19 de dezembro de 2022 4:41 por Da Redação
Por Leda Maria Paulani*
Não sei localizar em meus escritos quando foi que falei a primeira vez em terrorismo econômico. Mas falo disso tem muito tempo, pelo menos umas duas décadas. Nestes primeiros dias de transição do desgoverno de Jair Bolsonaro ao futuro governo Lula, o terrorismo econômico ganhou vestes e cores equiparáveis aos dos bandos de zumbis alucinados que ainda permanecem em frente aos quartéis.
O terrorismo consiste em brandir ameaças de caos e horror ao menor sinal de que algo será feito, pelas mãos do Estado, para amenizar, por menos que seja, as mazelas produzidas dia a dia por um sistema cego e que dá as costas aos cadáveres que vai empilhando pelo caminho. Ameaçam com o horror, como se horror não fosse ter o país 33 milhões de criaturas passando fome, ter uma legião de crianças e adolescentes com desnutrição – que atingiu em setembro seu maior nível em sete anos, ter mais de 200 mil pessoas perambulando pelas ruas sem um teto que as abrigue.
Evidente que constrangimentos macroeconômicos reais podem existir, como os que decorrem de um país ter passivos externos que sua geração de divisas não é capaz de sustentar (caso da Argentina, por exemplo). Mas não é esse, nem de longe, o caso do Brasil. Há risco zero hoje, a menos que ocorra uma hecatombe mundial, de um default externo de nossa economia. Temos mais de 300 bilhões de dólares de reservas e nossas exportações vão bem, obrigada. Ah, mas a relação dívida bruta/PIB não pode crescer indefinidamente, propalam os terroristas: a do Brasil está em torno de 75%, a do Japão passa dos 200% – e já faz muito tempo! Só se um bando de lunáticos aterrizasse no Ministério da Economia e resolvesse brincar de confiscar poupanças, para haver algum problema nessa área.
Tudo isso sabe qualquer economista minimamente informado e minimamente razoável, que não sofra de delirium tremens ao ouvir o termo “gasto público”. Alguns existem, porém, que sofrem desse mal e surtam! Não são todos, talvez não sejam nem a maioria, mas existem. Eles representam interesses claramente configurados? Sim, mas não é esse o ponto aqui. O ponto aqui é: como é possível que alguns poucos economistas de certo renome e vinculados a umas poucas instituições sejam capazes de produzir tamanho terror? A resposta é simples: eles têm uma caixa de ressonância inacreditavelmente ampla e forte – a imprensa.
A reação à fala de Lula no encontro com deputados em Brasília é exemplo dos mais gritantes desse vergonhoso papel desempenhado sobretudo pela grande mídia corporativa. As manchetes prognosticavam o apocalipse. Uma das mais escandalosas foi a do Valor Econômico: “Dólar dispara e bolsa derrete, após fala de Lula sobre gastos”, numa interpretação claramente exagerada do que ocorreu com essas duas variáveis. Não foram só as manchetes, diga-se. Os editoriais fizeram coro em uníssono com o assim dito “mercado”, em chamadas sombrias: “foi um mau começo”, opinou a Folha, “Lula precisa descer do palanque”, exigia o Estadão, para ficar só em dois dos mais importantes jornalões. E o samba de uma nota só foi, claro, a responsabilidade fiscal, detratada, segundo os editoriais, pelo presidente eleito.
Vou me deter aqui no editorial da Folha de 11 de novembro, um dia depois da fala de Lula que tanta revolta gerou. A escolha não se deve a uma preferência qualquer, mas ao fato de tal periódico ser muito mais insistente do que, por exemplo, o Estadão ou o O globo, em sua postura de imprensa “responsável”, “moderna”, que não só dá voz a todas as partes em qualquer que seja o embate, como se alinha aos melhores princípios democráticos.
Vejamos a primeira frase do texto: “Em apenas duas semanas desde o desfecho das eleições, Luiz Inácio Lula da Silva (PT) conseguiu derrubar grande parte das esperanças de que seu governo vá adotar uma política econômica racional e socialmente responsável”. Tradução: criticar o teto de gastos é irracional! Tal tipo de argumento joga para o limbo do negacionismo e do anticientificismo qualquer contestação a essa regra fiscal, que, diga-se, não existe dessa forma em nenhum outro lugar do mundo. Pior ainda, confere o mesmo destino a quaisquer posições teóricas que questionem o sentido exato do termo “responsabilidade fiscal”, posturas por sinal que andam em alta internacionalmente, a exemplo da Modern Money Theory.
