4 de maio de 2020 2:35 por Marcos Berillo
Por Ronaldo Carlos*
A ditadura militar no Brasil tem história. Nasce de um golpe contra a monarquia, dado por militares, secundados por civis.
O papel secundário dos civis, na fundação da República Brasileira, parece ter criado a mistica de que os militares devem ser periodicamente chamados para ocupar o poder político da nação.
E tudo começou com o marechal Deodoro da Fonseca. Oficial ativo da mais alta patente do Exército Brasileiro, não apenas liderou a destituição do imperador, em 15 de novembro de 1889, como tornou-se o primeiro presidente do Brasil.
Pois bem, ao findar-se a monarquia, findou-se com ela o ideal monárquico. Contudo, o ideal republicano não nasceu sob a égide de um governo civil, mas de um governo militar. Isto é, a ideologia subjacente foi a dos quartéis. Porém, o ideal militar, conjugado na hierarquia e na disciplina, aplica-se bem ao militarismo, mas destoa do ideal civil, calcado nos direitos e garantias fundamentais das pessoas comuns.
Dessa forma, a relação de uma pessoa, detentora de direitos civis, políticos e sociais, com a Presidência da República, diverge do vínculo que une o soldado ao seu superior.
Desgraçadamente, o militar que ocupa a chefia do Poder Executivo costuma ignorar essa distinção.
Isso aconteceu com o marechal Deodoro, denominado Proclamador da República, ao sobrepor o Poder Executivo ao Poder Legislativo, decretando o fechamento do Congresso, no chamado “Golpe de Três de Novembro”, em 1891, inaugurando a ditadura militar no Brasil. Esta, porém, teve vida curta, encerrando-se logo no dia 23 do mesmo mês de novembro de 1891, com sua renúncia à presidência.
Aconteceu o mesmo com seu sucessor na presidência, o marechal Floriano Peixoto, denominado o Consolidador da República, outro militar da ativa, detentor também da mais alta patente do Exército Nacional, quando indagou quem daria habeas corpus aos ministros do Supremo Tribunal Federal, caso estes julgassem favorável um pedido semelhante, para libertar adversários do seu governo, evidenciando sua visão sobre a supremacia do Poder Executivo sobre o Poder Judiciário, contrária, portanto, ao princípio da separação dos poderes.
Ora, a sobreposição verbal ou real do Poder Executivo sobre o Poder Legislativo ou Judiciário denigre, em sua essência, o ideal civil em prol de um pretenso ideal militar, no exercício da Presidência.
Aliás, desde a chegada de Prudente de Morais à Presidência do país, em 15 de novembro de 1894, com o fim da República da Espada, o ideal republicano desdobra-se numa dicotomia, alternando-se entre a prevalência do ideal militar e a do ideal civil, no comando dos destinos políticos brasileiros.
Há momentos nos quais a alternância dá-se dentro da ordem constitucional estabelecida, enquanto em outros essa ordem é conscientemente, abertamente, abruptamente confrontada.
Historicamente, o ideal militar respeitou a ordem constituída ao eleger, para a Presidência do Brasil, o marechal Hermes da Fonseca, em 1º de março de 1910, como também o general Eurico Gaspar Dutra, em 02 de dezembro de 1945, objetivamente porque a sucessão de ambos deu-se dentro das regras previamente estabelecidas do processo eleitoral vigente no país.
Oficiais das mais altas patentes do Exército Brasileiro, ambos submeteram-se aos ditames do processo democrático, entregando a chefia do Poder Executivo aos seus sucessores civis.
Nesses termos, o governo militar eleito demonstrou possuir os requisitos necessários e suficientes para conviver bem com o ideal democrático, substrato do ideal republicano.
Certamente, tais pressupostos não foram devidamente observados durante o período da ditadura militar, compreendido entre 31 de março de 1964 e 15 de março de 1985.
Note-se, contudo, que o ideal militar ditatorial desse período esteve sempre representado por um general (Castelo Branco, Costa e Silva, Garrastazu Médici, Ernesto Geisel e João Figueiredo), ou seja, um oficial de alta patente do Exército Brasileiro.
