terça-feira 19 de março de 2024

MARCO TEMPORAL: a ameaça continua

15 de outubro de 2023 3:23 por Fátima de Sá

RELEMBRANDO…

No mês passado, o STF encerrou a votação sobre o Marco Temporal, dando um freio naqueles que pretendiam continuar surrupiando terras dos povos indígenas.

Houve até ministro que defendeu o que chamou de “o direito de conquista”, retornando à Idade Média, quando até a igreja católica, arvorando-se de dona das terras, autorizava as invasões.

Após longos engavetamentos e discussões, no dia 27/09/2023, ficou decidida, pelo placar de 9×2, a anulação da indecente e inconstitucional proposta.

A APIB comemorou: “O resultado do julgamento selou uma importante vitória na luta por direitos dos povos indígenas, travada nas ruas, nos territórios, nas redes e no judiciário durante dois anos”.

 

 NA ONU

Conforme publicação no site da APIB (ONU comemora decisão do STF sobre marco temporal, mas alerta para projetos de lei no Congresso | APIB (apiboficial.org)):

“No dia 26 de setembro, o Alto Comissariado da ONU para Direitos Humanos elogiou o Supremo Tribunal Federal (STF) que, no dia 21 de setembro, formou maioria para anular a tese do marco temporal. No entanto, a ONU expressou preocupação de que a proteção oferecida pelo sistema judiciário não seja suficiente. Eles manifestaram apreensão quanto à possibilidade de que projetos de lei em tramitação no Congresso Nacional – como o PL 2903 – possam violar os direitos das populações indígenas”.

 

A FLEXADA DO SENADO FEDERAL

Pois tinha razão o Alto Comissariado da ONU. Não demoraram o ataque. Assim aconteceu no  dia seguinte (27/09/2023): o Senado Federal, que deveria estar ao lado da maioria e dos oprimidos há séculos, disparou as flexas contra os povos indígenas, e, afrontando a decisão do STF, atendeu aos interesses do agronegócio, aprovando o PL 2903.

VETA TUDO, LULA

Portanto, a luta tem que continuar! E agora, a reivindicação é: #VETATUDOLULA.

Mas, por que?

Ninguém melhor do que representantes dos povos indígenas, que vêm acompanhando as investidas desde o início e têm a assessoria jurídica para auxiliá-los – a ARTICULAÇÃO DOS POVOS INDÍGENAS DO BRASIL (APIB).

A Apib alerta que (VETA TUDO: Apib cobra compromisso de Lula para barrar PL do Marco Temporal | APIB (apiboficial.org), além do Marco Temporal, o PL 2903 pretende legalizar crimes cometidos contra os povos indígenas e por isso é considerado o PL do Genocídio, que só atende aos interesses políticos e econômicos do Agronegócio.

 

O PL 2903 – A RAPINA CONTINUA

Assim, a articulação aponta outras sete propostas do PL que representam crimes contra os povos indígenas e precisam ser vetados pelo Presidente Lula:

1) o PL 2903 quer definir critérios racistas de quem é ou não indígena;
2) quer autorizar a construção de rodovias, hidrelétricas e outras obras em Terras Indígenas, sem consulta prévia, livre e informada;
3) o PL quer permitir a plantação de soja, criação de gado, promoção de garimpo e mineração em Terras Indígenas;
4) propõe que qualquer pessoa questione os processos de demarcação dos territórios, inclusive os já demarcados;
5) busca reconhecer a legitimidade da posse de terra de invasores de Terras Indígenas;
6) quer flexibilizar a política de não-contato com povos indígenas em isolamento voluntário;

7) quer mudar conceitos constitucionais da política indigenista como: a tradicionalidade da ocupação, o direito originário e o usufruto exclusivo dos povos indígenas aos seus territórios.

 

EM CONCLUSÃO:

Sabemos que, mesmo havendo o veto do Presidente da República, o Congresso pode derrubar o veto (o que não é difícil, tendo em vista a composição da maioria nas duas Casas). E a luta deve retornar novamente para o STF, que mais uma vez precisa mostrar a inconstitucionalidade do pleito. Por isso mesmo, os usurpadores querem limitar os poderes do STF, alterando a Constituição Federal.

