8 de julho de 2024 3:48 por Redação
Magno Francisco é filósofo
Apesar de ter perdido a eleição presidencial, Bolsonaro e o bolsonarismo seguem numa posição ofensiva em relação a política nacional. Sistematicamente esse campo tem pautado o debate público com propostas reacionárias e neoliberais em torno das questões morais, de gênero, segurança pública, privatização, retirada de direitos e destruição dos serviços públicos.
Uma ação recente neste sentido foi o Projeto de Lei 1904/2024, chamado de PL do estupro, proposto pelo deputado bolsonarista Sóstenes Cavalcante (PL/RJ), que criminaliza vítimas de estupro, caso elas engravidassem em decorrência da violência sexual e decidissem abortar. Arthur Lira, numa postura reveladora da sua natureza política, colocou o projeto em votação Mandraque e o projeto foi aprovado em 23 segundos. Graças a enorme mobilização nacional das mulheres, o projeto foi retirado de pauta, mas ainda não foi completamente derrotado.
Em São Paulo, o vereador bolsonarista, Rubinho Nunes (União Brasil), apresentou o projeto, aprovado na câmara de vereadores em primeiro turno, que multava em R$ 17 mil quem alimentasse pessoas famintas que morassem nas ruas. O objetivo do projeto era atacar o humanista Padre Júlio Lancelotti, mas a verdade é que atacou mesmo a própria figura de Jesus Cristo, torturado e assassinado pelo Império Romano exatamente por estar ao lado dos pobres e famintos. Após a repercussão negativa, Rubinho Nunes decidiu dar fim ao projeto.
Mas não é só o neoliberalismo fascista que adota uma posição ativa no debate público, o neoliberalismo “democrático” também. Na última semana os banqueiros exerceram uma grande pressão sobre o governo Lula em torno da pauta do ajuste fiscal. Diariamente as manchetes dos principais veículos de imprensa exibiram a alta do dólar e o “nervosismo” do mercado após as declarações de Lula de que não pretendia mexer no dinheiro dos aposentados e que não compreendia pagamento de salário como gasto, mas como investimento.
Segundo a Folha de São Paulo[1], o ministro da economia, Fernando Hadad, convenceu Lula de que era preciso se render aos interesses do capital financeiro e fazer ainda mais cortes de investimentos nas áreas sociais para garantir o ajuste fiscal. Resultado: o governo anunciou que fará um corte de R$ 25,9 bilhões do orçamento, dinheiro que poderia estar sendo utilizado para garantir melhores condições de saúde e educação, mas que, retirado dessas áreas, vai garantir o pagamento dos juros da dívida pública aos banqueiros, um assalto aos cofres públicos que só em 2023 representou 43.23% dos gastos públicos, ultrapassando R$ 1,89 trilhão.
É de se perguntar: por que o esforço de Hadad não foi no sentido de taxar as grandes fortunas ou mesmo de realizar uma auditoria do assalto aos cofres públicos realizado com o pagamento da dívida pública? A verdade é que, observando as medidas econômicas, se trocasse o Fernando Hadad pelo Paulo Guedes (ministro da economia do governo Bolsonaro) no comando do Ministério da Fazenda, ninguém notaria a diferença.
Ironicamente, após o anúncio do corte de R$ 25,9 bilhões para garantir o famigerado ajuste fiscal, os banqueiros, insaciáveis como sempre, já anunciaram que não é suficiente, que o governo deve cortar mais das áreas sociais para garantir os seus lucros. Não haverá surpresa se o governo federal anunciar que pretende mexer nos pisos salariais do funcionalismo público, especialmente da educação e da saúde, afinal, é preciso tirar o pão dos filhos para dar aos cachorrinhos, dito de outro modo, a lógica de Hadad é tirar o pão da boca dos trabalhadores para acalmar o mercado.
Não adianta qualquer posição ufanista querer justificar a manutenção da política neoliberal do governo Lula a correlação de forças no Congresso Nacional ou atribuir todos os males do Brasil a Arthur Lira. Todo mundo sabe que a maioria do Congresso é conservadora e que Lira é um representante do que há de mais nefasto na política brasileira, mas reconhecer isso é o mesmo que chamar o Diabo de Diabo.
