8 de dezembro de 2024 3:37 por Da Redação
Por Geraldo de Majella*
Histórico
As pesquisas sobre a história do pão não são exatas, mas indicam onde e quando ele pode ter surgido. Historiadores estimam que o pão tenha aparecido há cerca de 12 mil anos, juntamente com o cultivo do trigo, na região da Mesopotâmia, atualmente o território do Iraque. Inicialmente, o trigo era apenas mastigado, e só depois passou a ser triturado com pedras para ser transformado em farinha. [i]
A invenção dos fornos de barro para assar pães é atribuída aos egípcios; estima-se que isso tenha ocorrido por volta de 7.000 a.C. Também se deve a eles a descoberta do fermento, que torna a massa leve e macia, como a conhecemos hoje.
No século XIX, o cientista francês Louis Pasteur (1822-1895) descobriu, por meio de suas pesquisas, que o crescimento do pão era causado por um fungo microscópico: a levedura. O fermento biológico, um organismo vivo, é composto de bactérias que não são prejudiciais à saúde. A partir dessa descoberta, tornou-se possível o controle industrial da fermentação, tanto para pães quanto para vinhos, cervejas etc.
A origem do pão está profundamente ligada ao trabalho árduo no cultivo do trigo e à transformação desse cereal em um alimento essencial. Embora o processo evolutivo do pão possa parecer simples, é preciso observar que há muita transferência de conhecimento ao longo dos milênios.
O pão passou por diversas transformações, evoluindo de um produto rústico, historicamente conhecido, para variedades refinadas vendidas em padarias sofisticadas denominadas de butiques de pães. Hoje, esses diferentes modelos de padarias coexistem; em cada cidade ou bairro, há padarias com formatos comerciais os mais variados.
Pão e trigo no Brasil
O primeiro registro do pão é feito por Pero Vaz de Caminha, escrivão da esquadra de Pedro Alvares Cabral, na Carta do Descobrimento. A carta é o documento que registra o primeiro encontro do europeu com os indígenas no território que viria a ser o Brasil, entregue ao rei de Portugal, Dom Manuel – I, em 1500.
Pero Vaz de Caminha descreve o momento e a reação dos indígenas:
Mostraram-lhes um carneiro; não fizeram caso dele. Mostraram-lhes uma galinha; quase tiveram medo dela, e não lhe queriam pôr a mão. Depois lhe pegaram, mas como espantados. Deram-lhes ali de comer: pão e pescado cozido, confeitos, fartéis [ii], mel, figos passados. Não quiseram comer daquilo quase nada; e se provavam alguma coisa, logo a lançavam fora. [iii]
A recepção do pão pelos indígenas não foi das mais agradáveis, mas durante a ocupação do território pelos portugueses o pão passou a ser uma alimentação de primeira necessidade. O trigo, matéria-prima do pão, foi introduzido no Brasil por Martim Affonso de Souza em 1534.
O cultivo do trigo no Brasil começou pela Capitania de São Vicente e se estendeu pelo planalto de Piratininga, atual estado de São Paulo. O cereal se adaptou ao clima da região, sendo levado para outras regiões do Brasil nos séculos seguintes.
Há registros que dão conta de que entre 1840 e 1850, cultivava-se trigo no município pernambucano de Bonito, a 480 metros de altitude; em Viçosa, Alagoas; na Chapada dos Veadeiros, em Goiás; entre outras localidades. [iv]
Almanack Laemmert
O Almanack Laemmert, publicação dirigida pelos irmãos Eduard e Heinrich Laemmert, entre 1891 e 1940, registra a existência de três padarias em Anadia (AL), a partir de 1915. Na edição de 1915 constam os nomes de Antônio José da Rocha, Manoel Domingues Souto e Manoel Garcia de Almeida, proprietários de padarias e de outras atividades comerciais. [v]
Manoel Garcia de Almeida tinha uma padaria e era proprietário de três fábricas: beneficiamento de arroz, descaroçamento de algodão e uma terceira de cigarros, charutos e fumos; também era agricultor e lavrador. José Antônio da Rocha, além do padeiro, trabalhava como sapateiro, conforme consta no Almanaque. Manoel Domingues Souto é registrado nessa mesma edição do Laemmert como proprietário de padaria e de armazém de secos e molhados, nome genérico dos armazéns que vendiam de tudo um pouco, inclusive tecidos.
Anadia, na segunda década do século XX, tinha uma população de 31 mil habitantes, sendo 9 mil residentes na sede do município e o restante nos diversos povoados e distritos. Contava com 653 eleitores, o que correspondia a 2,1% da população. A base da economia era essencialmente agrícola; os principais produtos eram o algodão plantado em grande escala, a cana-de-açúcar, a araruta, o rícino, o fumo e os cereais.
Da relação de produtos importados constam sal, tecidos, drogas e manteiga; os exportados eram produtos agrícolas como arroz, algodão, mamona e açúcar.