Pode-se dizer que, por intermédio de cada um deles, o Exército, e, em menor medida, a Marinha e a Aeronáutica, enfim, as Forças Armadas assumiram, para o bem e para o mal, a responsabilidade de governar os destinos políticos do país, notadamente porque todos os chefes do Poder Executivo da ditadura militar eram generais da ativa do Exército do Brasil.
Desse modo, conjugando-se todos os períodos ditatoriais ou democráticos, nos quais o ideal militar ocupou a Presidência da República, nota-se que o representante das Forças Armadas foi sempre um oficial ativo do Exército, detentor de alta patente.
É como se, implicitamente, tivesse se consolidado no tempo a assertiva de que somente caberia a um marechal ou a um general da ativa representar o ideal militar, no exercício da chefia do Poder Executivo Federal.
Em outras palavras, a regra parece ser a seguinte: a tropa segue o oficial graduado que está no comando ativo de suas funções!
Ao menos, foi assim, no passado. E no futuro?
Desde a retomada do poder pelo governo civil, logo após a axaustão política do governo militar de 1964 (por mais que demore, ela acaba acontecendo!), passou-se a acreditar que, sob a égide da Constituição Federal de 1988, antigos anseios ditatoriais jamais ressurgiriam.
Contudo, cada vez mais, eles parecem ressurrectos!
E como se dá a ressurreição do governo militar?
Historicamente, de duas formas: pela força ou pelo voto.
Atualmente, por uma série de circunstâncias imponderáveis!, o político ideal militar ressurgiu pelo voto.
Isso significa dizer que, pelas mais diversas razões, uma parcela considerável da população civil resolveu abrir mão do seu ideal próprio, em favor do seu impróprio ideal militar.
Afinal, no Brasil, a quantidade de paisanos e excessivamente superior a de milicos.
Agora, se, em termos quantitativos, o ideal civil é muito superior ao ideal militar, qual a vantagem do ideal maior se submeter ao menor?
Será que nós, civis, desejamos, na verdade, ser militares? Então, por que não ser logo um militar de alta patente?
Do ponto de vista histórico, causa surpresa o político ideal militar estar hoje representado, na Presidência da República, não por um oficial da mais alta graduação, mas por um oficial intermediário do Exército Brasileiro, mais especificamente um capitão da reserva.
Definitivamente, o ideal militar impróprio se deteriorou!
E o ideal militar próprio não terá também se deteriorado?
Isso o momento atual parece estar dizendo, mas só o tempo histórico o confirmará!
E por que isso? Espraia-se, em parcela (ainda) diminuta de civis e militares, a nefasta ideia de que o ideal militar, alçado à chefia do Poder Executivo pelo voto, deve lá permanecer pela força das armas.
Não fora isso estar completamente em desacordo com o autoritarismo do Século XXI, no qual o poder acaba sendo minado por dentro, de acordo com a vontade e o talento do autoritário eleito, sem a necessidade de uma ditadura ostensiva, como ensinam Steven Levitsky e Daniel Ziblatt, no livro Como as democracias morrem, o que os oficiais ativos do alto escalão do Exército (já que a Marinha e a Aeronáutica são mais alheias a esse tipo de coisa) teriam a ganhar, se não seriam eles a comandar indefinidamente os destinos políticos do país, mas um reformado oficial subalterno?
Todas as vezes que o ideal militar se insurgiu contra o poder constituído, o fez contra a chefia do Poder Executivo e armado de uma política causa militar justificativa.
Em 1889, contra o ideal monárquico. Em 1964, contra o ideal comunista.
E agora? Se o Poder Executivo restar preservado, as Forças Armadas vão dar como desculpa, ao mundo e a História, que a próxima ditadura militar tem por finalidade precípua salvar o Brasil do Poder Legislativo e do Poder Judiciário?
É isso? Se for, a degradação militar estará completa! Afinal, ditadura por ditadura é alienação pura!
Ao desprezar os direitos e as garantias fundamentais das pessoas, a ditadura mata o ideal civil e esfacela o ideal militar.
O resto é conversa!
*Autor de A história como ficção e O escritor e o anotador