segunda-feira 11 de novembro de 2024

Dai a César o que é de César

Reprodução

Por Adelmo Marques Luz

Comecei a frequentar os estádios de futebol em 1969. Ano em que meu galo foi campeão, após empatar em 1 X 1 com o CSA no campo da Pajuçara. Meu primeiro é inesquecível título.

Naquela época o nosso goleiro era o Pompeia, oriundo do CSE de Palmeira dos Índios. Depois apareceu o excêntrico Cocorote, cuja estatura era minúscula, mas possuía a versatilidade de um felino. Incrível.

Alguns anos depois, apareceu o César. Acompanhei toda sua inigualável trajetória.

A instituição CRB, assim como nós torcedores, deve muito a esse magistral atleta.

Dívida impagável.

Lamento profundamente o seu falecimento, sobretudo nas circunstâncias em que ocorreu: esquecido, ignorado, não obstante a sua extensão e gloriosa contribuição ao Clube de Regatas Brasil.

Um craque marcado pelo impiedoso destino; um ídolo que findou sua existência no anonimato.

Lastimo que não se tenha dado em vida a César o que era de César. Logo a ele, um imperador, que tão bem guardou a sua meta. Graças às suas cinematografias defesas, pudemos acumular títulos taças e glórias que hoje compõem o acervo do clube que amou.

Infelizmente, a indesejada o levou precocemente. Esse gol você não pôde evitar.

Mas saiba, arqueiro, que és um insuperável e eterno campeão.

Agora, nós regatianos, faremos a defesa de sua história de glorias aqui na terra, enquanto você, sob as bênçãos de Deus, continuará a defender eternamente nossas cores aí no céu.

Muito obrigado, César!

Sessão da sova

11 de abril de 2023 3:32 por Adelmo Marques Luz

www.icrc.org/pt/document

 

Quem não arrisca não petisca”, diz o extravagante adágio popular. Repetido ao longo do tempo, o provérbio apela para a crença de que a vida é um jogo e assim deve ser encarada, incutindo no espírito dos afoitos apostadores o fascínio pelos riscos, cujo êxito não depende exclusivamente da vontade dos interessados. Estimulados pela recomendação da máxima, de caráter prático, compulsivos jogadores apegam-se à possibilidade de ganhar o mundo ou o nada, e mergulham nesse carrossel cheio de precipícios, indo às últimas consequências, ignorando que são imprevisíveis os caprichos da sorte, e que nem todos que os desafiam logram êxito.

Nessa perspectiva, imagine o leitor, um larápio conhecido pela alcunha de “Negro Vamp,” que estava preso em um Distrito Policial situado na periferia da cidade, numa época em que inexistia qualquer tipo de controle ou fiscalização da atividade policial, concordou enveredar por uma arriscada empreitada no afã de conquistar sua liberdade, a exemplo do que faziam os antigos gladiadores nas arenas romanas, quando submetidos às ferocidades dos espetáculos, sob os apupos de uma plateia sedenta de beber o sangue derramado.

Após alguns dias na agonia da clausura, à espera da morosa burocracia, Vamp media o tempo pelo latejar da ansiedade que lhe devorava as entranhas. Sentia-se estressado como um pássaro silvestre aprisionado numa cumbuca. Ali convivia com outros delinquentes, roçando-se uns nos outros pela falta de espaço, e batendo-se contra uma praga de implacáveis percevejos que lhes tiravam o sono.

Tratava-se de uma criatura ainda jovem, mas com o futuro de antemão desfeito. Não era um delinquente feroz, mas nocivo, e de posse de um pé de cabra devassava, mesmo que trancado a sete chaves, o mais oculto tesouro. Foi marcado pela miséria da fome e a angústia da escassez, e desde tenra idade manteve contato com o mal semeado pelo mundo. Morava com a mãe promíscua, que tinha filhos de vários homens, numa rua de barro da periferia onde o esgoto corre a céu aberto.

Fora preso em flagrante quando praticava um pequeno furto, delito no qual era reincidente. Tentou, em vão, evadir-se da equipe policial escalando um muro que lhe daria fuga por um terreno baldio, mas terminou surpreendido e cedeu diante do cerco que lhe armaram. A delegacia para onde fora conduzido estava instalada em um prédio velho e mal conservado, e da cela exígua exalava um cheiro fétido, proveniente de uma vasilha que fazia as vezes de latrina.

Numa madrugada quente, quando os meliantes dormitavam um sono leve e entrecortado, foram despertados pelo roçar metálico das chaves abrindo o cadeado. Era o carcereiro, homem de gênio esquisito, semblante duro e braços pesados que ordenava num tom de voz pouco amigável:

– Escutem aqui, seus pilantras, querem sair desse buraco? A princípio ninguém entendeu o sentido da pergunta, mas permaneceram quietos à espera de mais explicações:

– Sabem como é, continuou o guarda, as festas se aproximam e nesta época do ano baixa o espírito natalino no doutor. Referia-se à autoridade policial do distrito, o delegado Verdugo, que pronunciava palavras frias e circunspectas, e era famoso por suas práticas aterrorizantes, infligidas aos detentos para obter confissões. Dizia-se que com ele à frente de um inquérito não havia enigma, causa oculta, estabelecia-se a “verdade” de qualquer crime, determinando sua autoria, mesmo que para isso recorresse aos mais espúrios desígnios.

“O segredo é não permitir que o cabra tenha sossego, senão ele pensa e articula álibis mirabolantes,” dizia, vangloriando-se do seu conjunto de métodos próprios que considera infalíveis.

Naquela época, da qual muitos sentem saudades, a tortura proliferava como um expediente trivial nas delegacias, palco onde ocorriam escandalosas representações do gênero. Pela sua duradoura repetição, essa “arte” encontrou, até pouco tempo atrás, muita serventia, e sobreviveu ao longo do tempo como uma espécie de instituição, embora revestida de absurda ilegalidade. Para tanto, contava com a tolerância e indiferença da sociedade a despeito do seu caráter desumano. O ritual meticuloso dos carrascos durante os interrogatórios recaía de forma direta e implacável sobre o corpo indefeso, num confronto desigual e covarde entre o torturador e o supliciado, como um eficiente modus operandi de se apurar a materialidade e autoria de um crime.

– Topam tomar parte na sessão da sova?

O carcereiro exortava os presos a participarem de uma famosa concorrência, estimulando-lhes o espírito de emulação:

– É só ter coragem de amortecer algumas pancadas… Nada mais do que isso… Quem se habilita? É pegar ou largar!

Quando o plantão transcorria sem maiores alterações os agentes, desejando espantar o sono, propunham a liberdade a quem se tornasse vencedor no certame. Aquele que suportasse os suplícios no prazo predeterminado estava livre; caso contrário, continuaria a mofar na masmorra para onde retornava lambendo as feridas adquiridas na disputa. Mas o convite só era extensivo a quem havia praticado “broncas safadas”, de menor potencial ofensivo. Consistia numa “brincadeira” na qual o detento teria de suportar durante trinta minutos, preferencialmente sem intervalos, sob pena de haver prorrogação, de uma variação de golpes desferidos no corpo de quem aceitasse o difícil e penoso desafio.

– Eu topo, disse Nêgo Vamp, com a voz cheia de mansuetude.

– Passe para fora, ordenou o guarda.

– Alguém mais?

Recebeu o silêncio como resposta. Somente Vamp, que tinha os olhos cheios de remelas e agastados pelo enfado, acompanhou o guarda que atendia pela excêntrica e espantosa alcunha “Macabro”, em razão do seu tema preferido ser a morte. Seguiram por um corredor estreito e escuro. No final da via-crúcis, entraram na “Sala dos Conselhos”, onde havia numa parede encardida a seguinte inscrição em letras legíveis e garrafais: “Quem já passou por aqui e disse que não apanhou é mentiroso.”

Toda a turma de plantão estava presente. No canto da sala, um agente que trajava um casaco de couro escuro e calçava botas lustrosas, ocupava-se em limpar sua pistola com o esmero semelhante ao dos colecionadores. Chamavam-no de Nado Beretta, devido a sua ufana preferência por esse tipo de arma. Sobre um birô velho e escorado, repousavam alguns apetrechos que seriam utilizados no jogo insidioso. Embaixo de uma pia, disponíveis como os únicos instrumentos de primeiros socorros, um recipiente com água e um pano mais sujo que toalha de mecânico. Sem subterfúgios o Dr. Verdugo, homem que demonstrava uma severidade fatalista, apressou-se em esclarecer:

– Espero que o senhor entenda o espírito da coisa. Afinal de contas você há de convir que aceitou participar do certame amistosamente, não é verdade? Não se preocupe com os nossos métodos. Asseguro-lhe que as regras são convencionais, e pela minha experiência, adquirida ao longo dos anos (dizia isso com uma imoderada vaidade), posso lhe dar proveitosas sugestões. A primeira delas é que você deve se comportar com indiferença às molestações, ignore os dissabores e os gravames. Apenas isso. No mais, é procurar manter a tranquilidade a qualquer custo. Imagine-se num parque de diversão, participando de uma atividade lúdica… Nos momentos agudos você até pode extravasar gritando, faz parte do jogo, mas lhe advirto que não haverá intervalo, exceto em situações extremas, senão esfria o corpo e termina por esmorecer o ânimo. E então, podemos começar?
Antes mesmo de consentir, Nêgo Vamp ouviu alguém intimidando-o numa linguagem sentencial:

– Tire a roupa, Negão!