Padaria Ideal
Manoel Domingues Souto (1893-?) nasceu em São Miguel dos Campos (AL) no dia 4 de agosto de 1893 e se estabeleceu no comércio em 1915, com a Padaria Ideal, atividade que exerceu durante quarenta anos, de maneira ininterrupta, de 1915 a 1955. Em 1955, sentindo-se cansado, decidiu dividir o trabalho com um sócio, o jovem Francisco Patrício da Costa (1923-2018), filho do compadre e primo José Patrício da Costa (1892-1982).
Estabelecidas as condições da sociedade, Francisco Patrício da Costa deixou o trabalho na propriedade rural do seu pai, em Boca da Mata, transferindo-se para Anadia, onde passou a residir e trabalhar. A sociedade teve curta duração, de 1955 a 1957, quando Manoel Domingues optou por vender sua parte no negócio ao sócio. “Seu Chico”, como era conhecido, havia casado com a professora Iracema Cavalcante da Costa (1923-2010). O casal, à época, tinha quatro filhos menores, dos oito que constituem a prole, e, com determinação, seguiram administrando o negócio pelos quarenta anos seguintes.
Francisco Patrício iniciou a vida laboral adolescente – como acontece com os jovens da zona rural – na fazenda São Luiz, propriedade do seu pai, no município de Boca da Mata (AL). A fazenda, um antigo engenho de açúcar, contava com uma capela e uma escola para as crianças. A professora das primeiras letras era a sua esposa.
As mudanças ocorridas na vida do casal começaram na segunda metade da década de 50, com as atividades no comércio, o que garantiu estabilidade e independência econômica.
A Padaria Ideal continua funcionando no mesmo endereço, na Praça Dr. Campelo de Almeida, 83. Desde a fundação até 2024 completou 109 anos em atividade. É a mais antiga padaria de Alagoas e uma das mais antigas do Brasil, com características singulares, como a de nunca ter paralisado suas atividades, pertencer ao mesmo núcleo familiar e ter atravessado dois séculos de existência.
Os dois primeiros momentos da história da padaria correspondem a oitenta anos de funcionamento: os quarenta anos iniciais, sob a administração do fundador Manoel Domingues, e os quarenta anos seguintes, sob a administração de Francisco Patrício e Iracema da Costa. Há 29 anos o empreendimento passou a ser comandado por um dos filhos, Georgio Cavalcante. Atualmente a padaria é gerenciada por Thiago Ferro Costa, filho de Georgio, na linha sucessória. É já a quarta geração.
A energia elétrica instalada em Anadia no final da década de 60 marcou o início da modernização do processo de produção, evoluindo de acordo com o avanço tecnológico. As máquinas substituíram o trabalho manual pesado. A estabilidade na produção ocorreu com a aquisição de um gerador de eletricidade a diesel, evitando quedas na produção devido às interrupções provocadas pelas constantes falta de energia.
Biscoito Santos Dumont
O mais tradicional produto da padaria é o biscoito Santos Dumont, no formato do Zeppelin [vi], o famoso dirigível que, em Alagoas e na costa brasileira, faz parte do imaginário da população.
Manuel Domingues resolveu, pela admiração que passou a ter pelo Pai da Aviação, prestar uma homenagem ao genial Alberto Santos Dumont, criando o biscoito que continua sendo o mais conhecido produto da padaria Ideal e o mais consumido em Anadia.
O brasileiro Alberto Santos Dumont (1873-1932) foi quem projetou, construiu e realizou os voos nos primeiros balões dirigíveis com motor a gasolina. Santos Dumont conquistou reconhecimento internacional com suas invenções e projetos, tendo recebido o prêmio Deutsch em 1901, quando, em um voo, contornou a Torre Eiffel, em Paris, com o dirigível nº 6, transformando-se numa das pessoas mais famosas do mundo durante o século XX.
Pães e padeiros
Georgio Cavalcante da Costa é o filho que realiza a transição entre os pais, mantendo a tradição na produção de pães, biscoitos e bolos e procurando superar os desafios, diversificando o comércio com novos produtos que são consumidos pela população com nomes regionais, como ele mesmo expõe:
O pão conhecido como o aguado ou d’agua é o tradicional pão francês. Tem o pão crioulo. Aí vem o pão carteira ou pão cangalha. Os pães doces de coco e sem coco e o pão seda. As bolachas Santos Dumont, cacetinho, água e sal ou bolacha de resguardo, sete capas, biscoito palito e a famosa rosquinha de coco. [vii]
O poeta Emanoel Fay (1937-2019), no poema “2 de fevereiro”, sua principal obra, faz referência à Padaria Ideal e à rosquinha de coco, imortalizando a padaria e uma de suas finas iguarias.
