Por Felipe Annunziata e Heron Barroso, do A Verdade
Hélio Luz, 77, é ex-chefe da Polícia Civil do Rio de Janeiro e um dos principais especialistas em segurança pública do Brasil. Nesta entrevista exclusiva para o jornal A Verdade, ele denuncia a repressão policial como projeto de controle social da população pobre pelo Estado brasileiro e defende que só com uma transformação radical da estrutura de poder é possível resolver o problema da segurança pública.
A Verdade – Nos anos 1990, você foi chefe da Polícia Civil do Rio de Janeiro. Como isso aconteceu?
Hélio Luz – Quando Marcelo Alencar foi eleito governador do Rio de Janeiro, em 1994, nomeou um general como secretário de segurança. Isso ainda era resquício da ditadura; quem indicava, na verdade, era o Comando Militar do Leste. Acontece que eles não tinham ninguém na Polícia Civil para dialogar. Nessa época, eu era delegado em Sumidouro [município do interior do RJ]. Certo dia, recebo um recado para ir falar com o secretário. O pessoal achava que eu era do MR-8, mas eu nunca fui do MR-8, apenas conhecia algumas pessoas. Queriam que eu assumisse a Polícia Civil, mas eu disse que não. Em contrapartida, me transferiram para chefiar a delegacia antissequestro, na capital.
Naquela época, o número de sequestros cresceu?
Sim! O chefe de polícia na época era um colega da minha turma. Eu sabia a posição dele, e queria distância. Só aceitei a antissequestro quando o governo concordou em me vincular direto ao Secretário. Em pouco tempo os sequestros diminuíram. Por que? Porque quando eu cheguei lá, me disseram: “doutor, isso aqui é complicado. A turma é de outra religião”. Acontece que eu não rezo na mesma religião deles. O problema todo era o resgate, porque todo mundo queria ir pegar o dinheiro. Aí, eu comecei a transferir os policiais da delegacia. Quando eu cheguei, tinham uns 120 policiais. Eu fiquei com apenas 30, gente que eu conhecia e controlava. Assim, a gente estancou o negócio do “acerto” [negociação entre policiais corruptos e bandidos]. Você estanca o acerto, cai a criminalidade.
Esse “acerto” era um acordo entre o crime e a polícia?
É grana! Na hora que você estanca, se não tem acerto, desmonta tudo. Aí, como desorganiza, o pessoal que pratica crime também desorganiza, porque ele diz assim: “eu vou acertar com quem?”. O cara que está roubando, que está mandando no tráfico, quer saber com quem do sistema de segurança é que ele acerta. Se não tem ninguém pra combinar o acerto, ele corre o risco de ser preso. Quando você corta isso, desarma tudinho por dentro. Ou seja, a questão é combater a corrupção na polícia e investir em inteligência. Não tem mistério.
Qual a lógica da segurança pública no Brasil?
O problema vem de cima. O objetivo da segurança pública no Brasil é fazer controle social. Os policiais têm que chegar e dar conta. Mas só com um salário o cara não vai fazer. Então, ele tem mais um por fora. Há uma tolerância. E isso não é uma estrutura só do Poder Executivo. O Judiciário também tolera. Ninguém fala isso, mas o Judiciário tem tolerância, entende?
O senhor falou em controle social. Em 2022, foram mais de seis mil pessoas assassinadas pela polícia em todo país. Isso é consequência desse conceito de controle social como função principal da polícia?
A origem dessa questão está no período colonial. Quando se deram as revoltas de escravizados, o que eles fizeram? O governador geral chegava com homens, iam pra lá e arrasavam os caras. É a mesma coisa hoje. Como é que o Estado se protegia contra o escravizado que começou a ficar rebelde? Era repressão.
Hoje em dia, você chega no Jacarezinho, foi igualzinho. Mas você não pode fazer isso sem nada. Então, a polícia cria uma senha. Qual é a senha? É o tráfico de drogas. O tráfico é a senha para você fazer qualquer coisa. O Judiciário não entra fundo na questão do tráfico. Por quê? Porque isso é interesse do Estado, que existe para manter a desigualdade.
Me diz uma coisa, como é que vai manter a desigualdade? Como é que você vai manter o acúmulo de capital aqui dentro? São dois milhões [de moradores de favelas]aqui no Rio de Janeiro, que são controlados por cem mil [policiais]. Como é que faz isso? Sentando numa mesa e conversando? Não! Aqui sempre foi porrada. E o Estado não sabe disso? O Estado sabe disso e quer. O Estado que eu digo é o Poder Judiciário, Legislativo, Executivo, Ministério Público. Eles têm tolerância com isso. E a mídia também, porque a mídia reflete os interesses dos seus donos. O dono da mídia não é do agronegócio? O dono da mídia não é industrial? Não é investidor do mercado financeiro?
Então, o problema da segurança pública é mais profundo?
A segurança pública faz parte de um projeto político do Estado. Isso vem desde a colônia. Quando o Dom João VI chegou aqui, ele viu e disse: “epa, só isso não”. Então, ele aprimorou a estrutura de Estado para ser uma máquina arrecadadora e garantidora da Corte. O que faz o sistema de segurança hoje é garantir a “Corte” respirar tranquilamente.
Quer queira, quer não, o Poder Executivo e o Legislativo integram a Corte. O PT, quando chegou no governo, não só não enfrentou essa estrutura toda, como a fortaleceu. Fortaleceu as Forças Armadas, a GLO [decreto de Garantia da Lei e da Ordem], a legislação de terrorismo…
Veja, os caras do Itaú votam no Lula! Como é que é isso? Ou eles deixaram de ser banqueiros ou ficaram malucos. Porque se você vota num partido de esquerda, que foi formado para ser socialista, isso é suicídio. Alguém foi cooptado. Se alguém foi cooptado, é difícil que seja o detentor do capital, porque ele está muito mais na frente.
Falando agora do problema das milícias, como funciona essa dinâmica hoje?
O coronel se segura porque ele tem uma firma de segurança, faz segurança das lojas, da indústria, entra em contrato de licitação com o prefeito, com o governador. Ele está garantido. Já o praça, o soldado, o sargento, não. Acontece que eles são maioria da polícia, né? E não são idiotas. Eles são o sistema de segurança. O cara chega e diz: “como é que fica isso?”. Tem um grupo privilegiado e outro que ficou excluído e tem que se virar. O praça e o sargento têm que se virar. E o que eles fazem? Montam a milícia. A origem da milícia é isso.
Os milicianos são tão “competentes” que eles fazem um prédio de seis andares e só quando está pronto o Estado descobre [Hélio faz referência aqui ao desabamento de dois prédios de 6 andares construídos pela milícia, na Zona Oeste do Rio, em 2019]. Quer dizer, o fiscal da prefeitura passou lá, todo mundo passou lá, entende? Aquilo não se construiu do nada.
Agora, se um trabalhador botar alguma coisa em cima da calçada, um produto que não está acertado com a PM nem com o guarda municipal, os caras chegam lá, catam tudo e vão embora. E se reclamar vai pra vala. Isso é o Rio de Janeiro.
E como resolver o problema da segurança pública?
Eu acho que a estrutura é totalmente corrompida. A estrutura de Estado aqui não vale nada. Ela foi montada para reproduzir desigualdade. Então, você tem que mexer na estrutura, tem que transformar radicalmente o Estado. Você faz isso e o resto vem por consequência. Se você tem um Estado que não é mais desigual, a segurança vai ser outra. Esse é o caminho.