Vamp sentiu os arrepios do medo comum aos condenados a caminho do cadafalso, mas não ousou desistir. Recuar naquela altura dos acontecimentos seria sinônimo de fraqueza. Seu corpo foi borrifado com um líquido que chamavam pejorativamente de água benta. Enfim, a contenda teve início com a sessão “manicure”, na qual um dos agentes utilizou-se de um alicate para lhe extrair algumas unhas. Com as mãos ensanguentadas, Vamp teve que disponibilizá-las sobre a mesa para que lhe aplicassem uma sequência de bolos. O estalido dos golpes da palmatória o fez emitir gritos prolongados que atravessavam o ambiente lacrado. Resistia contra a dor e suportava os assaltos dos suplícios como Prometeu, acorrentado por Zeus, no cume do monte Cáucaso, onde todos os dias um abutre dilacerava seu fígado. Sem descontinuar, Vamp foi conduzido ao pau-de-arara e, à medida que um torturador lhe aplicava choques elétricos na cabeça, outro se ocupava em introduzir-lhe um cassetete no ânus. Até então, o embate prosseguia sem intervalos, mas com a aplicação de uma série de “telefonemas” ensurdecedores que estouraram seus tímpanos, caiu desacordado, e a contenda foi interrompida até que fosse reanimado pela água. A expressão do seu rosto desvanecido denotava que já havia chegado ao limite. Àquela altura da peleja eram visíveis as grandes chagas arroxeadas distribuídas pelo corpo, mas seguiu apanhando intensamente. Sem voz, os gritos já não saíam, apenas gemia, enquanto os homens suados cercavam-no como um bando de corvos. Num acesso irresistível de náusea Vamp vomitou um líquido viscoso e esverdeado, o que desagradou os agentes por tê-los deixado repugnados.

Enfim, o tempo havia expirado. Vamp foi salvo pelo gongo. Todos ficaram impressionados com a resistência do negro e felicitaram-no por isso. Até então, ninguém tinha conseguido realizar o feito heroico. Suportou uma surra que mataria uma mula. A desenvoltura dos algozes na aplicação dos suplícios foi tamanha que certamente seria uma demonstração valiosa às observações acadêmicas de Beccaria.*

Vamp vislumbrou poder antecipar seu retorno ao convívio no seu mundo, em sossegada liberdade, sem ter de derramar lágrimas de sangue e tardias pelas baixas sofridas no campo de batalha. Imaginara poder repetir o feito de Davi, o israelita, que lutou sem espada nem armadura e venceu o gigante filisteu chamado Golias. Os despojos a que Vamp teve direito, oriundos da batalha insana, foi perder irremediavelmente a mobilidade das pernas que secaram com rapidez, privando-o do direito natural de locomover-se livremente. O infeliz terminou seus dias arrastando-se pelas calçadas a pedir esmolas, lamentando ter apostado em circunstâncias que lhes eram absurdamente adversas.

Adelmo Afonso de M. M. Luz

*Cesare Beccaria – Marquês de Beccaria (Milão 1738/1794), jurista, filósofo, economista e literato italiano, autor da obra “Dos Delitos e das Penas”, onde denunciou as torturas empregadas como meio de se obter a prova do crime.

 

A saga de um pescador

10 de maio de 2022 7:10 por Adelmo Marques Luz

Fonte da imagem: celebrealagoas.blogspot.com

Nos idos dos anos sessenta, em Marechal Deodoro, município do Estado de Alagoas, mal havia luz elétrica. O lugar possuía hábitos moderados e vida monótona, e os costumes eram baseados em regras bem definidas e estanques. Cidade de mobilidade precária, o sossego, acalentado pela brisa que soprava da lagoa que a circunda, estimulava os habitantes daquele lugar aprazível ao exercício da preguiça. A utilização lagunar como via de comunicação entre as comunidades circunvizinhas era recorrente e atendia às necessidades da população na época em que os engenhos Lamas e Oitizeiro, entre outros, desempenharam suas atividades econômicas.

Nas margens da lagoa Manguaba, no povoado conhecido pelo nome de Porto das Canoas, existia um modesto ancoradouro onde se realizavam reparos em pequenas embarcações de madeira. Naquele recanto vivia uma família cujo provedor chamava-se Benga, um cafuzo de 35 anos, aproximadamente, pescador desde criança. Aprendeu o ofício com o avô, e logo mostrou sua aptidão inata para a realização daquele ofício. Exímio nadador, possuidor de um fôlego inigualável, mergulhava sem o auxílio de equipamentos até as profundezas de onde extraía das águas salobras o sustento com que apascentava a fome de uma prole extensa.

Abrigava-se com a família num casebre de taipa coberto com palhas. Morada simples onde nada demonstrava ostentação, tampouco escassez. Embora não houvesse dinheiro, a comida era farta. O chão da choupana constituía-se de forma irregular e de barro batido, e o fogão, que enegrecia o fundo dos tachos, alimentava-se da madeira trazida da mata. À noite, viam-se luzes cambaleantes emanarem da janela, provenientes dos candeeiros. A vegetação, no entorno, compunha-se de frondosas árvores cuja prevalência era das mangueiras. Não havia estradas, e pelo local circulavam apenas pedestres e veículos de tração animal. Quando estavam ociosos, o que quase sempre ocorria, os nativos, obstinados comedores de crustáceos, espichavam-se, bocejantes, depois de ingerir cachaça sob o alento do vento morno que soprava ininterruptamente.

Eis que um dia deu-se uma refrega entre dois nativos que alterou a rotina do lugar. O fato determinou o fim do sossego de que até então todos ali desfrutavam. Para Benga, então, foi crucial, porquanto envolveu seu irmão mais novo, Gilberto, assassinado por Nô, seu amigo de infância e companheiro de farras. Ambos disputaram a preferência de Nina, uma jovem prostituta recém-chegada ao cabaré da cidade, e que ainda não havia sido contaminada pela sífilis. Dessa relação recente e despretensiosa, sobreveio o entrevero que transformou as famílias até então unidas pelo sentimento da camaradagem em adversárias figadais.

Gilberto já tinha conhecimento das intenções de Nô em relação a Nina, mas ao vê-la pela primeira vez no salão do cabaré, maquiada e metida em roupas provocantes, não resistiu aos seus encantos. Naquela noite, Nina ainda não havia se comprometido com ninguém. Aproveitando-se da ausência de Nô, que tinha ido ao banheiro, Gilberto abordou a meretriz, desfazendo-se em obséquios, jurando proporcionar-lhe uma noitada primorosa. A meretriz encantou-se com os cortejos do incorrigível galanteador e terminou aquiescendo em lhe fazer companhia. Sentaram-se à mesa mais próxima e passaram a beber ao som de uma vitrola que tocava Nelson Gonçalves. A cena pegou Nô de surpresa, cujo temperamento excedia em timidez. Contava que Gilberto pudesse ajudá-lo, conforme lhe havia prometido, a aproximar-se da rapariga por quem estava apaixonado. Por mais que tentasse, não conseguia dissimular a contundência do golpe. Havia outras mulheres disponíveis, mas nenhuma delas despertava seu interesse. Nina era a de sua predileção. Saiu sem se despedir, contrariado, pois estava a ponto de cometer um desatino.

Enquanto isso, Gilberto, alheio ao desapontamento do amigo, tagarelava como um papagaio, feliz da vida com a sua recente conquista. Na madrugada o casal recolheu-se ao quarto, tomaram banho com a água fria do pote e entregaram-se aos prazeres do amor.

Quanto Nô chegou em casa sua esposa já estava em pé, ocupada com os afazeres domésticos, e nem se deu conta do estado de espírito do marido. Mas, ao vê-lo limpando a espingarda empoeirada que ficava exposta na parede da sala, perguntou-lhe surpresa:

– Vai caçar?

Com a cara amarrada, Nô respondeu-lhe que sim, mas recomendou que ela cuidasse de refogar o peixe para o almoço, porque a carne do bicho que ele iria matar naquele dia não servia para comer.

Saiu e foi tocaiar Gilberto num terreno repleto de bananeiras, próximo à casa de ambos, imaginando que ali não corria o risco de ser identificado. O amante, desavisado, ainda sob o efeito da aguardente, regressava em paz e felicíssimo com a pândega, quando se ouviu o estampido. Mesmo ferido gravemente no peito, Gilberto conseguiu reconhecer seu agressor, que rompeu em fuga desenfreada. Enquanto teve forças gritou seu nome, atribuindo-lhe a autoria do crime. Os vizinhos acudiram-no. A esposa e os filhos, ao vê-lo estirado no chão sobre uma poça de sangue, deram-lhe as mãos num derradeiro gesto de despedida. Imóvel e mudo, não foi difícil perceber que a vida o tinha abandonado.

