Por Estevam Silva, do Opera Mundi
Há 53 anos, em 27 de novembro de 1971, falecia o jornalista Apparício Torelly, o “Barão de Itararé”. Fundador do semanário “A Manha“, Torelly se notabilizou como o pioneiro do humorismo político no Brasil, fazendo um brilhante uso da sátira como instrumento de denúncia e crítica social.
Apparício Torelly nasceu em Rio Grande, no interior do Rio Grande do Sul, em 29 de janeiro de 1895. Era filho da uruguaia Maria Amélia Brinkerhoff e do brasileiro João da Silva Torelly, um veterano da Revolução Federalista, que lutou ao lado dos republicanos castilhistas. Perdeu a mãe aos dois anos de idade, após Maria Amélia cometer suicídio.
O pai então o enviou para o Uruguai, onde Torelly viveu na fazenda do avô. Retornou ao Brasil em 1902, sendo posteriormente matriculado em um internato jesuíta na cidade de São Leopoldo. Aos 13 anos, evidenciando um talento precoce para o humor, Torelly criou “O Capim Seco“, um jornal escrito à mão dedicado a satirizar os padres e professores do colégio.
Aos 17 anos, Torelly ingressou na Faculdade de Medicina e Farmácia de Porto Alegre. Seu verdadeiro interesse, entretanto, era a escrita. Em 1916, utilizando o pseudônimo “Apporelly”, publicou seu primeiro e único livro — “Pontas de Cigarro“, um compilado de poemas versando sobre a pobreza. Dois anos depois, lançou “O Chico”, seu primeiro jornal de humor.
Ainda em 1918, Torelly sofreu um AVC, que lhe deixou como sequela a hemiplegia (paralisia de um dos lados do corpo). No ano seguinte, abandonou o curso de medicina, passando a se dedicar exclusivamente ao jornalismo, escrevendo para diversos jornais do interior gaúcho. Em 1925, em busca de novas oportunidades e de um clima mais quente, que atenuasse os efeitos da hemiplegia, Torelly se mudou para o Rio de Janeiro.
Na antiga capital, Torelly escreveu para “O Globo“. Em 1926, estreou no jornal “A Manhã“, de Mário Rodrigues, assinando a coluna “Amanhã Tem Mais” — onde conquistou um público fiel com seu humor cáustico, suas frases de efeito e os abundantes trocadilhos com nomes de políticos. No mesmo ano, fundou seu próprio semanário, batizado de “A Manha“, parodiando o nome e até mesmo a diagramação de seu periódico anterior.
Publicado entre 1926 e 1959, a “A Manha” se converteria em um marco do jornalismo brasileiro, destacando-se por conseguir harmonizar conteúdo informativo, análise política e verve humorística, realizando críticas contundentes ao governo, às elites e aos grupos reacionários, ao mesmo tempo em que denunciava os problemas sociais e defendia as pautas populares. O jornal serviria de inspiração e referência para quase todos os periódicos satíricos fundados posteriormente, em especial “O Pasquim“.
Em suas colunas, Torelly se notabilizou como frasista excepcional, cunhando expressões sarcásticas e tiradas que até hoje sintetizam particularidades da política brasileira. Comentando sobre o fisiologismo da Primeira República, afirmou que “o mistério de hoje pode ser o ministério de amanhã”. E argumentando em prol da ideia de que nem sempre as aparências enganam, observou que “dali, de onde menos se espera, é que não sai nada mesmo”.
O jornal “A Manha” chegou a ser distribuído como um suplemento do “Diário da Noite“, pertencente ao conglomerado de Assis Chateaubriand, mas era cáustico demais para o gosto dos anunciantes. A parceria durou apenas 5 meses. Ao anunciar o fim da empreitada, Torelly esclareceu que o “A Manha não se vende, apenas se troca por 500 réis”.
Torelly apoiou a Revolução de 1930, que encerrou a política do café com leite e deu início à Era Vargas. Foi um fato ocorrido em meio a esse processo que originou o pseudônimo “Barão de Itararé”. Cedendo ao sensacionalismo, a imprensa havia previsto que a cidade de Itararé, na divisa entre São Paulo e Paraná, serviria de cenário para uma batalha sangrenta entre as tropas de Vargas e de Washington Luís. A batalha, entretanto, nunca aconteceu. Vargas assumiu o governo sem resistência.
Comentando o episódio, Torelly ironizou a adesão de última hora de burocratas ao movimento: “Fizeram acordos. O Bergamini pulou em cima da prefeitura do Rio, outro companheiro que nem revolucionário era ficou com os Correios e Telégrafos (…) e eu fiquei chupando o dedo. Foi então que resolvi conceder a mim mesmo uma carta de nobreza. Se eu fosse esperar que alguém me reconhecesse o mérito, não arranjava nada. Assim, passei a Barão de Itararé, em homenagem à batalha que não houve.”
