3 de dezembro de 2024 9:39 por Da Redação
Por Urbs Magna
A investigação da PF (Polícia Federal) sobre um plano de golpe de Estado durante o governo Bolsonaro trouxe à tona o debate sobre o papel das Forças Armadas em eventos golpistas ao longo da História do Brasil.
Ana Penido, cientista social, com mestrado em Estudos Estratégicos da Defesa e da Segurança pela Universidade Federal Fluminense (UFF) e doutorado em Relações Internacionais pelo Programa San Tiago Dantas, diz, em entrevista ao Brasil de Fato, que “o golpe é só o momento mais espetacular da participação política das Forças Armadas. Tem que olhar e mexer nas continuidades. Entram governos de esquerda e de direita e os militares continuam lá“.
“O golpe pode dar certo ou pode dar errado, tanto faz. Mas ele só acontece porque a participação dos militares na política foi consentida pelo poder civil“, afirma Penido. (…) é só um momento extraordinário. Não adianta a gente enfrentar um golpe olhando para um momento extraordinário. Tem que olhar para essas continuidades. E ninguém mexeu nessas continuidades ainda. Entrou um governo de esquerda, entrou um governo de direita, saiu um governo de esquerda, saiu um governo de direita, e as Forças Armadas estavam lá, como elas sempre estiveram“.
Golpes “só acabam em pizza quando eles são feitos por motivações à direita no espectro político e coordenados pelas altas patentes. Quando as insurreições militares foram à esquerda, nós vimos punições duríssimas. Não aconteceu anistia. Até hoje, a Justiça Militar é extremamente punitiva quando se olha para as baixas patentes. Só “dá em pizza” quando você é de direita e quando você é patente alta“.
“Agora, com relação ao histórico, os militares são o aparato coercitivo do Estado e não é possível dar um golpe sem militares. Todas as tentativas de tomada do poder na história do Brasil envolviam militares. Mas, por outro lado, militares sozinhos não dão golpes“.
“Militares necessariamente constroem alianças ou com a elite civil ou com a elite de outros estados nacionais, no caso do Brasil, principalmente com os Estados Unidos. Nunca é uma coisa exclusiva do segmento militar. Uma lacuna que a gente tem que analisar é quem financiou. Militar não é bobo, ninguém tenta um golpe militar sem combinar com quem paga. De onde vem esse financiamento? “
“Golpe é igual guerra. Você sabe como começa, mas você não sabe como termina. É muito difícil planejar um cenário. Tem um aspecto que eu chamaria a atenção: nos documentos, é super dissonante a dimensão de como seria a reação ao golpe”.
“Você vai ver declarações de militares projetando uma guerra civil. E você vai ter declarações de militares falando que não ia acontecer rigorosamente nada, só um funeral bonito”.
Então, é impossível projetar o que teria acontecido “se tivesse dado certo”. Eles projetaram a instalação de um gabinete de crise com diferentes ramos. Eles próprios projetaram o ramo que ia conversar com o Judiciário, o ramo que ia conversar com com o Legislativo, o ramo que é responsável pelas relações com a imprensa e o que é responsável pela dinâmica internacional”.
“Mas quem ia pagar essa conta não está no documento. Quem de fato estava conversando com os financiadores não está no documento, mas eles projetaram a instalação do gabinete de crise bem completo”.
“Pelo o que eu estou observando, a tendência é de que seria um funeral bonito. Porque o comportamento da esquerda está sendo “por a cerveja para gelar”. A punição do Bolsonaro não vai ser jurídica, vai ser política”.
“Ele é um quadro político que teve 58 milhões de votos. A gente acabou de sair de uma eleição municipal em que a esquerda foi derrotada. O Trump acabou de ser eleito nos Estados Unidos. Estou brincando com o povo que está colocando cerveja para gelar porque ela vai empedrar. Não é assim que funciona a luta política, muito menos contra o fascismo”.
“A minha hipótese é de que deu errado porque não havia consenso dentro do Alto Comando das Forças Armadas e também porque o Bolsonaro não assumiu a responsabilidade. Tem uma dimensão institucional, mas sabe aquela coisa do “papel do indivíduo na história”? Normalmente, é uma pessoa que vai puxar as coisas e a gente não viu isso no Brasil em momento nenhum.
” (…) os nossos militares fazem de tudo para se desvincular das coisas que aconteceram. (…) São muitas variáveis, que vão desde disputas internas até a influência dos Estados Unidos. O custo da divergência para um militar é muito alto. Era um cenário em que cinco pessoas, pelo que eles próprios estão falando, foram contra o golpe“.
“Mas tem uma outra questão relevante. Ser contra um golpe de Estado não significa ser a favor da democracia e muito menos ser a favor de um governo do Presidente Lula. Ser contra um golpe de Estado, muitas vezes, pode ser parte de um cálculo de como preservar a sua instituição”.
“Em 1964, eles deram golpe junto com um monte de gente. Um monte de gente cresceu durante a ditadura militar. Mas passou 1988 e começou a ficar feio. Antes do Bolsonaro vir, era feio você declarar que era a favor da ditadura. Mesmo quem era a favor, ficava quieto, caladinho, na moita”.
“A imprensa soltou editoriais pedindo desculpa. Tem uma dimensão de proteção institucional de alguns comandantes que falaram: “olha, vai sobrar para o Exército, esse negócio aqui não vale a pena”.
” (…) o caminho jurídico é o que a gente está observando. Investigar, levantar provas e punir os militares que têm de fato envolvimento, seja na tentativa de golpe do 8 de janeiro, seja nesse plano de assassinato do Lula e do Alexandre Moraes“.
“Na dimensão política, estamos diante de um cenário muito difícil, porque qualquer mudança nas Forças Armadas depende de força social. E não existe um grande movimento social que paute mudanças nas Forças Armadas“.
Discutir Forças Armadas é discutir poder. Isso, de forma geral, está longe da agenda das organizações da esquerda e da direita. De forma geral, as pessoas discutem a curto prazo. As Forças Armadas são uma dimensão de longo prazo. Não vejo por parte do Lula uma predisposição para fazer mudanças. Ele tem feito a opção pela conciliação. Ainda que os militares não queiram conciliar com ele, o governo segue tentando conciliar e acho que a maior prova disso é a indicação do Múcio para ministro”.
“O que nos cabe nesse cenário, que não é bom, são duas coisas. Uma é tirar o tema das discussões sobre Forças Armadas de uma esfera que é quase inatingível. É algo tratado como se fosse muito absurdo fazer mudança”.