Benga encontrava-se no Porto das Canoas, ultimando os preparativos para a pesca. Quando sua mulher lhe repassou os fatos em seus mínimos detalhes, seu rosto foi tomado por uma lividez vítrea. Naquele dia não trabalhou, não comeu, não dormiu, e foi dominado por um agastamento que o deixou mole e estúpido. Com a morte de Gilberto, o destino lhe infligiu árduas incumbências, entre as quais, sustentar a família órfã composta de mulher e quatro filhos. Restou-lhe curtir a dor da perda, atormentado pelas inquietantes reflexões quanto ao futuro.

Não obstante o assassino ter sido preso, o caso não se limitou às barras da Justiça. É que o irmão mais velho de Nô, conhecido pela alcunha de Raminho, não deu o caso por encerrado. Anunciava pelos quatros cantos que iria concluir o serviço matando Benga, por ser este, segundo ele, o único membro da família adversária capaz de esboçar resistência.

Raminho, que nunca abdicava do punhal, onde encontrava Benga insultava-o aos brados, conclamando-o ao embate. Receando novos vexames, Benga acautelava-se, evitando circular pelas ruas centrais da cidade, sobretudo à noite, e o seu temor não era infundado, pois já havia sido alertado de que estava sendo seguido. Possuidor de uma índole ordeira, razão pela qual era estimado pela comunidade, dava demonstrações inequívocas de querer o armistício.

Deixou até de ir à feira, onde era necessária sua presença, sobrecarregando a esposa, Nenen, a quem transferiu a atribuição que cabia a ambos: vender o excedente da pesca. Mas nem ela foi poupada. Raminho, que em mais de uma oportunidade lhe interpelara em tom de provocação, dizia, a título de ameaça, que ia arrancar as tripas de Benga da mesma maneira como se trata o peixe. Testemunhas asseguraram ter visto Raminho, em mais de uma oportunidade, escarrando sobre o pescado que o casal expunha à venda.

Certo dia, Benga deu pela presença de um sentimento que lhe invadia a mente e o coração, interferindo em seu comportamento, mas não sabia determinar do que se tratava. Ignorava a si próprio em muitos aspectos. O certo é que a condição emocional em que se encontrava estorvava-lhe a percepção e o ânimo, prejudicando o desempenho de suas atividades no dia a dia. Temia o imponderável, o que o fez afastar-se do convívio comunitário e limitar suas relações aos parentes e a alguns amigos. Perambulava, apenas, por uma área contígua à sua casa, ou ia espichar-se em sua canoa ancorada no trapiche onde se demorava, sopesando as causas e as razões que o levaram a fazer parte do insólito enredo. Nessas ocasiões, não raro era necessário que alguém lhe interrompesse as reminiscências, chamando-o à realidade por se manter demasiadamente distante, absorto e mudo, ocupado apenas com seus próprios pensamentos.

O vigário da paróquia, ao tomar conhecimento da contenda, resolveu consultar os desavindos separadamente. Ao final de suas alegações, o pároco fez às partes um longo e austero arrazoado, exortando-as à conciliação. Gesto louvável do prestativo sacerdote, mas a julgar pelo desfecho da urdidura, o apelo não surtiu o efeito desejado.

A orfandade da família, justamente quando mais precisava do seu arrimo, era a maior apreensão de Benga. Sabia que era a única escora e o último resguardo da prole que havia crescido em número e necessidades com a morte do irmão. A lagoa passou a ser o único lugar em que se sentia seguro, daí ter passado a pescar com mais frequência. Conhecia todos aqueles recantos por tê-los percorrido quando menino na companhia do avô. Ali havia nascido e se criado, e vezes sem conta exercera o seu mister.

Em uma de suas notívagas pescarias, logo após ganhar as águas, deixou-se vagar no ritmo da correnteza, menosprezando as condições do tempo, que naquela noite indicava ser desaconselhável a prática do seu ofício. O céu achava-se encoberto por nuvens inquietas e carregadas, e o vento soprava forte, batendo portas e desfolhando árvores. Estava tão escuro que nada se podia distinguir a poucos metros de distância. A julgar pela ventania que atiçava as águas pardacentas, prenunciando aguaceiro, ninguém, em sã consciência, arriscaria sua vida a desafiar a natureza. Nesse período a maré espanta os peixes, as águas crescem em volume e força e não respeitam obstáculos, subjugando tudo que se atreve a barrar-lhe o caminho. É claro que Benga conhecia o fenômeno. A experiência acumulada ao longo dos anos e a sua herança atávica davam-lhe o completo domínio sobre o exercício da atividade, mas em razão do estado emocional em que se encontrava, desconsiderou os fatos, numa demonstração despropositada de que não temia a morte.

A canoa singrou em direção às correntes profundas do Canal Grande que serve de ligação com o mar, em cujo itinerário, principalmente no período invernoso, naus foram tragadas e muitos pereceram. Pela incidência dos naufrágios ocorridos naquela travessia, acreditava-se que fosse amaldiçoada, o que a fez ganhar fama e incutir o medo na população ribeirinha, exigindo redobrada atenção dos timoneiros.

Em pouco tempo desabou o temporal previamente anunciado. Os rios Paraíba e Sumaúma, fiéis tributários da Manguaba, receberam uma quantidade desmedida de águas e, sobrecarregados, transbordaram. O vento soprava impetuoso, vergando coqueiros, agigantando as vagas, mas Benga, fazendo uso de sua destreza, manejava para que a canoa permanecesse à flor das ondas grossas e arredias. Foi impossível manter a posição quando surgiu de forma inesperada um tumultuoso tropel, movendo-se em desordem, e lhe arrebatou o remo das mãos. Benga foi arremessado para longe da canoa, que emborcou e desapareceu. Na condição de náufrago solitário, restou-lhe espernear para se manter vivo.

Para fugir dos redemoinhos que teimavam em arrastá-lo para as profundezas, nadou incansavelmente em direção à terra firme. Depois de muito pelejar, com cãibras a imobilizar-lhe as pernas, sem fôlego nem voz, abraçou-se a um tronco de madeira que lhe serviu de salva-vidas. Aportou na ilha do Frade, uma nesga de pântano de vegetação rasteira, santuário dos crustáceos, onde caiu exausto como se o corpo lhe pesasse uma tonelada. Jazia por terra com os olhos esbugalhados, vomitando o excesso da água que havia engolido. Mas, enfim, estava salvo.

Ao amanhecer, o tempo voltou à bonança e o sol surgiu descortinando a paisagem encharcada pela tromba-d’água. A família estava apreensiva quando Benga, rilhando os dentes de frio, bateu à porta. Foi um alívio. De pouca conversa, dirigiu-se à cozinha, onde tomou posse de uma garrafa de aguardente. Bebeu e foi deitar-se para dormir o sono dos mortos.
Ao acordar, foi indagado pela mulher sobre o seu sumiço na noite chuvosa. Tergiversou, pois não pretendia admitir a imprudência que cometera. Assegurou que tinha atravessado a lagoa, em direção a Taperaguá, rumo à casa do velho Moisés, a fim de acertar um serviço de calafetagem. Por conta do temporal, foi aconselhado pelo mestre a permanecer por lá até que as condições do tempo lhe garantissem o retorno. É claro que Nenen não se deixou enganar, mas deu o caso por encerrado, receando contrariar o marido, que ultimamente andava avoado.

Assim como Raminho o fazia sofrer, sua consciência também era responsável pelo seu padecimento, só que por vieses diferentes. Aquele o hostilizava com ameaças físicas, humilhando-o abertamente; enquanto esta atuava em surdina, chamando-o à responsabilidade pelo descumprimento de obrigações inescusáveis. Admitia, contrariado, que violara preceitos fundamentais, entre os eles o sagrado dever de proteger a família. Na qualidade de irmão mais velho, esposo fiel e pai dedicado, envergonhava-se por não ter tomado providências que pusessem termo ao inaceitável drama.

O episódio da fatídica travessia, que quase lhe ceifou a vida, incutiu-lhe a certeza de que era um homem corajoso. Afinal, quem, se não ele, desafiaria a Manguaba na ressaca, açulada por São Pedro, durante uma tempestade extraordinária? Quem seria capaz de cruzar seu leito no breu e no braço, no auge da sua cólera, com o céu trovejando e cuspindo raios? Remoendo essas questões durante os momentos de insônia, convenceu-se, aos poucos, da ideia de vingança. Desse dia em diante Benga negou-se a viver encerrado em casa e abdicou da clausura, mas sabendo que ficaria exposto às intenções homicidas do inimigo manifesto.

Não demorou muito para que ocorresse um novo encontro. E como era de se esperar, Raminho invectivou-o. Era domingo, dia em que a feira é lucrativa e o apurado possibilita a quem mercadeja uma folga no orçamento. Mas Benga deliberou fechar seu negócio antes da hora e foi para casa bufando com a desdita que Raminho lhe jogou na cara. Naquela altura, ninguém dissuadia Benga da ideia de liquidar o seu oponente. Nem o choro da mulher e dos filhos, ao vê-lo amolar a foice, confessando o que tinha em mente, vergou seu ânimo. Saiu à cata do inimigo, acumulando forças que lhe eram desconhecidas, mas necessárias para levar a cabo sua incumbência. Encontrou Raminho bebendo junto a alguns amigos, num boteco de pouca freguesia.