Enquanto aguardamos, temos que continuar atento(a)s e em luta constante. É urgente o envolvimento na luta. No seu livro – A vida não é útil – Ailton KRENAK  nos diz: Isso que as ciências política e econômica chamam de capitalismo teve metástase, ocupou o planeta inteiro e se infiltrou na vida de maneira incontrolável.

Por fim, recomendo a leitura e divulgação do mais recente livro de Ailton KRENAK, Futuro Ancestral (Futuro ancestral – Ailton Krenak – Grupo Companhia das Letras), onde tem esta sábia afirmação:

Os rios, esses seres que sempre habitaram os mundos em diferentes formas, são quem me sugerem que, se há futuro a ser cogitado, esse futuro é ancestral, porque já estava aqui.

“NOSSA HISTÓRIA NÃO COMEÇA EM 1988”

30 de agosto de 2023 2:46 por Fátima de Sá

Capa da Cartilha

O que é o marco Temporal:

É uma ideia (“tese política”?) que defende um absurdo: “os povos indígenas só teriam direito à demarcação das terras se estivessem em sua posse no dia 5 de outubro de 1988, data da promulgação da Constituição Federal”.

Portanto, estão a ignorar as comunidades indígenas que foram expulsas de suas terras durante a ditadura militar. Serão injustiçadas mais uma vez? E as comunidades que precisaram fugir das terras onde nasceram seus antepassados para sobreviverem aos massacres constantes dos que passaram a se dizer “donos” das terras?

Assim, diante de tanto desrespeito aos direitos humanos, principalmente aos direitos dos povos originários, Marcos Sabaru reflete: “Parece que quem chegou aqui nas caravelas foram os indígenas!”

 

Eles invadem, se apossam e marcam território:

Só para refrescar a memória: nenhum europeu “descobriu” nossas terras. Pois, o que eles passaram a chamar de Brasil, já estava habitado pelos povos que eles passaram a denominar de índios. Esses já tinham a posse e cuidavam do território, que era a sua casa. E continuam tendo que lutar para poderem ter seus direitos respeitados.

Palavras de um descendente destes povos, relembram:

Desde os tempos coloniais, a questão do que fazer com a parte da população que sobreviveu aos trágicos primeiros encontros entre os dominadores europeus e os povos que viviam onde hoje chamamos, de maneira muito reduzida, de terras indígenas, levou a uma relação muito equivocada entre o estado e essas comunidades (KRENAK, Ailton. Ideias para adiar o fim do mundo. Companhia das Letras, 2020. p. 38-39).

 

Vamos ver na Constituição Federal de 1988:

De acordo com o Art. 231, §1º da Constituição Federal: “São terras tradicionalmente ocupadas pelos índios as por eles habitadas em caráter permanente, as utilizadas para suas atividades produtivas, as imprescindíveis à preservação dos recursos ambientais necessários a seu bem-estar e as necessárias a sua reprodução física e cultural, segundo seus usos, costumes e tradições”.

 

E no Judiciário?:

Contudo, a discussão surgiu em 2009, “no âmbito do Judiciário, […], no julgamento do caso Raposa Serra do Sol”. Na ocasião, foram impostos 19 condicionantes, que receberam o nome de “salvaguardas institucionais”.

A imposição de tais condicionantes levou a novos ataques para serem tomadas terras indígenas (TIs). Assim é que, valendo-se desses condicionantes, nos anos seguintes, foram anuladas demarcações de TIs, culminando em expulsão de diversas comunidades indígenas.

Por causa disso, comunidades, organizações e o Ministério Público Federal se mobilizaram e, mais uma vez, recorreram ao STF até que, em 2013, ficou esclarecido que aquelas “condicionantes” diziam respeito àquela terra específica (Raposa Serra do Sol). Ou seja, “não vincula juízes e tribunais quando do exame de outros processos relativos a terras indígenas diversas… “

Mesmo assim, o argumento continuou, matreiramente, “sendo utilizado por parlamentares e juristas que advogam para os interesses do agronegócio e do capital” (Cartilha… p.7).

E, como os golpistas estão sempre tramando, em 2017, sob a proteção do golpista Temer – que se apoderou (sem votos)  do cargo de Presidente da República – foi publicado o Parecer no 01/2017/GAB/CGU/AGU, o qual obrigava a Administração Pública Federal a aplicar aquelas 19 condicionantes.

