19 de dezembro de 2022 4:41 por Da Redação
Por Felippe Aníbal, da Revista Piauí
A psicóloga Vitória Maria Frighetto Hirt estava em casa na manhã da última quarta-feira (19), quando recebeu um print screen encaminhado por um amigo do Facebook. De início, ela não entendeu do que se tratava: a captura de tela mostrava uma lista com 27 nomes de estabelecimentos comerciais ou de profissionais de Rio Negro, no Paraná, e da vizinha Mafra, em Santa Catarina. O nome de Hirt, moradora de Rio Negro, aparecia na listagem. Só então o amigo lhe explicou que a lista vinha sendo compartilhada em grupos de WhatsApp de ambas as cidades, com orientações para que a população boicotasse os pontos comerciais ou os profissionais citados, por serem “petralhas”, “esquerdistas” ou “comunistas” – conforme as variações de cabeçalho que circularam.
Separadas por uma ponte, Rio Negro e Mafra formam uma pequena conurbação, como se se tratasse do mesmo centro urbano. Juntos, os municípios somam pouco mais de 91 mil habitantes. Em ambos, Jair Bolsonaro teve votação avassaladora: 65,56% em Rio Negro e 67,62% em Mafra, enquanto Lula não passou da casa dos 25% em cada. Apesar do bolsonarismo vir demonstrando força no eixo Rio Negro-Mafra desde a eleição passada, Hirt não deixou de se assombrar. Ela não esperava que esse tipo de pressão ocorresse nos confins de pequenas cidades do interior, com possibilidade de escalar para agressões físicas.
“É uma lista criminosa, por atentar contra a Constituição, e que nos coloca em risco, porque nos coloca como se fôssemos inimigos. É assim que eles nos veem: como pessoas que merecem desaparecer comercialmente ou profissionalmente”, definiu Hirt. “Essa história é a mesma que se deu na Alemanha nazista, quando se marcavam com uma estrela os estabelecimentos judeus. A gente sabe o que aconteceu depois por lá. É algo criminoso”, comentou.
O professor de literatura Luiz Carlos Felipe já sentiu os reflexos de ter sido incluído na lista do boicote: perdeu três alunos a quem dava aulas particulares. “Eles cancelaram, sem dar motivos. Só pode ser por isso [pela lista]”, disse. No colégio particular em que leciona há 17 anos, em Mafra, o docente ainda não teve problemas com a direção, mas com alunos, que passaram a hostilizá-lo pelos corredores, com comentários irônicos. Apesar do incidente, Felipe diz que pretende continuar usando suas redes sociais para se manifestar politicamente, como sempre fez. Mesmo com a pressão, ele avalia que ceder seria legitimar as ações de quem promoveu e disparou a listagem.
“Nunca levei assuntos de política para a sala de aula por achar que não é um local adequado para isso. Mas sempre manifestei minhas ideologias nas redes. Eu me nego a me calar, a deixar de dialogar com as pessoas. No fundo, é isso que eles querem” disse. “Ainda é cedo para avaliar o quanto isso vai trazer de prejuízo aos citados, mas acho que já criou uma marca em nós. Eu tenho alunos que ficam zoando. Uma [aluna]me disse: ‘Se você pensa desse jeito, por que tá dando aula pra gente aqui? Cai fora’”, contou.
Um dos estabelecimentos citados – o Oba Oba Pub e Hamburgueria – emitiu uma nota de repúdio aos compartilhamentos, dizendo que o nome da empresa foi usado indevidamente, “pois nunca postamos nada referente à política em nossas redes sociais” e que a casa preza “pelo respeito à diversidade, pensamentos e escolhas de nossos clientes, além dos funcionários”. Postada em um dos grupos, a manifestação da direção da hamburgueria foi comemorada por quem defende a viralização da lista.”Sinal de que povo boicotou mesmo. Sentiu no fechar do caixa” [sic], escreveu um usuário que, em seguida, postou três emojis da bandeira do Brasil.
O medo parece ser maior entre os donos de estabelecimentos comerciais. Procurados pela piauí, os responsáveis por duas lanchonetes não quiseram se manifestar, por medo de amplificar a repercussão negativa do caso. Um deles, no entanto, fez um desabafo rápido, mencionando episódios de violência que já estão ocorrendo. “Estão infernizando a vida da gente. Jogaram lixo na casa de um [empresário], jogaram ovos na casa de outro. O movimento caiu porque ninguém quer ser visto aqui”, lamentou, antes de desligar o telefone.