Ao entrar no recinto, foi interpelado por conciliadores que perceberam o significado de sua presença. Benga não lhes deu ouvidos. Seu semblante era tão assustador quanto a lâmina que portava ostensivamente. Ao vê-lo, Raminho, diferentemente de outras vezes, sentiu o medo manietar-lhe os músculos e talhar seu sangue. Agora ele era o alvo, a presa encurralada que tinha diante de si um canídeo sedento de suas vísceras. Pálido e sem viço, impossibilitado de opor resistência, não ousou sacar de seu punhal até porque não haveria tempo. Nem sequer conseguia articular um discurso, tal a inércia de que fora acometido. Instalou-se um silêncio de instantes que lhe pareceu uma eternidade. Pronunciou palavras vazias, disparatadas, que tinham o claro objetivo de procrastinar a execução. Esperou, debalde, surgir a oportunidade de pular o balcão e fugir pela porta dos fundos. Mas Benga mantinha-se vigilante como se lhe lesse o pensamento. Encerrado num canto de parede e sob o cerco de um alucinado, Raminho percorria o recinto com os olhos suplicantes à procura de alguém que pudesse interceder e lhe salvar a vida. Mas todos os que se faziam presentes, ao perceberem o propósito da invasão, evacuaram antes de ter início o acerto de contas. Sua vida estava por um triz, e a morte a dois passos de distância.

Recebeu a primeira cutilada na altura do pescoço, que o levou ao chão. O agressor deu continuidade ao espetáculo deplorável, aplicando-lhe uma sucessão rápida de golpes por todo o corpo, que foi esquartejado.
Muita gente, ao ouvir a gritaria, acorreu ao local e formou em volta da cena sanguinolenta um círculo atento e silencioso. A notícia do crime espalhou-se rapidamente por toda a cidade, atraindo curiosos e desocupados. O corpo do moribundo jazia estirado no chão; escorria, em direção à sarjeta, grande quantidade de sangue.

Benga retirou-se sem que ninguém o incomodasse. Cruzou a área do mercado público que estava lotado naquela hora, numa movimentação desordenada de pessoas que entraram em pânico. Mas Benga reagiu com indiferença ao tumulto e continuou caminhando em direção à delegacia, que funcionava num prédio antigo na parte alta da cidade. Entrou segurando pelos cabelos a cabeça decapitada que balançava como um pêndulo, e de onde gotejava sangue. A guarnição plantonista jogava dominó, e ao vê-lo aproximar-se, quedou-se estupefata. Julgaram, a princípio, tratar-se de uma brincadeira, mas diante da realidade inquestionável e inusitada, deram-lhe voz de prisão. Recolheram-no ao xadrez e meses depois foi julgado. Absolveram-no por unanimidade, sob a alegação de que agiu em legítima defesa.

Adelmo Marques Luz é contista e funcionário Público

Com casca e tudo.

3 de novembro de 2021 11:04 por Adelmo Marques Luz

 

(*) Adelmo Marques Luz é funcionário público, advogado e escritor

Por que razão, e sem que haja para isso um motivo plausível, ressurgem em nós, mesmo que espaçadamente, os acontecimentos de nossas infâncias, como se os tivéssemos diante dos nossos olhos? Creio que com todos nós é mais ou menos assim que esse fenômeno ocorre.

Revi-me, recentemente, diante de tais circunstâncias, ao relembrar-me de cenas vivenciadas em um passado longínquo. O fato é que carrego, involuntariamente, na memória, figuras pretéritas, peculiares, suas vozes, seus traços, as cenas nas quais estão inseridas, o ambiente da narrativa… Tudo aflui-me à consciência. Um elenco borbulhante de personagens com seus semblantes dos quais me valho para fixar e desenvolver a urdidura. Devo reconhecer que a circunstância de morarem em mim as lembranças do meu tempo de menino, e poder transportá-la para o papel, constitui um inestimável privilégio pessoal. Mas também sei que os meus leitores, se é que os tenho, talvez não demonstrem curiosidade em conhecer tais vivências. Paciência! Afinal de contas, não sou um homem culto, letrado, não possuo títulos ou comendas, tampouco escrevo livros; sou apenas um presunçoso que pretende escrever livros. Hei de conseguir? Nem eu mesmo sei dizer. Todavia, por falta de aptidão e alternativas para a realização de outro ofício mais útil, teimo em registrá-las em forma de crônica. Apenas isso.

A minha infância, adolescência e parte da vida adulta, passaram-se na Rua General Hermes, 81, no bairro da Cambona, cidade de Maceió. Aportei por lá ainda garoto, nos idos de 1963, aos sete anos de idade. Amei aquela casa, ainda hoje existente, mas condenada pela ação implacável do tempo. “Tudo o que é sólido desmancha no ar”. “Vão demolir a casa onde outrora me criei. Mas como dizia o poeta, “meu quarto vai ficar, não como forma imperfeita, neste mundo de aparência: Vai ficar na eternidade, com meus livros, quadros, imagens, intacto, suspenso no ar”!

O quintal comprido, espaçoso e frutífero (manga, cajarana, coco, fruta pão, banana, goiaba), era o meu local predileto. Acordava-me pela madrugada, sobretudo nas férias escolares de fim de ano, que se estendiam entre os meses de dezembro a março, para usufruí-lo. Costumava escalar o pé de manga rosa para colher a fruta por mim tão desejada, e que lembravam as maçãs do rosto da menina mimada, e os seios por mim acariciados dos meus tenros e fugazes amores.

O número e a diversidade de pássaros que cruzavam o local enchiam-me de alegria. Via o xexéu, serelepe e cantante, fazendo a festa nas bananeiras; o sanhaçu, o sibiti, famoso caga-sebo, o beija-fllor, o bem-te-vi, a lavandeira, o papa-capim… Aprendi, com o tempo, a distinguir os trinados e gorjeios de todos eles. Era um deslumbramento para os meus olhos, maravilha para os meus ouvidos, e até hoje um encanto para a minha imaginação. E os vigilantes e implacáveis marimbondos? Ficavam enfurecidos quando percebiam que invadíamos o perímetro em redor de suas moradas. Deram-me, certa vez, uma surra. Injetaram-me no corpo, aleatória e desapiedadamente seus ferrões, que me levaram à cama com fortes dores de cabeça, calafrios e febre.

Durante o tempo em que permaneci morando no mencionado bairro, período que se estendeu por quase trinta anos, guardei, ao longo do caminho, as horas de plena felicidade, aprendizado, experiência… As de amargura, também.

Um desses instantâneos cambonenses passou-se no Mercado da Produção, o maior e mais tradicional do nosso Estado. Fixei a cena para lhe dar vida, muitos anos depois, por intermédio da palavra escrita.

Havia eu ido ao local na companhia de minha mãe fazer a feira semanal. Era um sábado, dia em que a feira proliferava desde cedo em quantidade de pessoas e no aquecimento das transações. Toda espécie de negociação era realizada, desde a compra e venda de mercadorias, a troca de objetos, a negociação de animais, o embuste, a receptação, a prostituição… Comerciantes, feirantes, ambulantes, carroceiros, carregadores, marisqueiras, cachaceiros, maloqueiros, prostitutas, larápios, todos mercadejavam. Vale lembrar que naquela época o comércio ali desenvolvido tinha uma forte influência econômica, por se tratar de um espaço para o qual convergia boa parte dos consumidores da cidade. Refiro-me à década de sessenta, quando ainda não havia supermercados por aqui.

A área era extensa, e sua conformação, dinâmica e personagens excêntricas, proporcionavam-me muita curiosidade e interesse, a exemplo do vendedor de elixir, remédio destinado ao consumo oral, que contém substâncias aromáticas e miraculosas, restauradora do vigor das pessoas vítimas de qualquer espécie de enfermidade. Acreditava-se, também, que a mencionada mezinha possuía virtudes mágicas, e que proporcionava rejuvenescimento e vida longa. Mas o que me tomava de fascinação era a cobra jiboia enorme que o vendedor ostentava, enroscada em dos seus braços, às vezes no pescoço, ao apresentar o milagroso produto aos curiosos que formavam um círculo ao seu redor.

O ajuntamento de pessoas, o grito dos pregoeiros, o ruge-ruge dos compradores, o cheiro das frutas, dos legumes, dos pescados que trago na memória afetiva, por meios de elementos sensoriais e emocionais, a exemplo dos sons, cheiros, sabores e cores, e que me remetem àquelas vivências experimentadas no passado, extasiavam-me. Quase nada, ali, se passava sem que eu não lhe desse atenção. Até o grito tonitruante de um carregador que transportava apressado um fardo de carne às costas, ordenando a todos que saíssem de sua frente: Olhe o sangue!

No perímetro daquela enorme área, que açambarcava também a feira do passarinho e/ou do rato, um trecho extremamente barulhento e imundo, acorriam pessoas de vida obscura, de linguajar áspero e intenções duvidosas, a fim de negociarem objetos de procedência desconhecida. Os quiosques afrontosos serviam de ponto de parada obrigatória dos cachaceiros e mulheres de vida fácil. O cenário tinha como pano de fundo a eminente e pomposa Lagoa Mundaú, ventre do sururu, em cujas margens surgiu, aos poucos, a Vila Bejal, bairro que já nasceu sofrível, ambientalmente degradado, edificado numa porção de terreno às margens da Mundaú, alagado e lamacento, insalubre, desprovido, habitado por gente pobre e vítima das recorrentes inundações nos períodos chuvosos.