Portanto, o golpe nos povos indígenas continuou o que vem sendo feito desde quando os colonizadores aqui chegaram. Aproveitaram para institucionalizar a tese do Marco Temporal. Dessa forma, a Funai passou a reanalisar vários procedimentos de demarcação de TIs, assim como foram devolvidos, para a Funai reanalisar, processos que já se encontravam em estágios avançados, na Casa Civil e no Ministério da Justiça.

 

O que o STF volta a julgar hoje (30/08/2023)?

O Recurso Extraordinário com Repercussão Geral[i] (RE-RG 1.017.365), que se encontra na agenda do STF, é um pedido de reintegração de posse movido pelo Instituto do Meio Ambiente de Santa Catarina contra a Funai e indígenas do povo Xokleng, “envolvendo uma área reivindicada da TI Ibirama-Laklanõ. O território em disputa foi reduzido ao longo do século XX e os indígenas nunca deixaram de reivindicá-lo”.

Além disso, a área já foi identificada pelos estudos antropológicos da Funai e declarada pelo Ministério da Justiça como parte da sua terra tradicional” (Cartilha… p. 9).

 

Em suma …

Finalizo com mais uma reflexão de Marcos Sabaru, que elaborou o texto da Cartilha sobre o julgamento decisivo para o futuro dos povos indígenas do Brasil e o enfrentamento da crise climática [Você pode acessar o link: Marco Temporal | APIB (apiboficial.org) e baixar a Cartilha, que explica a questão em detalhes, além de fornecer links para matérias que esclarecem ainda mais o tema)]:

“O marco temporal é isso, ele é temporal mesmo, essa máquina volta no tempo, reverte o tempo, troca as pessoas de tempo diferente, apaga a memória e muda a história”.

E nós?

Vamos deixar acontecer mais essa injustiça?

Vamos ser cúmplices da continuidade da matança dos povos originários?

 

PS.: Em breve, voltaremos para falar sobre a outra linha de ataque aos povos originários, no Congresso Nacional: PL-490/2007, PL-2903 (agora, no Senado Federal), PL- 191/2020 e PL-510/2021 (propõem a saída do Brasil da Convenção 169 da OIT), PL- 2159/2021 (auto licenciamento, ou: as raposas falando sobre os galinheiros)… Como veem: Os “patriotas” não dão trégua há mais de 500 anos!

[i] O Recurso Extraordinário com Repercussão Geral (RE-RG) é uma espécie de recurso que, uma vez reconhecida a sua repercussão geral pelo Supremo Tribunal Federal (STF), tem seus efeitos estendidos para todos os casos semelhantes que tramitam nas instâncias inferiores do Poder Judiciário. Em decisão publicada no dia 11 de abril de 2019, o plenário do STF reconheceu por unanimidade a repercussão geral do julgamento do RE 1.017.365.

LULA NA COP 27

19 de dezembro de 2022 4:41 por Fátima de Sá

COP 27

O Governo da República Árabe do Egito sediará, na cidade de Sharm El Sheikh, a 27ª sessão da Conferência das Partes da UNFCCC (COP 27), no período de 6 a 18/11/2022, com o objetivo de preparar o caminho para enfrentar efetivamente os desafios globais das mudanças climáticas futuras.

Lembrando que COP é a sigla para a Conferência das Partes – Conferência das Nações Unidas sobre Mudança do Clima, a conferência das partes da Convenção-Quadro das Nações Unidas sobre Mudança do Clima. Na COP 27, estarão reunidos chefes de Estado dos países signatários, ministros e negociadores, juntamente com ambientalistas, representantes da sociedade civil e CEOs neste que é o maior encontro anual sobre ação climática.

HISTÓRICO

Em 1988, o Programa das Nações Unidas sobre Meio Ambiente (PNUMA) e a Organização Meteorológica Mundial (OMM) criaram o Painel Intergovernamental para as Mudanças Climáticas (IPCC), que passou a ser a fonte para informações científicas relacionadas ao tema.

Como principal instrumento internacional no assunto, a Convenção-Quadro das Nações Unidas sobre Mudanças Climáticas (em inglês, United Nations Framework Convention on Climate Change ou UNFCCC) foi adotada em 1992, durante a Cúpula da Terra, no Rio de Janeiro.

