21 de junho de 2021 9:35 por Marcos Berillo
No início do mês de dezembro do corrente ano, a Editora Intrínseca lançou o novo livro do Papa Francisco: “Vamos sonhar juntos” (VSJ) . São reflexões que foram escritas durante a quarentena e compiladas com o auxílio jornalístico de Austen Ivereigh, um dos bons conhecedores da vida e do pensamento do papa. Revelando-nos, assim, um Francisco farejador inquieto em busca de um sentido embutido na tragédia do coronavírus.
No referido livro tem elementos de uma síntese e de um testamento em que o papa, em uma situação de crise mundial, avalia os sete anos de seu pontificado, marcados pelos três documentos programáticos sobre a evangelização (EG), a criação (LS) e a fraternidade universal da humanidade (FT). O papa adverte: O caminho de volta está fechado. Está fechada “a falsa segurança das estruturas políticas e econômicas de antes da crise. Precisamos de economias que permitam a todos o acesso aos frutos da Criação, às necessidades básicas de vida: terra, teto e trabalho (p. 139-144). Devemos reduzir a velocidade, tomar consciência e desenhar maneiras melhores de conviver neste mundo” (p. 12). Como vamos sair dessa crise e caminhar para um futuro melhor?
O Papa Francisco estrutura o seu livro em três partes: Tempo de ver, Tempo de escolher e Tempo de agir:
1. Tempo de ver:
Francisco recomenda: para avaliar um tempo, ver um território e sentir uma situação, devemos ir às periferias. Precisamos romper com os projetos das elites que querem “restaurar a estrutura socioeconômica que tínhamos antes da pandemia” (p. 24). É previsível que esses projetos acabem em maiores filas de desempregados, talvez todos vacinados, mas sem teto, trabalho e terra. A tentativa de restaurar o mundo a partir do centro “nos leva a um beco sem saída” (p. 63). Nas periferias se encontram os novos modos de organizar a sociedade e se encontram também “os protagonistas das transformações sociais” como “atores de um novo futuro” (p. 24).
A Covid tem uma dimensão universal e uma dimensão pessoal. Ambas interrompem a rotina da nossa vida; nos fazem cair do cavalo, como Saulo. O maior fruto de uma Covid pessoal, que é uma experiência limite, diz o papa, é “a paciência, condimentada com um sadio senso de humor”, que criam um espaço para a mudança. Em seu livro, o papa conta três experiências pessoais de Covid: em 1957, com 21 anos de idade, teve a experiência da proximidade da morte em um hospital de Buenos Aires. Em 1986, na Alemanha, teve a experiência da desconexão, do deslocamento e da solidão. Entre 1990 e 1992, quando foi enviado para Córdoba, viveu uma “espécie de quarentena” em um “banco de reserva”, um reaprender a viver um despojamento e desenraizamento de funções. Ser peneirado por Satanás e, pelo encontro com Jesus, cair do cavalo, como Saulo – em cada Covid nos aguarda um aprendizado, um crescimento e uma nova tentação.
“A crise nos devolveu a compreensão de que necessitamos uns dos outros”, para nos ouvir, corrigir e animar. Através de uma irrupção da fraternidade, conseguiremos brecar a globalização da indiferença e a hiperinflação do indivíduo. Somos responsáveis uns pelos outros. Juntos e sobretudo na periferia “podemos aprender sobre o que nos faz avançar e o que nos faz retroceder” (p. 55).
2. Tempo de escolher:
Para esse segundo tempo, escreve o Papa, precisamos um conjunto de critérios e um “refúgio da tirania do urgente”, um lugar de “reflexão e silêncio”. Precisamos reaprender a rezar, ouvir o chamado do Espírito e “cultivar o diálogo, em uma comunidade que nos apoie e nos convide a sonhar” (p. 59).
Mas, diante das incertezas causadas pela pandemia da covid-19, Francisco aconselha que devemos resistir à sedução de uma mentalidade fundamentalista. “Os fundamentalismos oferecem uma atitude e um pensamento único, fechado […]. A pessoa que se refugia no fundamentalismo tem medo de sair em busca da verdade. Ela já ‘tem’ a verdade e a utiliza como defesa, interpretando qualquer questionamento como uma agressão” (p. 63).
No questionamento ao fundamentalismo, Francisco cita dois dos seus mestres intelectuais: Romano Guardini e John Henry Newman . “A sabedoria de Guardini “me permitiu enfrentar problemas complexos que não podem ser resolvidos simplesmente com normas, mas com um estilo de pensamento que permite passar pelos momentos de conflito sem ficar preso neles” (p. 64).
Com Newman, Francisco enxerga “a verdade sempre mais além de nós, […] como uma luz amável que normalmente não chega através da razão, ‘mas pela imaginação […], pelo testemunho dos fatos’” (p. 64). Francisco assumiu dos seus mestres “que não possuímos a verdade mas que a verdade nos possui e constantemente nos atrai com sua beleza e bondade” (p. 64s). A abordagem da verdade “engloba as duas coisas: um elemento de concordância e um elemento de busca contínua” (p. 64). “Não há contradição entre estar solidamente enraizado na verdade e, ao mesmo tempo”, pela ação do Espírito “aberto a uma compreensão maior” (p. 65): “A tradição não é o culto das cinzas, mas a preservação do fogo” (Gustav Mahler, p. 66). É uma visão dinâmica da realidade que facilita discernir entre suas contradições e perceber as necessidades e os caminhos de transformações.