Certo dia, enquanto esperava que minha mãe concluísse uma compra, observei que havia um ajuntamento de muitas pessoas próximo ao prédio onde funcionava o Centro de Abastecimento/CEASA. Uma plateia barulhenta e em círculo que engrossava em número à medida que para lá convergia. Ouviam-se gritos, repetidos e simultâneos, numa verdadeira algazarra: – É para comer com casca e tudo! Se vomitar, perde!

Do que se tratava, afinal? Por que tanta euforia? A curiosidade terminou por vencer-me, e resolvi averiguar. Antes que minha mãe percebesse a minha ausência, corri a olhar. Fiquei intrigado com o que vi. A princípio, não alcancei o significado do espetáculo que considerei extravagante e incomum. Depositei à cena um olhar fixo e interpelador. Eis que me deparo com dois sujeitos, sentados em caixões de madeira, um de frente para o outro, e sob seus pés, no chão forrado por uma lona encardida, um amontoado de bananas maduras. Tratava-se de um ajuste firmado entre os dois, cujas opiniões divergiam acerca da possibilidade de um deles ser capaz de comer um cento de bananas, inclusive as cascas. Devendo o perdedor da aposta pagar ao vencedor uma certa quantia em dinheiro.

Naquela altura dos acontecimentos, o comedor de bananas já havia engolido dezenas delas. Isso mesmo. Absurdamente empanturrado, a um passo da derrota provocada pelo excesso ingerido, a exemplo das formigas que se afogam numa porção de mel, o comedor suava, seu rosto refletia uma palidez marmórea. O tronco desnudo mostrava um ventre sobrecarregado e disforme, estorvando-lhe os movimentos, lembrando um gorila doentiamente saciado. Engulhava a cada fruta engolida, numa clara demonstração de não mais poder continuar com a insana comilança. Via-se em seu semblante que eram exíguas suas forças, a despeito de sua obstinação em dar cabo da penca que ainda restava. Não lhe bastava o entusiasmo para concluir o desafio que se lhe tornara irrealizável. Ao tempo em que ouvia as zombarias sádicas da plateia circundante que não transigia: – Se vomitar perde!

De repente, surge alguém que se compadeceu com a situação vexatória. Aproximou-se dos apostadores, indagou-lhes sobre o significado daquilo, e, ao saber que se tratava de uma aposta, inteirou-se sobre os termos avençados, as condições impostas e o valor em dinheiro que fora convencionado entre eles. Indignado com a cena extravagante e burlesca, prontifica-se a quitar o valor acordado, mas na condição de que aquilo cessasse imediatamente. E foi o que aconteceu.

O comedor de bananas permaneceu inerte, mudo, os olhos esbugalhados, resfolegante e deitando baba sobre o ventre abaulado. Devido à impossibilidade de locomover-se, saiu dali amparado. Conduziram-no nos braços em direção ao Canal da Levada para expurgar do estômago o que comera desmedidamente. Cerca de 75 bananas.

Na semana seguinte, ao retornar ao local na companhia de minha mãe, que mantinha uma relação de freguesia com uma vendedora de legumes, ouvimos dela que o comedor de bananas exigia uma revanche, sob a alegação de que no dia da desditosa aposta, inadvertidamente, havia feito a primeira refeição à base de pães, ovos, caldo de cana e bagos de jaca. Desconheço se lhe fora concedida a desforra.

Dente de Leite

28 de setembro de 2021 10:43 por Adelmo Marques Luz

Quando eu era criança fui alvo de inúmeras agressividades. Verbais e físicas. Ocorreu-me uma delas quando ainda tinha dentes de leite. E foi justamente por causa da minha primeira dentição, que fui acompanhado de meus pais e de minha irmã mais velha, ao consultório odontológico do Dr. Dorival Lemos, localizado num prédio antigo de primeiro andar no Centro da cidade. Ignorava completamente a existência, a finalidade e a rotina daquele ambiente. Oportuno ressaltar que naquela época não se dava a devida atenção à odontopediatria, quiçá até a desconhecessem. Especialidade que modernamente trata da saúde bucal e do estado emocional dos pupilos, auxiliando-os a superar os transtornos no tratamento dentário sem paranoias, desmistificando a ideia de que o espaço reservado a esse segmento da saúde é uma coisa assustadora, capaz de ocasionar perturbações neuróticas a exemplo do que se deu comigo.

Conservo até hoje um sentimento de desconfiança em relação aos dentistas. Duvido da competência de todos eles no que diz respeito às suas habilidades terapêuticas para aliviar as dores e amainar as aflições dos pacientes. Sinto-me, portanto, irremediavelmente impossibilitado de suplantar esse distúrbio comportamental que evidencia haver em mim, de forma latente e incontornável, um trauma que fora originado na infância.

Não havia ninguém na sala de espera quando chegamos. Para mim, tudo ali era inédito. Pairava no ambiente a essência volátil e inebriante do éter. Logo, o olfato induziu-me a elaborar inconvenientes conjecturas. Para distrair-me e afastar os maus pressentimentos, apossei-me de um número aleatório da revista “O Cruzeiro”, por mim já conhecida, pois meus pais eram leitores e assinantes do mencionado veículo. Folheava-a em busca das charges do Péricles, tão disseminadas na época, sobre o “amigo da onça”. De repente varou o silêncio gritos lancinantes, emitidos por alguém que se submetia à extração de um dente estragado. A anestesia, segundo explicações posteriores que nos foram dadas pelo cirurgião-dentista, não havia pacificado a região infeccionada, nem refreado a sensibilidade do indivíduo. No afã de se livrar daquilo que há dias o mantinha insone e num estado de fraqueza, decorrente da falta de alimentos, o paciente recusava-se a atender ao aconselhamento do especialista para postergar o procedimento. E a dolorosa extração ocorreu à moda antiga, por intermédio de uma excruciante intervenção, sem o apoio dos lenitivos. O infeliz, homem de meia idade, após o espetáculo deprimente ao qual todos nós só tivemos acesso através das percepções auditivas, cruzou a sala, pálido, a passos hesitantes, emitindo gemidos que eram abafados por um lenço que levava à boca.

Chegou a minha vez. Entramos todos. Depois da cena que acabáramos de presenciar, mesmo que indiretamente, era natural que eu estivesse apreensivo e reticente. Um sentimento incontrolável e daninho aguçava-me os sentidos. Pisava leve, a respiração suspensa como se estivesse indo de encontro de uma tragédia. Ordenaram-me sentar numa cadeira em acentuado declive, o que me deixou ainda mais intrigado e à mercê de um homem que havia comprovado ser capaz de infligir maus-tratos sem ressentimentos. A parafernália composta por instrumentos pontiagudos, perfuro-cortantes, remeteram-me à uma cena que havia presenciado dias antes no açougue da Cambona. Seu Eugênio, o proprietário, vestido num avental branco e encharcado pelo sangue, fazia uso de facas afiadíssimas com as quais desossava, com uma habilidade incrível, um quarto bovino dependurado em ganchos. Aquilo atraiu-me a vista e prendeu-me a atenção, causando-me repulsa e medo. Via-me, agora, sugestionado, sendo fatiado ora pelo marchante, ora pelo dentista, que se posicionava impávido ali na minha frente.

Apesar da luz incandescente de um holofote incidir sobre os meus olhos, impossibilitando-me enxergar com nitidez o que se passava no entorno, e intimidado pelas determinações persuasivas da autoridade paterna que se mantinha vigilante no meu flanco, não capitulei:

– Abra a boca! Disse o doutor.

Após uma breve inspeção no dente problemático, sentenciou:

– Vamos extraí-lo! E não há necessidade de anestesia. O dente está bambo.

Besuntou-me a gengiva com uma pomada balsâmica, terrivelmente amarga e repugnante, e em seguida, apossou-se de um alicate:

– Aguente firme! Homem não chora!

Cerrei os dentes, travei a mandíbula e nem as admoestações do meu genitor ralhando comigo, os beliscões, puxavantes, cocorotes e as promessas de retaliações foram suficientes para que eu transigisse. Deliberaram, então, realizar o procedimento à força. Meu pai, ocupou-se em segurar-me um dos braços; minha mãe, mesmo a contragosto, o outro. Minha irmã, por sua vez, prendeu-me a cabeça, e para neutralizar os membros inferiores contaram com a ajuda de um camelô convocado ali mesmo nas cercanias. Debalde foram os esforços no sentido de vergar o ânimo de um garoto aterrorizado, ofegante e à beira da loucura. Após a desordem que se instalou após o corpo-a-corpo, desistiram, mas mantiveram a ameaça de retomar, num futuro próximo, a investida. Felizmente, não levaram adiante tal propósito, até porque não houve tempo.

A solução encontrada por tio Cleto, irmão de meu pai, um democrata e conselheiro da família, deputado federal à época, foi chegar ao meio-termo entre dois extremos. Um ato moderado que, de acordo com aquela circunstância, exigia equilíbrio e comedimento.
Projetara seu nome no cenário político regional, onde ficara conhecido por suas características conciliatórias e pacifistas. Magnífico tribuno, quem o ouvia discursar no parlamento, nos tribunais ou nos comícios encantava-se com a lepidez do seu raciocínio sucessivo, concatenado e convincente. Desportista apaixonado e grande causídico, tinha como princípios inarredáveis respeitar as diferenças ideológicas, e a livre manifestação do pensamento.