A advogada Ana Carolina Moreira de Carvalho, cujo nome também aparece na listagem, está coordenando uma reação jurídica. Ela tomou conhecimento das publicações na manhã do dia 18 de outubro, quando recebeu o conteúdo por WhatsApp. Inicialmente, a lista tinha 14 estabelecimentos ou profissionais, mas, conforme o material era compartilhado, outros nomes foram acrescidos, até chegar aos 27 mencionados. A advogada registrou boletim de ocorrência e denunciou o caso ao Ministério Público do Paraná e de Santa Catarina, em nome de 13 estabelecimentos ou profissionais que ela representa.
Paralelamente, Carvalho pretende ajuizar ações por dano moral contra quem compartilhou as listas nos grupos. Até agora, a partir de prints dos grupos em que o material foi divulgado, ela conseguiu identificar sete pessoas que propagaram o conteúdo – a maioria, empresários ligados à Junta Comercial de ambos os municípios. A advogada está registrando todos os compartilhamentos em ata notarial, para serem usados como prova nos processos.
“Começou como um boicote, mas tomou proporções de ameaça. As pessoas estão com medo. Estamos falando de cidades pequenas, em que todo mundo sabe da rotina de todo mundo, todo mundo sabe onde todo mundo mora. Não mexe só com o bolso, mexe com o psicológico também”, definiu Carvalho. “Um dos meus clientes frequenta um estabelecimento. O garçom ligou para ele, avisando que tinham ido procurá-lo, perguntando a que horas ele costuma aparecer ali, que iam dar uma surra nele. Está assim a coisa”, disse a advogada, membro da Associação Brasileira de Juristas pela Democracia (ABJD).
Por outro lado, a repercussão da viralização da lista provocou uma reação de diversas instituições. As subseções locais da Ordem dos Advogados do Brasil (OAB) – de Rio Negro e de Mafra – emitiram nota de repúdio ao compartilhamento da listagem. A Câmara de Rio Negro também publicou nota em que disse ser “contraria à lista” e que “essa atitude não contribui para a defesa da Democracia”. Em Mafra, houve manifestações particulares de vereadores, como Jonas Schultz (PSDB) e Abel Bicheski (SD). Até grupos bolsonaristas, como o Mulheres de Direita RioMafra se posicionaram contrariamente à divulgação da lista. Em ambos os municípios, a Polícia Civil instaurou procedimentos de investigação para apurar eventuais crimes cometidos contra os mencionados na listagem.
Um dos que compartilharam o material em grupos de WhatsApp, o vereador Elcio Colaço (PSD), de Rio Negro, alegou que cometeu um engano: ele disse que queria ter enviado a lista para o dono de uma lanchonete citada, mas que acabou “jogando no grupo”. Apesar disso, até a noite de sexta-feira (21), o parlamentar ainda não tinha se manifestado publicamente a respeito do incidente. À piauí, ele afirmou ser contra a divulgação dos nomes.
“Essa lista é uma idiotice. Cada um tem direito a sua liberdade de expressão. É uma coisa que fere o princípio democrático”, disse. “Já faz dias que tá esse bafafá. Já compartilharam print que aparece minha publicação. Eu me envolvi de bobeira. Não quis falar nada até agora, porque quanto mais mexe, mais fede”, justificou.
As reações à divulgação da lista acalentaram a psicóloga Vitória Maria Frighetto Hirt. Desde que o conteúdo começou a ser compartilhado, ela tem recebido inúmeras mensagens de amigos, manifestando solidariedade à perseguição e lhe dando forças. Tudo isso, ela diz, a estimula a continuar a exercer seu direito constitucional de manifestar suas opiniões políticas democraticamente. “Para eles, foi um tiro no pé. Estou recebendo uma solidariedade muito grande das pessoas, gente solicitando amizade no Facebook, muita gente se manifestando, enquanto do outro lado estão saindo dos grupos, tentando apagar as mensagens”, disse. “Eu não sou filiada a partido. Nem mesmo petista eu sou. Eu estou apoiando o Lula, porque é a opção que a gente tem contra o Bolsonaro. E não vou abrir mão de me manifestar”, acrescentou.