3. Tempo de agir:
O tempo de agir, o Papa Francisco descreve com base em uma reflexão sobre a “Teologia do Povo de Deus” de sua terra de origem (p. 107-117). Essa teologia nunca foi consensual na América Latina, mas permitiu um providencial consenso no momento de sua eleição como papa. Como na parábola do “Bom Samaritano” (Lc 10,25ss), também com a vida de Francisco podemos aprender que o Espírito pode servir-se de sistemas teológicos diferentes para conduzir seus seguidores pelo caminho do Evangelho. O samaritano da parábola, que veio como o sacerdote e o levita de Jerusalém, não veio do templo. Os samaritanos eram proibidos de entrar no Templo. Mas ele cumpriu o ensinamento do Templo. Amando o próximo, socorreu aquele que caiu nas mãos dos ladrões. O Papa Francisco não veio do templo da “Teologia da Libertação”, mas conseguiu realizar o primeiro mandamento dessa teologia, a opção pelos pobres, na Teologia Argentina do Povo de Deus.
Francisco questiona: “o que significa ser ‘um povo’?”, para nos explicar o significado dessa teologia. Trata-se de “uma categoria de pensamento” e de “um conceito mítico”. “A categoria mítica do povo tem origem e se alimenta de muitas fontes: históricas, linguísticas, culturais (especialmente a música e a dança), mas sobretudo da sabedoria e da memória coletivas” (p. 107). Sua identidade é “arquetípica” e não se define por exclusões, mas “pela síntese de potencialidades” que Francisco chama de “transbordamento” (p. 113). “No início da história de cada povo está a busca pela dignidade e pela liberdade, uma trajetória de solidariedade e luta. […] Para as nações do continente americano, foi a luta pela independência” (p. 107).
Nessa terceira parte do livro, denominada “tempo de agir”, é importante lembrar o que Francisco escreveu sobre o “tempo de ver”: “Recordo a história, não para honrar os antigos opressores, mas para prestar homenagem ao testemunho e à grandeza dos oprimidos. […] O passado é sempre repleto de situações vergonhosas: basta ler a genealogia de Jesus nos Evangelhos” (p. 36).
Os mercados nos afastam das metas políticas necessárias para hoje: “regenerar o mundo natural, vivendo de forma mais sustentável e mais sóbria, ao mesmo tempo que cobrir as necessidades dos que, até agora, foram prejudicados ou excluídos desse modelo socioeconômico. Não sairemos melhor desta crise, se não aceitarmos um princípio de solidariedade entre os povos” (p. 120; 139). Não se trata de “partilhar as migalhas da mesa, mas fazer com que, à mesa, haja lugar para todos” (p. 121). O desafio de todo nosso serviço social é que “o pobre, o nu, o doente, o preso, o desalojado […] sintam-se ’em casa’ entre nós. […] Esse é o sinal de que o Reino dos Céus está entre nós” (p. 124).
No final dessa terceira parte, denominada “tempo de agir”, o papa faz uma das propostas mais ousadas para traçar um “caminho para um futuro melhor”. Para o mundo pós-pandemia será vital “reconhecer o valor do trabalho não remunerado”. Devemos “explorar conceitos como o de renda básica universal, […] um pagamento fixo incondicional a todos os cidadãos” (p. 143). “A renda básica universal poderia redefinir as relações no mercado laboral garantindo às pessoas a dignidade de rejeitar condições de trabalho que as aprisionam na pobreza. […] Com o mesmo objetivo, é bem possível que seja também hora de considerar uma redução no horário de trabalho […]. Trabalhar menos, para que mais gente tenha acesso ao mercado de trabalho, […] é um […] pensamento que precisamos explorar com certa urgência” (p. 143s).
Como epílogo, o Papa se pergunta: qual será o nosso lugar? E aponta com duas palavras para nosso aprendizado possível: “descentrar” e “transcender” e termina com o poema “Esperança” do cubano Alexis Valdés. Ler esse testamento de um grande pontificado, humano, sim, mas ao mesmo tempo profundamente evangélico por ser comprometido com os pobres, vale a pena:
“Quando a tormenta passar
E as estradas estiverem amansadas
[…] Nós nos sentiremos felizes
Simplesmente por estarmos vivos.[…]
Entendemos o frágil
Que significa estar vivos.
Sentiremos falta do velho
Que pedia uma moeda no mercado,
De quem não soubemos o nome
E sempre esteve ao nosso lado.
E talvez o velho pobre
Era teu Deus disfarçado.
Nunca perguntaste por seu nome
Porque estavas apressado.[…]
Quando a tormenta passar
Peço-lhe, Deus, envergonhado,
Que nos devolvas melhores,
Assim como nos havias sonhado!