Ao tomar conhecimento do episódio humilhante ao qual eu fora submetido, apressou-se em conclamar a família para uma reunião reservada. Desejava definir de forma consensual as ações que seriam adotas ao meu caso dali em diante. Compareceram ao encontro, além dos meus pais, tios e tias. Logo na abertura do evento, que se deu na casa de meus avós paternos, ocorreu a falação do meu pai que se mostrava desassossegado, pois excogitava ser alvo de reprovação por parte dos parentes. Daí a sua premente necessidade em defender-se das críticas que não chegavam a ser explícitas, mas subtendidas. Sustentou desarrazoadamente, a tese de que a questão deveria ser resolvida a muque, sem rodeios nem panos quentes. Recorreu às ilustrações da época em que era criança, valorizando a colheita dos frutos por um homem maduro, íntegro e excelente pai de família, graças à exatidão e eficiência do regime inflexível em que fora criado. Via-se a emoção estampada em seu rosto, a voz embargada, ao discorrer sobre fatos e experiências vivenciados em um passado longínquo que compunham o enredo da sua história.

Tio Cleto, então, intercedeu. Admitiu a pertinência do alegado por meu pai no que dizia respeito às reprimendas outrora adotadas por meus avós, mas contestou a conveniência e a oportunidade das mesmas, pois entendia estarem obsoletas, já que o momento era outro, e que os costumes, vigentes em determinada época, caducam com o passar do tempo.

Completou seu libelo apelando no sentido de que decisões daquele tipo deveriam ser revestidas de bom senso. Afinal de contas, toda criança, em qualquer etapa da existência humana, sentiu medo. E que a forma adequada dos pais lidarem com o pavor de suas crianças seria encará-lo com naturalidade, o que não significaria ignorá-lo:

– Atentemos para o contexto em que se insere o pavor do menino, por mais absurdo e imponderável que seja para a nossa cognição adulta. Só assim ajudá-lo-emos a derrotar definitivamente seus fantasmas. O medo, reiterou, é uma resposta natural de todo ser humano que se encontra ameaçado, seja ele originário de uma situação real ou fictícia. E finalizou seu arrazoado apelando para a seguinte reflexão: “A injustiça que se faz a uma criança é feita a todas as crianças, porque todas as crianças podem ser essa criança”. E a famigerada extração, que já havia virado folclore e servido de escárnio no seio da família, ocorreu dias depois.

Empreendemos, eu e tio Cleto, tratativas sadias e em pé de igualdade. E chegamos a conclusões interessantes. Celebramos um acordo no qual ambas as partes teriam de cumprir obrigações recíprocas. Para granjear a minha confiança e estima, fez-me presente um revólver de brinquedo que disparava quando municiado com espoletas. E com direito a um brinde extra, mas esse, só após da realização do que fora combinado: passaria uma manhã inteira tomando sorvete na Gut-Gut, sob suas expensas. Proposta sedutora e que logo foi aceita. Acompanhou-me ao consultório, no dia previamente agendado, meu padrinho Antonio, que sempre foi meu protetor e amigo, e que me serviu de arrimo na empreitada que ainda me fizera sonhar na noite anterior com coisas sinistras. Como se deu a extração? Ora, com o revólver que me fora presenteado senti-me confiante, destemido feito o general Aníbal que derrotou sucessivamente legiões do poderoso império romano, até então consideradas invencíveis. Resolvi pôr fim à história que haviam propagado injustamente: a de que eu era um “homem” covarde e indeciso. Matei o medo com um tiro…! Confesso, entretanto, que o seu espectro continua a atenazar-me o juízo, sobretudo quando me vem à memória que ainda possuo trinta dentes.

O HOMEM QUE ENGOLIU O PATRIMÔNIO

3 de agosto de 2021 4:46 por Adelmo Marques Luz

 

Seu Odílio havia chegado aos noventa anos. Talvez um pouco mais. Nascido e criado na Zona da Mata, de onde jamais se afastou, exceto quando caiu gravemente enfermo e as mezinhas de um curandeiro afamado da região já não surtiam efeito. A iniciativa de buscar amparo nas clínicas da capital não foi sua, mas da família, quando a doença progrediu e o impossibilitou de dirigir sua pessoa e seus bens. Senhorio de um patrimônio rentável e diversificado, construído à base de asfixiantes economias, soube como ninguém multiplicar o que acumulou ao longo de pesados anos de labuta. Sua obstinação e avareza o fizeram adotar comportamentos excêntricos. Afirmam seus contemporâneos que quando jovem costumava empilhar no fundo do quintal toda espécie de bugigangas. Apropriava-se do lixo sem o menor constrangimento. Era comum vê-lo chafurdando nos monturos à procura do inservível. Frascos, latas, pregos, parafusos, arame, em tudo vislumbrava utilidade. Vangloriava-se em afirmar que o primeiro imóvel, no qual constituiu família, foi edificado com o capital que coletou nas ruas. Não tolerava o desperdício. O que para muitos não tinha serventia, para ele era matéria- prima.

Passaram-se os anos, e nada melhor que o tempo para operar transformações. A vida do velho mudou quando ascendeu ao status de comerciante. Principiou montando uma mercearia. Daí à agiotagem. Nessas frias transações, além de cobrar juros extorsivos, condicionava o empréstimo a garantias privilegiadas. “O seguro morreu de velho”, defendia-se. Ao adquirir a primeira porção de terra, cuidou em reservar uma parte à criação de gado, e à outra, ao plantio da cana-de-açúcar. O comedimento que adotava nas ações mercantilistas resguardava-o do calote. Jamais concedeu anistia aos devedores, e aos credores, que eram raros, o cabimento de notificá-lo por um dia sequer de atraso. Manuseava seus negócios com precisão matemática. Invadia a madrugada calcinando o juízo com exaustivas anotações, estimando lucros e antecipando-se aos prejuízos. Apesar de nunca ter frequentado a escola, aprendeu, com o auxílio de uma tia-avó, a ler e escrever. Desde então, nunca mais se afastou dos livros e recorria à literatura como sonífero.

Conheci-o já enfermo quando meus pais visitaram-no em Maceió. Lembro-me de uma linda casa com muitas janelas, em estilo colonial, cercada por um jardim florido de onde exalava o cheiro do jasmim. Localizava-se na esquina de uma rua que corta a região central da cidade. À época eu era um garoto que usava calça curta e suspensórios, e ainda não tivera a oportunidade de vivenciar semelhante experiência. Fomos recebidos por suas filhas, todas solteironas. Exceto uma, a mais nova, que era casada e que não se fazia presente. Seu único filho, o varão, com quem o velho mal falava, também não estava, mas aguardavam-no juntamente com a irmã ausente e o esposo para o jantar. A matriarca havia falecido precocemente, e Seu Odílio enterrou junto com a defunta a possibilidade de um novo matrimônio. O filho chamava-se Dirceu, em quem o velho depositou suas esperanças para sucedê-lo nos negócios, mas Dirceu era avesso aos compromissos, nem havia concluído os estudos. Boêmio, trocava o dia pela noitee mantinha relações com pessoas de péssima reputação, com quem adquiriu hábitos condenáveis, que requeriam dispêndio.

A caminho da alcova que ficava no final do corredor, acheguei-me ao meu pai e segurei-lhe a mão. Sentia medo. Ao adentrarmos, reparei logo na cabeleira repleta de fios brancos do paciente. O velho olhou-nos de esguelha, mas não esboçou nenhuma atitude. Permaneceu inerte e mudo como se a nossa presença lhe fosse indiferente. Nunca imaginei deparar-me com um ser a quem eram atribuídas prerrogativas de autoridade e o privilégio da fartura, prostrado em cima de uma cama, raquítico, escorado com almofadas, lacrado num ambiente sonolento onde predominava o cheiro dos remédios.

O silêncio foi quebrado por uma de suas filhas, a Dalva, que se apressou em nos anunciar:

– Temos visita, papai. Seu amigo Manuel e família estão aqui.

As filhas ajudaram-no a descer do leito, o que lhe exigiu um grande esforço, para acomodá-lo numa cadeira de rodas. A realidade dos sofrimentos que lhe tirava o apetite encarregava-se de desvanecer qualquer esperança de cura. O velho resvalou os olhos vagarosamente pelo quarto para fixá-los em mim, como se estivesse contemplando o frescor da minha verde infância:

– Quantos anos você tem?

A indagação latejou minhas têmporas, não pela pergunta em si, mas pela surpresa, que me pegou de assalto. Um leve calafrio percorreu-me o corpo, e minha mãe, vendo-me em apuros, respondeu por mim:

– Tem oito anos, Seu Odílio. Um rapaz.

Ignorou o que minha mãe lhe respondeu e disse-me com sua voz catarrenta:
– Daria tudo o que possuo a você, menino, em troca de um dos seus pulmões. Você aceitaria fazer o negócio? Olhando-o nos olhos, mas sem pronunciar uma única palavra, externei uma negativa balançando a cabeça. E ele, esboçando um sorriso preguiçoso, concluiu:

– Não leve a sério minha proposta… É compreensível que a inocência despreze o dinheiro.