Ora, não foi com o apoio do PT e dos demais partidos da base do governo que Lira foi reeleito presidente da Câmara dos Deputados? Qual é o tipo de política que o governo fez para fortalecer a eleição de parlamentares de esquerda nas cidades e nos estados? Pior: qual foi a pauta em favor da classe trabalhadora que o governo Lula apresentou e foi rejeitada pelo Congresso Nacional? A quem interessa o arcabouço fiscal de Hadad?
Todas as principais propostas que o governo Lula enviou para o Congresso foram para agradar os banqueiros e o agronegócio. Se, pelo menos tivesse tentado, a culpabilização exclusiva dos Congresso faria algum sentido. Mesmo uma derrota numa situação assim, vamos imaginar que acontecesse, pautaria o debate público, mobilizaria a sociedade, de forma que uma derrota momentânea poderia se transformar numa vitória posterior.
Assim, só podemos concluir que o debate público no Brasil está resumido as pautas impostas pelo neoliberalismo fascista ou o neoliberalismo “democrático”. A burguesia vive um verdadeiro mar de rosas num jogo de ganha-ganha. Para garantir a ampliação da exploração da classe trabalhadora e manter seu domínio social em todas as dimensões da vida, rosta com o neoliberalismo fascista de um lado e faz chantagem com o neoliberalismo “democrático” por outro.
A única possibilidade de alteração desta situação é se a classe trabalhadora conseguir desenvolver um amplo processo de mobilização para exigir suas demandas. Porém, é preciso dizer, isso não interessa ao petismo, que aposta numa política de desmobilização dos movimentos sociais e sindicatos, fazendo com que a atuação desses atores se limite a veneração messiânica de Lula e a votar a cada dois anos.
Prova disso foram os ataques por parte da máquina de propaganda do governo aos trabalhadores das universidades e institutos federais em greve por salário. A mentira repetida mil vezes era a de que os educadores federais eram “leões no governo Lula e mansos no governo Bolsonaro”.
Os educadores federais, apesar da pandemia, realizaram as primeiras e as maiores manifestações contra o governo Bolsonaro exatamente para enfrentar o desmonte da educação como resultado da política de ajuste fiscal e de cortes de gastos, essa mesma que Hadad decidiu continuar. Sem a atuação decidida dos servidores da educação federal, seria praticamente impossível derrotar Bolsonaro eleitoralmente.
A classe trabalhadora precisa retomar o seu protagonismo. Para isso, é obrigatório perder as ilusões. O neoliberalismo sepultou o Estado de bem-estar e com ele sepultou a esquerda reformista. Não é por acaso que o petismo vestiu a fantasia neoliberal e decidiu cair na gandaia no carnaval do capitalismo, dançando no ritmo frenético e insaciável do capital financeiro e do agronegócio.
Sem a consciência de que não há reconhecimento possível para os explorados nesta etapa da história, os trabalhadores não poderão assumir o seu papel de sujeito da história e o neoliberalismo, em sua versão fascista ou neoliberal, seguirá sem ameaças, para felicidade geral dos explorados do povo.
É urgente a consolidação no Brasil de um campo revolucionário da esquerda, em situações de crise política e social, o morno é vomitado, conforme a passagem bíblica do livro de Apocalipse. O fascismo compreendeu isso, daí o seu discurso antissistema, em que pese a falsidade, se tornou alternativa política. Quem duvida que a militância bolsonarista se mobiliza em torno de um ideal de revolução conservadora?
No apocalipse neoliberal, que tem como sujeito o capital financeiro e como projeto a barbárie, a esquerda que merece o seu nome precisa reconstruir o sujeito que defende a vida e a humanidade, para isso, resta o dever de assumir a posição revolucionária e pautar a sociedade, minando as contradições do capitalismo, escancarado os efeitos das suas finalidades políticas, mas, acima de tudo, pautando a sociedade, o que significa exigir o impossível até se tornar inevitável.