O site exame.com apresentou um resumo histórico das 26 Conferências[i], que mostra os principais destaques ao longo dos anos.

FONTE: https://www.un.org/en/climatechange/cop27
PERDAS E DANOS

De acordo com o PortalG1[ii],

  1. Os delegados da COP 27 concordaram neste domingo em discutir se os países ricos devem compensar as nações mais pobres e mais vulneráveis ​​às mudanças climáticas na cúpula climática das Nações Unidas que começou na manhã do dia 06/11/2022.
  2. O tema que foi incluído na agenda oficial da cúpula é chamado pelos negociadores de “perdas e danos”, em referência aos estragos destrutivos da crise do clima que esses países não podem prevenir ou se adaptar com seus atuais recursos.

    As mudanças climáticas causam danos financeiros aos países, principalmente aos pobres. Para compensar, os países ricos industrializados (principais causadores dos danos) deverão proporcionar doações aos países em desenvolvimento, muitas vezes os mais afetados e que têm argumentado que deveriam receber compensação.

    A Dinamarca, por exemplo, ganhou manchetes durante a última semana da Assembleia Geral da ONU, depois de ser o primeiro país a anunciar que doará US$ 13 milhões aos países em desenvolvimento que sofreram danos devido às mudanças climáticas. Isso é o que se entende como “perdas e danos”.

E LULA NA COP 27?

Não por acaso, Luiz Inácio Lula da Silva, eleito presidente do Brasil no dia 30/10/2022, foi convidado para participar da COP 27. Em coluna publicada em 04/11 /2022, Jamil Chade[iii] relata que, numa coletiva de imprensa, perguntou ao secretário-executivo da Convenção da ONU sobre Mudanças Climáticas, Simon Stiell, o que espera do presidente eleito [LULA da SILVA], que já confirmou sua presença no evento.

A resposta, segundo Chade, foi: “Precisamos de vontade política e de liderança política”, ressaltando que esse é o pedido a todos os presidentes…

O QUE ESPERAM DE LULA

A reportagem do UOL apurou que, nas diversas reuniões já marcadas para Lula no Egito, negociadores farão dois pedidos: que o novo presidente tome ações concretas no Brasil para “dar exemplo” e que ele se apresente como mobilizador dos países emergentes na busca por acordos e novos compromissos.

O convite veio diretamente do presidente do Egito, presidente Abdel Fattah el-Sisi, assim que soube da vitória do candidato na última eleição[iv].

“O Lula foi convidado porque existe uma grande expectativa por parte de outros países, tanto países em desenvolvimento, quanto países ricos, de que ele irá recolocar o Brasil como o ator propositivo no cenário internacional, inclusive nas discussões sobre clima”, comenta a especialista em relações internacionais, Adriana Abdenur, também do UOL.

COMPROMISSOS

Na COP, Lula vai integrar a comitiva do governador do Pará, Helder Barbalho, em nome do Consórcio de Governadores da Amazônia Legal, e aproveitará o evento para reforçar ao mundo seu compromisso com a agenda ambiental.

Por sua vez, o deputado federal Nilto Tatto (PT-SP) ressaltou que a presença de Lula na COP significa a retomada da agenda ambiental do Brasil, retirada pelo atual [des]governo, que promoveu uma agenda antiambiental com o abandono de acordos do Clima, com incentivo à invasão de terras indígenas, ao garimpo ilegal e ao desmatamento.

O deputado ressaltou: “Com Lula e Dilma, o Brasil teve um papel de protagonismo muito forte, combatendo o desmatamento e cobrando a responsabilidade de outros países. Tínhamos um papel de liderança. Hoje, o mundo carece de lideranças mundiais que chamem a responsabilidade para atender as metas de redução de emissão de gases de efeito estufa no mundo.”

Em encontro, realizado no último dia 4 de outubro[v], com cientistas, pesquisadores e entidades do setor ambiental, Lula afirmou que, num eventual novo governo, respeitará as áreas de proteção ambiental, não admitirá garimpo em terra indígena e trabalhará para restabelecer o prestígio e o protagonismo internacional que o Brasil já teve no debate sobre meio ambiente.