A campainha tocou lá fora e alguém saiu para atender. Era o Dirceu, acompanhado da irmã casada, a Lídia, e o esposo, Marcos Sá, um cearense radicado em Alagoas, servidor da fazenda pública federal. Entraram na alcova dando boa tarde e o casal dirigiu-se ao velho para lhe pedir a bênção. Dirceu manteve-se distante e¬ deixava transparecer que algo o preocupava, pois não conseguia ficar quieto num canto. Andava em círculos, as mãos cruzadas às costas e alheio ao que se passava ao seu redor. Perdeu a paciência e saiu para o jardim, onde foi fumar.

Alegando um mal-estar provocado por uma constipação, Seu Odílio pediu que o reconduzissem à cama, antecipando-se em pedir desculpas e justificando que, por recomendação médica, era-lhe imprescindível desonerar-se dos gases que lhe alfinetavam o intestino. E assim o fez por meio de desabridas e sonoras flatulências. Não contive a riso, o que me valeu uma breve reprimenda acompanhada de um cocorote aplicado por meu pai.

Quando todos se encontravam no quarto, o velho sugeriu a permanência do meu pai na reunião, cuja pauta ignorava-se, para que servisse como testemunha. Aqui se faz necessário esclarecer o leitor que a consideração existente entre eles remontava à época em que trabalharam juntos. Na qualidade de contador respondeu, durante muitos anos, pela escrituração mercantil das empresas do ancião. Embora não houvesse mais entre ambos nenhuma relação de cunho profissional, a amizade permaneceu sadia e inabalável.

Recostado na cabeceira da cama, onde se acomodou, enfim o velho principiou a falar sobre o motivo da convocação. Incisivo, disse ter receio de que depois de sua morte seus filhos dilapidassem o patrimônio, e que para ele isso era motivo de angustiosas preocupações. Sem tecer maiores comentários, admitiu já ter providenciado seu ato de última vontade, por meio do qual deixou traçadas diretrizes sobre assuntos pouco importantes, como despesas relativas ao seu funeral, esmolas e doações de pequena monta. Com relação ao destino que daria aos bens de substancial valor econômico… Bem, quanto a isso tergiversou, mas confessou haver adrede concebido um plano que iria surpreender a todos.

– A vida é cheia de surpresas, não é mesmo? Às vezes inimagináveis…

Depois de fazer uma breve pausa, prosseguiu corrosivo:

– Todos sabem que depois da morte de uma pessoa que possui bens, abre-se a sucessão com o objetivo de que sejam transmitidas as propriedades do falecido aos seus herdeiros. Em outras palavras, a herança. Mas como toda regra tem exceção… No meu caso, por exemplo, eu lhes garanto: abrir-se-ia a sucessão. Sim, porque quem imaginou poder tomar posse do que é meu, enganou-se. O destino que darei ao meu patrimônio independe da vontade da lei. Dizia isso numa obstinação perversa, como a querer embaraçar o espírito dos filhos. E, implacável, continuou:

– Você, Dirceu, diz que eu sou rancoroso. A verdade é que não existe entre nós nenhum sentimento de união, tampouco reciprocidade de interesses. O que lhe convém é a minha morte, por razões óbvias. E a mim, deserdá-lo da herança, assim como suas irmãs, embora, como já disse, não tenha tomado nenhuma providência legal nesse sentido, que seria por meio de um testamento. Farei pior… O fato é que se você tivesse juízo estaria à frente dos negócios e assumiria o comando. Mas é um depravado!

– E suas filhas, perguntou-lhe Dirceu, o que têm com isso? São elas, por acaso, perdulárias? – Não, não são, até porque não têm um pau para bater num gato. E por acaso você acha que eu acredito na sinceridade dos seus sentimentos? Ora, onde se já viu afeto em abraço de tamanduá? Pensam que me enganam lamentando minha morte. No fundo, fazem figa para que ela aconteça. As lágrimas dos herdeiros se fazem risos sob a máscara, já dizia o filósofo.

– O senhor está sendo injusto com elas, disse-lhe o filho.

– Pode ser, mas quem foi justo comigo? – retrucou o velho. Fiquei rico, é verdade, mas perdi meus pais e irmãos logo cedo, levados pela varíola. Minha mulher, coitada, de quem vocês nem se lembram, foi fulminada pelo tétano. Restaram-me os filhos, que me velam com um olho, e com o outro cobiçam minha riqueza. Ultimamente tenho ouvido vocês à porta do quarto, zumbindo segredinhos. Certamente fazendo prognósticos pessimistas sobre o tempo de vida que me resta. Já devem até ter ajustado o quinhão que caberá a cada um na partilha daquilo que não lhes custou um dia de esforço. Moscas é o que vocês são!

Apesar da consideração que lhes era dispensada naquele meio, meus pais permaneceram à margem dos acontecimentos. Receavam intrometer-se numa contenda que não lhes dizia respeito, sem correr o risco de envolverem-se em remoques indesejáveis. Foi então que uma das filhas resolveu interceder, na vã tentativa de apaziguar os ânimos:

– Pai, sua missão na terra já foi cumprida. Arrependa-se dos pecados cometidos e garanta a sua salvação.

–Não, minha missão não terminou, ainda estou vivo, vivo! E batia na testa exangue com a mão descarnada e trêmula. Arrepender-me…! De quê? De ter trabalhado oitenta anos e construído um império? Aponte-me, então, um homem que tenha se arrependido de ter ficado rico! Todos se entreolhavam em silêncio e não escondiam a perplexidade que lhes causava aquela conversa despropositada. Afinal, aonde ele queria chegar? Refeito de uma crise de tosse que se apossou do seu peito oco, prosseguiu:

-Conheci alguns calhordas que foram contemplados pela sorte. Herdaram fortunas incalculáveis. Mas queimaram tudo. Adulados no passado pelo padrão que exibiam, hoje imploram crédito na padaria. Alguém aqui tem conhecimento de estupidez semelhante?

– Eu, disse-lhe Dirceu, conheço um que faz pior.

– Quem? – perguntou-lhe o pai, demonstrando irritação.

– O senhor, que trabalhou feito uma mula e…

– Entendi… Entendi… Está me dizendo que fui um idiota por ter matado a fome engolindo cinzas para que você pudesse viver, depois da minha morte, na opulência, acendendo charutos cubanos com notas graúdas, acompanhado de mulheres conquistadas a peso de ouro. Pois saiba que não abrirei meu cofre, ao qual você nunca terá ingresso, para bancar esse tipo de bandalheira. Recuso-me a regar com meu sangue libações dionisíacas, alimentando a sede de morcegos da sua espécie. E por falar em cofre, quero preveni-lo de que ordenei jogá-lo em mar aberto. Agora é botija. Dele só restou esta peça que levarei comigo para o outro mundo.

Retirou do bolso do pijama listrado a chave, que não perdia de vista. Levantou-a na altura do rosto, contemplando-a, e ao cabo de instantes engoliu-a como se faz com as espadas no picadeiro do circo. Guardou para sempre nas entranhas, como um fiel depositário, a senha que sua insana consciência imaginou ser o único meio de negar o acesso dos herdeiros aos seus castelos edificados sob a areia fina, que escorreu durante noventa anos através da ampulheta que mediu sua vida.

Foi uma correria dos diabos. Ouviam-se vozes inarticuladas a pedir socorro. As filhas, tomadas pelo desespero, aplicaram-lhe tapas às costas, e uma delas enfiou-lhe os dedos na boca, de onde escorria saliva, para extrair-lhe o objeto que lhe entalava a garganta. O filho intercedeu fazendo uso da força e, contando com a ajuda do meu pai e do cunhado, agarrou o velho pelo tronco e o virou de cabeça para baixo, sacolejando-o repetidas vezes como se faz com uma garrafa de onde se quer expulsar uma rolha. Inútil. Devolveram¬-no, então, ao leito. O moribundo, com os cabelos em desalinho, revirava os olhos, agitava os membros, debatendo-se até que suas forças esmoreceram definitivamente. A vida o havia abandonado.

Creio ter sido o único que não se dispôs a ajudar. Mesmo que o quisesse, não saberia como nem a quem oferecer os meus préstimos. Em meio ao ruge-ruge, postei-me no fundo do quarto temendo ser atropelado por quem entrava e saía em busca de uma solução urgente que o caso exigia. O padre da família havia chegado para o jantar, e a desgraça o pegou de surpresa. Entrou no quarto acompanhado por uma das filhas, aproximou-se do velho e constatou o que já lhe haviam dito lá fora. Restou ao sacerdote encomendar o corpo que estava a jazer, inanimado, pálido como um boneco de cera.

Eis a saga de um homem, cuja trajetória teve início recolhendo sucatas para fazer dinheiro, e no final da vida, dominado pela demência senil, “tragou o patrimônio”, numa demonstração absurda de que levava consigo para o túmulo seus bens, assim como o faria um faraó do antigo Egito.