Embora tenha apoiado a Revolução de 1930, o jornalista criticou de forma incisiva todas as medidas autoritárias do Estado Novo. Referia-se a Getúlio Vargas como “o Gravata Preta”, por sua habilidade em “se adaptar a qualquer roupa e qualquer regime”. Toda a cúpula do governo Vargas ganhou apelidos. O ministro da Cultura, Gustavo Capanema, era Gustavo Capa Anêmica. O general Góes Monteiro era Gás Morteiro. E o chefe da polícia política, Filinto Müller, era o Filinto Mula.
Torelly zombava igualmente dos integralistas, dizendo que seus membros aderiram ao movimento por terem confundido o lema “Deus, Pátria e Família” com “Adeus, pátria e família!”. Foi Torelly quem inventou o apelido de “Galinhas Verdes” para se referir aos integralistas expulsos a pauladas de seu próprio comício na Praça da Sé.
Em 1934, Torelly fundou o “Jornal do Povo“, onde iniciou a publicação de fascículos contando a história do marinheiro negro João Cândido, o líder da Revolta da Chibata. A iniciativa enfureceu os militares integralistas, que reagiram com truculência. Torelly foi sequestrado e espancado por um grupo de marinheiros. No mesmo dia, ao retornar à redação, fez questão de referenciar o episódio, pendurando na entrada de sua sala uma placa com os dizeres “Entre sem bater”.
As ameaças e agressões não intimidaram o jornalista. Em 1935, Torelly se tornou membro-fundador da Aliança Nacional Libertadora (ANL) — frente antifascista e anti-imperialista, vinculada ao Partido Comunista do Brasil (antigo PCB) e liderada por Luiz Carlos Prestes. Em novembro de 1935, a ANL foi responsável por conduzir o Levante Comunista. A sublevação foi esmagada em poucos dias. Sucedeu-se uma onda de repressão brutal.
Acusado de participar do levante, Torelly foi preso, ficando encarcerado por um ano. No Complexo da Frei Caneca, no Rio de Janeiro, foi companheiro de cela do escritor Graciliano Ramos. O jornal “A Manha“, por sua vez, foi tirado de circulação pelos órgãos de censura do governo Vargas.
Posto em liberdade, Torelly trabalhou como cronista no Diário de Notícias. Em 1945, em meio à redemocratização, foi beneficiado pelo decreto de anistia. Reagiu definindo a anistia como “um ato pelo qual os governos resolvem perdoar generosamente as injustiças e crimes que eles mesmos cometeram”. Voltou a publicar o jornal “A Manha“, conseguindo atrair um time destacado de colunistas, composto por nomes como Rubem Braga, José Lins do Rego e Aurélio Buarque de Holanda. Cada vez mais engajado no debate político, o jornalista integrou a comissão provisória da Esquerda Democrática. Filiou-se ao PCB e fez campanha para Yedo Fiuza, candidato dos comunistas à presidência no pleito de 1945.
Em 1947, Torelly se candidatou a vereador do Distrito Federal pelo PCB. Sua campanha teve como foco dois problemas que afetavam os moradores do Rio de Janeiro: a falta de água e a adulteração do leite. Assim, buscou popularizar o slogan “Mais água, mais leite, mas menos água no leite”. A estratégia deu certo e Torelly foi eleito com 3,6 mil votos.
Seu mandato buscou encampar as demandas da população carente, mas teve curta duração. Em maio de 1947, o registro eleitoral do PCB foi cancelado por determinação da justiça. Sete meses depois, Torelly e todos os parlamentares do PCB tiveram seus mandatos cassados. O jornalista fez um debochado discurso de protesto, que lhe rendeu mais uma detenção.
Com dificuldades para manter a circulação do seu jornal, Torelly fez uma parceria com o artista gráfico Andrés Guevara, para lançar seus “Almanhaques” — os almanaques do “A Manha“, trazendo crônicas, curiosidades, jogos e piadas. O jornalista também colaborou com o quinzenário “Para Todos“, dirigido por Jorge Amado, e com o “Última Hora“, o combativo jornal de Samuel Wainer. Em 1963, a convite do governo revolucionário de Pequim, visitou a China. No retorno, passou pela União Soviética.
Profundamente angustiado após o golpe militar de 1964, Torelly sofreu mais um duro baque no ano seguinte — o suicídio de sua esposa, Aída Costa. Passou seus últimos anos recluso em seu apartamento no Rio de Janeiro, dedicando-se ao estudo da filosofia, da matemática e do esoterismo. Faleceu em 27 de novembro de 1971, aos 76 anos de idade.