CADA UM PODE FAZER ALGO …
Rahim, de quatro anos, nos escombros de sua casa destruída pelas inundações no Paquistão. Foto: © Asad Zaidi/UNICEF. FONTE: https://brasil.un.org/pt-br/205789-cop27-o-que-voce-precisa-saber-sobre-conferencia-do-clima-da-onu

 

Portanto, é chegada a hora e a vez de realizar o que afirmou o próprio Presidente LULA, “será preciso refazer o que já foi feito nos primeiros governos petistas, quando houve redução de desmatamento e aumento da proteção ao meio ambiente”.

E, para todos e todas que queiram colaborar, há sugestões de ações no site das Nações Unidas[vi] que podem ser postas em prática imediatamente, independente das resoluções que forem aprovadas.

“A humanidade tem uma escolha: cooperar ou perecer”, implora o secretário-geral pedindo um histórico Pacto de Solidariedade Climática entre economias desenvolvidas e em desenvolvimento para reduzir as emissões de carbono e acelerar a transição para energia renovável.

 

[i] COP27: o que é, quando acontece e qual a sua importância | Exame

[ii] COP 27 inicia colocando em pauta compensação climática para países mais pobres | Cop 27 | G1 (globo.com)

[iii] CHADE, Jamil. COP27: ONU pedirá liderança política de Lula em agenda climática no mundo – 04/11/2022 – UOL Notícias

[iv] Lula vai à COP27: O que é esse evento e qual importância dele? (uol.com.br)

[v] Lula sobre Meio Ambiente: Tudo o que desfizeram vamos ter que refazer | Partido dos Trabalhadores (pt.org.br)

[vi] COP 27: relatório lista 5 ações de apoio a vulneráveis à crise climática | As Nações Unidas no Brasil

“FUNDAÇÃO ANTI-INDÍGENA: um retrato da Funai sob o governo Bolsonaro”

25 de julho de 2022 4:48 por Fátima de Sá

Os Povos Originários e os colonizadores

Os Povos originários habitavam estas terras quando aqui chegaram os saqueadores e lhes deram o nome de “índios” e às suas terras, de “Brasil”.

Sobre os colonizadores, há claro relato de Vandana SHIVA[i] explicando como tudo começou:

“Em 17 de abril de 1492, os monarcas católicos Isabel de Castilha e Fernando de Aragão concederam a Cristóvão Colombo os privilégios de “descoberta e conquista”. Um ano depois, em 4 de maio de 1493, o Papa Alexandre VI, por meio de sua “Bula de Doação”, concedeu à rainha Isabel e ao rei Fernando todas as ilhas e territórios firmes “descobertos e por descobrir, cem léguas a oeste e ao sul dos Açores, em direção à Índia” e ainda não ocupadas ou controladas por qualquer rei ou príncipe cristão até o Natal de 1492 (p.23)”.

E Vandana Shiva foi precisa: “Cartas de privilégios e patentes transformaram, assim, atos de pirataria em vontade divina”. E foi além: “Os povos e nações colonizados não pertenciam ao papa, que, entretanto, os ‘doava’, e essa jurisprudência canônica fez dos monarcas cristãos da Europa os governantes de todas as nações, ‘onde quer que se encontrem e qualquer que seja o credo que adotem’”.

E eles continuam por aí, em todos os lugares, reclamando serem os donos das terras, das moradias, das águas, de tudo.

Foto: Mídia Ninja
São mais de 500 anos de opressão

Perguntado como os índios iam fazer diante do (des)governo que os ameaçava mesmo antes de assumir, Ailton KRENAK[ii] respondeu: “Tem quinhentos anos que os índios estão resistindo, eu estou preocupado é com os brancos, como que vão fazer para escapar dessa” (p. 31).

Ou seja, os povos indígenas brasileiros vêm sendo vilipendiados desde que foram “doados” pela Bula Papal há 529 anos.

Funai é contra os indígenas

Decidi escrever esse texto para divulgar um documento precioso (apesar do seu denso e revoltante conteúdo), que recebi hoje e que está disponível gratuitamente no site do INESC: FUNDAÇÃO ANTI-INDÍGENA: um retrato da Funai sob o governo Bolsonaro[iii].

Bruno Pereira, presente! Dom Phillips, presente! A publicação foi dedicada a eles, nomes que embelezam qualquer texto.