O texto diz que Lula não apresentou até agora nenhum plano de ação, a não ser uma PEC capaz de liberar uma “gastança sem precedentes”. Reproduzindo in totum o argumento supostamente científico empunhado pelos próceres do mercado, o editorial diz ainda que, “se colocar em prática seu falatório, a sangria dos cofres do Tesouro não tardará a alimentar a inflação (…) os juros (…) e a dívida pública”. Em suma: terror em estado puro.
E não se informa o distinto público que, desde que o teto foi implantado, no governo de Michel Temer, a relação dívida líquida/PIB subiu de 38 para 58%, ou seja, a existência de uma regra fiscal, mesmo tão radical e estúpida quanto a nossa, não é garantia alguma de queda da dívida em proporção do PIB. Se o produto não cresce, mesmo que a dívida caia por força do sacrifício de milhões de pessoas, a relação pode continuar a subir. Do mesmo modo, a inflação subiu justamente no período de vigência do teto, por constrangimentos externos e choques de oferta provocados pela pandemia e pelo conflito na Ucrânia. Mais uma vez, a existência de regra fiscal prejudicando boa parte da população pelas restrições que traz à plena operação das políticas públicas não constitui garantia de inexistência de problemas inflacionários.
E é a tal casta de argumento capcioso que se deve o mote, repetido algumas vezes ao longo do texto, segundo o qual “responsabilidade fiscal é responsabilidade social”. Querem, com isso, guarnecer de vestes palatáveis a defesa de uma política que atinge diretamente as camadas mais baixas, enquanto busca preservar a riqueza financeira de uns poucos. E dá-lhe terror! Na esteira dos resultados tenebrosos já enunciados, o editorial acrescenta também o colapso do crescimento, a escalada do desemprego e o aumento da miséria e da fome, caso o “falatório” de Lula venha a se efetivar.
Numa postura que chega a ser insultuosa com um cidadão que teve mais de 60 milhões de votos, o editorial do “democrático” jornal afirma que Lula deseduca, que fala tolices e que resmunga contra o mercado. Que educação dá um jornal como a Folha que não admite se chame Jair Bolsonaro de extrema direita? Como a imprensa e o mercado trataram o genocida? Só para lembrar, ele furou várias vezes o teto de gastos – na última das vezes para, afrontando a Constituição, criar vergonhosamente benefícios em ano eleitoral, e deixou de pagar precatórios (quase um pecado capital para os cânones neoliberais), e isso para não mencionar a ignomínia do orçamento secreto, o maior escândalo de corrupção que já teve este país e efetivado pelo dito incorruptível.
Não se ouviu então, nem do mercado, nem da imprensa, não digo gritaria, não se ouvia ninguém levantando a voz. Os dois sócios passaram pano o tempo todo. Afinal de contas era preciso preservar o ultraliberal Paulo Guedes, que estava fazendo direitinho o serviço e defendia os “princípios macroeconômicos corretos”.
Num programa recente na Globonews, o comentarista Octávio Guedes disse, num arroubo de sinceridade, e para certo espanto dos demais comentaristas presentes, que o mercado é bolsonarista. Quem leu o artigo até aqui há de concordar que ele está coberto de razão. Mas o mercado não passou pano sozinho pra Jair Bolsonaro. Contou sempre com a inestimável ajuda da grande mídia, dos programas de especialistas da TV, dos grandes jornalões. Sabemos todos que comportamentos como o de Octávio Guedes são antes exceção do que regra. Certamente escapou das orientações gerais do canal para programas ao vivo e não deve ter agradado nem um pouco aos Marinhos.
É verdade que a mídia alternativa, que se multiplicou com o advento da internet, salva um pouco a lavoura, mas não é menos verdade que o pouco de grande jornalismo que havia ficou de vez comprometido com a ascensão do neoliberalismo e do neofascismo, numa comunhão estranha só em aparência. Se aos poucos devemos nos livrar do terrorismo bolsonarista, o contrário deve acontecer com o terrorismo econômico. Ele vai recrudescer e não seria tão bem-sucedido sem a ajuda do parceiro de sempre… uma mídia a serviço do Brasil, para poucos.
*É professora titular sênior da FEA-USP. Autora, entre outros livros, de Modernidade e discurso econômico (Boitempo).
Publicado originalmente no jornal GGN.