais amplos.
Com efeito, a tragédia é um evento que não pode ser ignorado. As direitas sabem bem disso. E por isso mesmo estão se dedicando tanto para controlá-lo, isto é, para controlar a forma como a tragédia será absorvida pela imaginação, e portanto pela memória da população. Em suma, como tragédia será transformada em fato político.
Tentam reescrever a realidade enquanto ela ainda acontece.
Uma tarefa hercúlea, é verdade, mas não é a primeira vez que fazem isso. Vimos algo muito semelhante durante a pandemia. Uma mobilização que até hoje rende frutos políticos e econômicos para as direitas brasileiras.
A grande diferença, agora, é que todo esse ecossistema não esta mais centrado na figura do ex-presidente Jair Bolsonaro. Que, inclusive, diga-se de passagem, é cada vez menos citado. A rede parece mais voltada para a produção de novas lideranças pensando nas municipais deste ano e nas eleições de 2026, especialmente para o Senado.
E é nesse contexto, justamente, que o ataque coordenado aos militares ganha sentido. Surfam na imagem negativa da caserna para ganhar tração entre os setores mais radicais(leia-se golpistas) da própria direita.
Setores que, não por coincidência, são os mais ativos de todo esse ecossistema. Conquiste-os e você conquistará a própria rede. Afinal, eles são o seu próprio “coração”, responsáveis por “bombear” a desinformação para os outros setores da direita e até mesmo para grupos mais gerais e amplos da população. Onde marcam presença por meio de perfis falsos e estratégias de ocupação de espaços virtuais.
Reitero, infelizmente não há nada de novo nisso, o “coração” da direita segue incólume bombeando desinformação para reescrever e controlar a realidade dos fatos, sejam esses fatos uma pandemia de escala global ou uma tragédia climática no Sul do país. Afetando a mente e a memória de milhões de brasileiros. Uma máquina política de desinformação que se deleita com a leniência do judiciário e na orientação cada vez mais evidente das big techs.
Contudo, é importante que se diga isso, que se trata de uma história que se repete. Mas também devemos apontar para a diferença nessa repetição. Pois essa máquina, o ecossistema da direita, está se transformando, gradualmente abandonando seus antigos líderes, como o próprio Bolsonaro, e alguns de seus antigos tentáculos, como os militares.
E oportunistas que são, viram na tragédia gaúcha a oportunidade perfeita para isso, para se transformarem.
Melhor dizendo, “parasitas que são”.