10 de julho de 2020 8:22 por Redação
Na tentativa de se construir uma linha do tempo para avaliar os possíveis efeitos do Covid-19 na economia brasileira, tendo a consciência dos riscos que tal exercício envolve já que há muita incerteza quanto ao que ocorrerá no curto prazo (durante) e, principalmente, no médio e longo prazos (“depois”), é preciso que seja feita uma análise sucinta de como se encontrava nossa economia antes de sermos afetados pela pandemia. Neste primeiro artigo, trataremos do antes da crise. No segundo, de como a crise está se desdobrando e quais as políticas de mitigação que estão sendo adotadas pelo governo federal. Por fim, discutirei os desafios do pós-crise a serem enfrentados pelas políticas de recuperação econômica.
Antes da crise do Covid-19 havia a expectativa por parte do mercado que cresceríamos cerca de 2,0% em 2020. Para melhor entender o que isto representa do ponto de vista cíclico é preciso tomar como marco de referência o período recessivo que vai, segundo a marcação cíclica da Fundação Getúlio Vargas, do segundo trimestre de 2014 ao último trimestre de 2016. Como pode ser observado no gráfico nº 1, neste interregno, o PIB do país acumulou queda de -7,0%. Desde 2017, contudo, a economia vem crescendo à taxa média de 1,2%, o que tem contribuído para a manutenção do hiato produto negativo em quase – 5,0. Caso o Brasil crescesse 2,0% em 2020, a taxa média de crescimento anual passaria de 1,2% para 1,4%aa. Estes dados deixam claro que antes do Covid-19 a economia brasileira encontrava-se em um ritmo lento de recuperação.
O índice médio da produção da indústria de transformação em 2019 encontrava-se 12,0% abaixo do registrado em 2014 e o seu nível de utilização da capacidade instalada, calculado pela FGV, estava em 75,0% contra 81,0% em 2014. O índice do volume de vendas no varejo, no mesmo período de comparação, era 5,0% menor. De acordo com estes dados, é possível perceber que os dois principais setores da economia ainda não haviam se recuperado completamente dos efeitos da recessão de 2014 a 2016, sendo o setor industrial o mais atingido.
Ao longo do período recessivo, a taxa de desemprego chegou a mais de 13% no final de 2016 e iniciou um processo lento de redução, desde então, alcançando no final de 2019 patamar acima de 11,0%, como pode ser visto no gráfico nº 2. Neste mesmo período, o índice de emprego formal manteve-se abaixo do nível atingido no início da recessão e a taxa de informalidade chegou a quase 40,0% da força de trabalho. Outro dado importante a salientar diz respeito ao PIB per capita que em 2019 encontrava-se 4,5% abaixo do valor alcançado em 2011. Não é sem razão que a segundo decênio do século XXI está sendo considerada como a década perdida.
Do ponto de vista da política monetária, apesar da redução expressiva dos juros básicos realizada pelo Banco Central do Brasil, de 14,25% em 2015 para abaixo de 4% no início de 2020, os juros na ponta cobrados às empresas, principalmente as pequenas e médias, como também às famílias continuavam bastante elevados. Em termos de política fiscal, este período foi caracterizado pela austeridade fiscal, ancorada na polêmica hipótese da “contração fiscal expansionista”, com a instituição do teto dos gastos que praticamente anulou o caráter contracíclico dos gastos públicos por um período de vinte anos. Como os investimentos do governo são gastos discricionários, segundo os dados do Observatório de Política Fiscal do IBRE-FGV, houve diminuição pronunciada no período em análise passando de 3,95% do PIB em 2014 para 2,26% em 2019. A taxa de investimento privado também foi fortemente impactada saindo do patamar de 19,87% do PIB para 15,36%, respectivamente.
No cerne da crítica feita pelos economistas heterodoxos à estagnação da economia brasileira, observada no período pós-recessivo, está a política econômica liberal do governo, adotada a partir de 2015. Para estes economistas, a política de flexibilização do mercado de trabalho tem contribuído para precarizar as relações trabalhistas assim como para aumentar a informalidade (uberização) do emprego, com implicações negativas para as receitas da previdência. Por sua vez, a política de austeridade fiscal, como apontado acima, vem solapando os investimentos públicos em infraestrutura e as transferências sociais, com cortes nas áreas de saúde e educação, enquanto o sistema tributário continua fortemente regressivo.
A resposta dos economistas liberais é que o governo não dispõe de recursos, em função do elevado déficit público, para financiar as políticas sociais e os investimentos públicos em infraestrutura, saneamento e C&T. Ademais, a redução significativa dos gastos públicos por meio das reformas estruturais permitiria a diminuição do risco país com implicações positivas sobre as taxas de juros de longo prazo e, consequentemente, sobre as expectativas dos investidores e “animal spirits” dos empresários.
Nos últimos anos esta visão mais ortodoxa tem sofrido críticas importantes dentro do próprio mainstream macroeconômico. Lara Resende, um economista liberal brasileiro, tem sido bastante duro em sua crítica à política econômica adotada nos últimos anos no Brasil, assim como em relação às restrições fiscais apontadas pela equipe econômica do governo frente aos desafios colocados pelo Covid-19. Em artigo recentemente publicado no Valor Econômico de 27/03/2020, ele escreveu:
A questão das fontes de recursos para as despesas do governo é um falso problema. É resultado de um arcabouço teórico equivocado e anacrônico que foi erigido em dogma dos economistas hegemônicos nos últimos anos. A tese de que o governo não pode gastar se não dispuser de fontes fiscais, de que é sempre preciso equilibrar o orçamento para evitar a expansão da dívida pública interna, não tem qualquer validade lógica ou empírica. É um mito com pretensão científica. Um mito transformado em dogma para restringir a ação do Estado. Trata-se de um mito com altos custos em tempos normais, mas que em situações extraordinárias, como a atual pandemia, ao impedir a adoção de políticas públicas indispensáveis para minorar a crise e o sofrimento, é desastroso.
A visão do poder soberano que tem o país de emitir sua própria moeda de conta (fiduciária), usada pelas empresas e pessoas para liquidar suas obrigações tributárias e realizar seus contratos, põe em xeque a tese das restrições no financiamento dos gastos públicos. Tal crítica à suposta restrição, apesar de não ser nova, tem estado atualmente em voga com a Teoria Monetária Moderna (TMM). A controvérsia suscitada pela TMM parece encontrar, momentaneamente, abrigo nas hostes liberais na medida que passam a defender a necessária adoção de pacotes de salvamento trilionários demonstrando a total ausência da propalada restrição financeira do Estado.
Em síntese, a partir dos dados discutidos acima, fica claro que a economia brasileira apresentava sinais de estagnação econômica antes da pandemia e que isto não poderá ser desconsiderado, tanto na análise dos impactos do Covid-19 na economia brasileira como no esforço de mitigação por parte da políticas macroeconômicas para a preservação de vidas humanas e da estrutura econômica. Este, como colocado no início, será o tema do nosso próximo artigo.
Reynaldo Rubem Ferreira Jr (Professor da Faculdade de Economia, Administração e Contabilidade – FEAC – da UFAL)
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