Adelmo Marques Luz é advogado e escritor

A MUSA DO TARADO

5 de julho de 2021 5:47 por Adelmo Marques Luz

 

Lúcia, nos seus incompletos dezesseis anos, possuía uma engenhosa beleza que acabara de desabrochar, saudável e viçosa como uma flor matinal. Cabelos escuros e em queda livre feito as cascatas; olhos de jabuticaba e a pele morena lembrando as rolinhas caldo de feijão. Seu busto era generoso e os lábios carnudos mostravam, ao menor sorriso, uma fileira de dentes alvos como coco. Esbelta igual às garças e dona de um aformoseado corpo de dançarina, Lúcia exibia leveza no andar e harmonia nos movimentos. Suas salientes nádegas rebolavam como uma inquietante maré, despertando atenção à primeira vista. Cabocla oriunda do sertão, de onde veio para a capital ainda criança concluir os estudos, logo os galanteadores do bairro a batizaram como “Miss Lúcia”.

Desconhecendo o apelido que lhe fora atribuído, sequer desconfiava das taras verbais dos rapazes, em descontraídas rodinhas de bate-papos na praça. Nessas ocasiões, a beldade era predileção nos apimentados comentários: – “Continua linda! Os peitinhos duros que nem bico de canoa. Ai, se ela quisesse fazer amor comigo…! Começava a beijá-la pelo pé da cama…!”

Não havia limite na imaginação daquela turma de frajolas que enxergavam em Lúcia a razão das suas mais variadas fantasias, muitas vezes extravasadas no banheiro, em mágicos e solitários enleios.
Audaciosa no uso de roupas curtas, a rapariga endoidava até mesmo os mais contidos. Impossível não reparar nos seus atributos; irresistível não desejar seus predicados.

II

Um desses rapazes, morador das cercanias, conhecido pela alcunha de Fábio Tara, debruçava-se regularmente no postigo de casa para esperar a passagem da admirável transeunte. Era itinerário obrigatório de Lúcia rumo ao colégio cruzar a porta de Fábio que, em vigília, espreitava a caça feito um gavião faminto. “Batia o ponto” todos os dias: – “Admirar o que é belo não é pecado”, justificava-se.

Certo dia, “Miss Lúcia” apontou na esquina trajando, como ordinariamente, o uniforme colegial, a juba molhada e ao vento, exalando um cheiro de asseio recente. Há algum tempo que Fábio planejara a realização de uma audaciosa aventura e aquele fora o dia escolhido. Quando Lúcia cruzou a calçada, Fábio provocou uma conversa aparentemente casta, mas, no íntimo, cheia de falsas amabilidades, a fim de ganhar o tempo necessário para executar o seu intento pecaminoso e carregado de descaradas consolações. Vencido pelos impulsos de seu temperamento degenerado e guiado pelo espírito de um impostor atrevido, Fábio não admitia impor à sua carne rebelde nenhuma expiação. Fez uso da retórica como parte da estratégia. Impossibilitada de perceber os movimentos de Fábio, que se protegia por trás do para-peito da janela, deixando apenas o tronco desnudo, Lúcia demorou-se por alguns minutos à mercê dos desígnios daquele lobo travestido de cordeiro, que já havia aberto a braguilha. Do seu posto de observação privilegiado, ao tempo que devorava Lúcia com os olhos sequiosos e vermelhos, denunciando a “lombra”, prosseguia numa rítmica bolinação no pênis viril e latejante.

Fitando a garota como uma serpente que magnetiza a caça, vítima do bote iminente, perguntou:

– Aonde você vai, Lucinha?

– Ôxe, Fábio, não vê que estou indo ao colégio?

Para mantê-la servil e à disposição dos seus caprichos, continuou procrastinando com patéticas indagações: – “Vai estudar, é?”

Demonstrando impaciência e falta de interesse na conversa fiada, Lúcia foi breve, dizendo-lhe que estava atrasadíssima para a prova de matemática e que capengava na matéria. Aproximava-se o término do ano letivo, férias à vista, mas para livrar-se do desconforto de uma “segunda época”, Lúcia admitiu necessitar de nota sete na disciplina.

III

A luz do sol era plena àquela hora e o calor contribuía para excitar o onanista: – “Ma-te-má-ti-ca é?… Sete?… Ma-te-má-ti-ca?…”

Apegou-se a essas palavras como um retardado, realçando-lhes a entonação das sílabas, à medida que se aproximava do orgasmo: – “Ma-te-má-ti-ca é?… Ma-te-má-ti-ca?…” E acelerou como um dínamo os movimentos do braço rumo ao prazer, sacudido por uma ondulação lasciva que fazia palpitar seu corpo suando em bicas.

Dominado pela volúpia, quebrou o sigilo num espasmo gutural de boi zebu, confessando com estardalhaço a industriosa safadeza: – “Tô gozando! Tô gozando!” E revirando os olhos, amparando-se para não cair, sujou com seu sêmen o canto da parede onde costumava deixar o vestígio da reiterada prática, cometida contra outras vítimas. Ostentava desavergonhado a imundície como troféu aos amigos que duvidassem do atrevimento.

Só depois do fato consumado Lúcia percebeu, indignada, a artimanha. Pálida e impulsionada pelo susto, fugiu lépida como uma lebre do predador de faces afogueadas que, após saciar a luxúria, sossegou como uma fera que mata a fome na abundância de um banquete. À noite, numa expansibilidade cínica e folgazã, foi à praça arrotar para a patota o resultado da impudicícia, narrando repetidas vezes e com riqueza de detalhes, o acontecido: “A princesinha ficou imóvel na minha frente, cantando na mão feito curió manso. E eu mandei bronca na “rua da palma número cinco”. Foi um bronha que me fez jorrar um xícara de gala!”

 

 

UM CRAQUE QUE NÃO DRIBLOU O DESTINO

23 de junho de 2021 11:37 por Adelmo Marques Luz

Recebi, consternado, a triste notícia do falecimento do meu amigo Joseval Pereira Fragoso, o Vavá, que há tempos vinha se debatendo com uma devastadora enfermidade. Causou-me, a trágica ocorrência, um sentimento de profundo pesar. A morte, essa indesejada das gentes, arrebatou, sem a menor satisfação nem ressentimento, um amigo de infância, cortês, possuidor de um excelente estado de humor e de uma forma de expressar-se povoada de ditos espirituosos que nos divertiam bastante. Lembro-me dele, ainda no limiar da adolescência, em casa do Tião e do Lelo, representando num palco improvisado cenas burlescas de teatro amador para uma plateia atenciosa, sentada em tamboretes enfileirados, seus amigos e espectadores da mesma faixa etária.

Em campo, na prática do futebol, foi um indiscutível craque. Quem de nós não foi vítima das suas peripécias futebolísticas? Apareça um que não tenha sido batido por seus dribles imprevisíveis e desconcertantes… Sobretudo aqueles que se atreviam a marcá-lo. Tarefa impossível sobrepor-se ao talento nato e de improviso. Grande Vavá!

Sua natureza humana era admirável. Lamento que tenha nos deixado tão cedo. Mas seria mesquinho e egoísta de minha parte desejá-lo semivivo e em condições cruéis de permanência, num imerecido desassossego, vegetando, sem consciência de si mesmo nem do ambiente circundante. Doeu-me vê-lo partir sem nos despedirmos, mas pretender postergar sua existência insalubre, irregular, sob o estímulo de aparelhos invasivos e de medicamentos de efeitos duvidosos, seria o mesmo que submetê-lo ao padecimento físico duradouro e às aflições psicológicas intermináveis. Bastaram as expiações que o destino lhe reservou, dentre elas, a fratura irreparável no tornozelo que o obrigou abandonar involuntária e precocemente o esporte que tanto amava.

Servidor público dedicado, vinculado a uma área sensível, à qual se dedicou zelosamente, durante décadas, até se aposentar, aos menores infratores. Refiro-me à antiga Fundação Estadual do Bem-Estar do Menor/ FEBEM, onde deu sua valiosa contribuição social.

Saiba, amigo, que o amo naturalmente. E fiel a esse sentimento, sou levado a sobrepujar meu egoísmo idiota, desprezar meus interesses mesquinhos de querer vê-lo vivo em condições tão desfavoráveis. Vá em paz. Nada me deves. Eu é que estou em débito com você. E o pior é que tal obrigação não possui natureza pecuniária, mas moral, afetiva, que são bens considerados intransmissíveis e impagáveis. Perdoe-me, Vavá, por não lhe ter dado o que deveria, nem lhe ter feito o que merecias enquanto estavas vivo. Como sanção às minhas faltas condenáveis, serei eternamente o fiador de minha própria inadimplência. Carregarei, resignado, o peso de minha culpa tardia e o mal-estar que me fustiga a consciência devido às minhas ausências e omissões. Perdoar-me-ás? Talvez. Mas tenho certeza de que me recepcionarás quando ocorrer o meu inevitável transpassepara a dimensão em que você agora se encontra. Teremos, então, juntamente com outros amigos comuns que já se encontram por aí, a eternidade à nossa disposição. Esbanjá-la-emos sem critérios nem emergências. Confesso que “serei feliz e sábio terei sido se a morte, quando me arrebatar, não me puder tirar senão a vida”. Dou-lhe um abraço transitório de despedida, mas demasiadamente extenso, até onde as águas e o céu se irmanam, afetuosamente, no infinito.  Até à vista, Vavá!