A lembrança mais remota que Georgio revela é da sua infância, ainda criança, quando conheceu os padeiros que trabalharam com seu padrinho Manoel Domingues e seu pai Francisco Patrício, com quem nos anos seguintes passou a conviver no dia a dia.
Os irmãos, mestre José Lucas Guedes e o Pedro, o Gilberto que é filho de José Lucas, trabalharam durante muitos anos na padaria. Da minha época, quando adulto, lembro os irmãos José Gonçalves da Silva e Lelo, lembro o Gonçalves, mais conhecido como Zé Buxo. E o Everaldo, que era forneiro. [viii]
Rádio SEMP
O rádio portátil, no início da década de 1960, era uma novidade como meio de comunicação. A maioria das famílias não tinha condições financeiras para adquirir um aparelho. Seu Chico adquiriu um aparelho SEMP e o instalou na padaria; logo virou o ponto de atração da cidade.
A televisão ainda era incipiente no país; em Alagoas, nem existia estação retransmissora, o que só viria acontecer na década de 1970. O principal noticiário radiofônico do Brasil era o Repórter Esso [ix]. Agrimeron Cavalcante, um dos filhos, à época adolescente, relembra o fato:
Na hora do Repórter Esso, às 19h55, a padaria ficava cheia de marmanjos para ouvir o Jornal. Foi o ponto de encontro dos cidadãos interessados em política durante muitos anos, até a instalação da televisão na praça Dr. Campelo de Almeida. Ouvi na padaria as discussões acaloradas desde a campanha do Marechal Lott contra o Jânio, a vitória e renúncia do Jânio Quadros até o golpe militar. [x]
A Padaria Ideal é uma das referências de Anadia pela longevidade; faz parte da memória afetiva e gustativa da comunidade. A memória gustativa desempenha um papel essencial na vida cotidiana, auxiliando na identificação e na distinção dos diversos sabores e aromas.
A memória de Agrimeron Cavalcante remete às relações de amizades entre as famílias de Dona Anália e Manoel Domingues, e Iracema e Francisco Patrício, que perduram por toda a vida.
A amizade entre nossa família nunca sofreu fissuras. Lembro-me de Dona Anália, uma pessoa fina e de bom gosto, que todas as tardes servia chá em sua casa, às 5 da tarde, no estilo inglês, a um grupo de amigas. Minha mãe não faltava; quando não era possível ir, por qualquer motivo, Dona Anália ficava brava. [xi]
A trajetória da Padaria Ideal se entrelaça profundamente com as memórias familiares e afetivas da população de Anadia, tornando-se parte integrante da identidade e das tradições da cidade.
*Geraldo de Majella é historiador e jornalista.
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ANOTAÇÕES
[i]https://www.invivo.fiocruz.br/historia/o-pao-nosso-de-cada-dia/ [ii]Fartéis: bolo de açúcar e amêndoas envoltos em capas de farinha de trigo. [iii]AMADO, Janaína & FIGUEIREDO, Luiz Carlos. Brasil 1500: quarenta documentos. Brasília: Editora Universidade de Brasília-UnB, São Paulo: Imprensa Oficial do Estado de São Paulo, 2001, p. 84. [iv]SANTOS, Aline Rocha. A cultura do trigo. Org. NETO, Aroldo Antônio de Oliveira e SANTOS, Candice Mello Romero. Brasília: Conab, 2017, p. 39. [v]Almanack Laemmert: administrativo, mercantil e industrial. (RJ), 1891-1940, Ano 1916, p. 2.261. [vi]O dirigível Graf Zeppelin sobrevoou Maceió em 1934. Muitas pessoas foram vê-lo de perto e ficaram impressionadas com suas dimensões: 236,6 metros de comprimento e 30 metros de altura, superando muitos navios transatlânticos e qualquer aeronave da época e mesmo das atuais. [vii]Georgio Cavalcante da Costa em depoimento ao autor no dia 3/7/2024. [viii]Georgio Cavalcante da Costa em depoimento ao autor no dia 3/7/2024. [ix]No dia em que o Brasil se juntava às forças aliadas para combater o exército alemão na Segunda Guerra Mundial, entrava no ar a primeira edição do Repórter Esso. Às 12 horas e 55 minutos do dia 28 de agosto de 1941, tinha início uma das mais impressionantes trajetórias jornalísticas de toda a história do rádio brasileiro. O Repórter Esso permaneceu no ar durante 27 anos (até 1968) e alterou completamente o padrão vigente dos jornais falados no rádio brasileiro. Fonte: chrome-extension://efaidnbmnnnibpcajpcglclefindmkaj/https://pantheon.ufrj.br/bitstream/11422/1521/1/LSILVA.pdf [x]Agrimeron Cavalcante da Costa em depoimento ao autor no dia 18/2/2023. [xi]Agrimeron Cavalcante da Costa em depoimento ao autor no dia 18/2/2023.