O livro é uma publicação da INA – Indigenistas Associados – e do INESC – Instituto de Estudos Socieconômicos, além de ter contado com o apoio de várias organizações. Há uma observação logo no início: “A redação deste texto contou com a contribuição de diversos servidores da Funai, que não puderam ser identificados por motivos de segurança”. Lê-se na Apresentação do documento: “INA e Inesc consideram que a Funai é um caso gritante da prática de destruição de políticas que foi acionada em nível federal no Brasil durante o ciclo governamental 2019- 2022”.

Como o próprio texto informa, a FUNAI (Fundação Nacional do Índio), que deveria cuidar e proteger os povos indígenas, segue o modus operandi de tantos outros órgãos do (des)governo. Não mentiu aquele que foi escolhido para presidente: as medidas tomadas e o não-cumprimento das leis aceleram a destruição das nações indígenas. Quem deveria protegê-las, apoia os que atacam os povos originários, como é o exemplo dos garimpeiros ilegais, dos madeireiros e de toda a corja que vem destruindo a floresta.

Foto: FundoBrasil.org
Fontes dos Dados

Conforme indicado na descrição da metodologia:

O documento foi elaborado com base na análise, sobretudo, de documentos oficiais da Funai e de outros órgãos públicos. De maneira complementar, recorreu-se a materiais de imprensa, publicações de organizações indígenas e da sociedade civil e depoimentos colhidos junto a servidores e ex-servidores da Fundação. A compilação dos documentos foi feita a partir de monitoramento realizado conjuntamente por INA e Inesc, entre 2019 e 2022.

Do que trata

O título de cada capítulo dá uma ideia perfeita do seu conteúdo. O resumo que destaco em cada um é da(o)s autora(e)s na Apresentação do documento. Então, vejamos:

Cap. 1 – Foiçada no pescoço – tem início com citação do presidente eleito em 2018, quando antecipou o destino da Funai. Trata “dos confusos meses iniciais de governo, marcados por uma tentativa de rearranjo institucional do indigenismo de Estado que não se concluiu, dando lugar a uma troca de presidente na Funai”.

Cap. 2 – A Nova Funai – “desenha o perfil geral da gestão presidencial do órgão, chamada Nova Funai: ambiente de trabalho, ocupação de cargos de chefia, relação com lideranças indígenas e estratégias de comunicação”.

Cap. 3 – Entraves à ação indigenista – trata de entraves de ordem burocrática e administrativa à chegada das ações indigenistas nas aldeias e terras indígenas (TIs).

Cap. 4 – Nem um centímetro de terras demarcadas – fala “das omissões que, em cumprimento a promessa eleitoral feita por Bolsonaro, vêm desconstruindo o direito indígena à terra e paralisando gravemente a execução da política demarcatória”.

Os/As autores/as sintetizam dessa forma os capítulos 5, 6 e 7 que: analisam normativas propostas pela Nova Funai e assuntos correlatos, sobretudo a facilitação do acesso de terceiros à posse e à exploração econômica das TIs. O despudor com que a atual gestão da Funai atua contra direitos garantidos aos indígenas no ordenamento jurídico brasileiro evidencia-se na análise detalhada dos sentidos e dos processos de elaboração dos atos em questão: Instrução Normativa/Funai no 09, de 2020 (capítulo 5), Resolução no 04 da Diretoria Colegiada da Funai, de 2021 (cap. 6), e Instrução Normativa Conjunta Funai/Ibama nº 01, de 2021 (cap. 7). A análise dessa última associa-se à de outras iniciativas, todas elas apontando para o interesse de abrir as TIs à exploração econômica.

Os referidos capítulos têm como títulos: Cap. 5 – Terras tiradas do mapa; Cap. 6 – Falsos Indígenas?; Cap. 7 – Exploração econômica

Cap. 8 – Injusta Funai – são abordadas “as maneiras como a chefia da Funai estende seu anti-indigenismo à esfera judicial”.

Cap. 9 – Critérios para não atuar – “reúne anotações sobre uma perceptível, ainda que oficialmente negada, resistência da direção do órgão a atuar em TIs que ainda não têm suas demarcações homologadas por decreto da presidência da República”.

Foto: Fonasefe
Conclusão…

Para refletir com os parentes originários, recorro a Ailton Krenak que, falando sobre a tal “humanidade”, alertou: “Destruir a floresta, o rio, destruir as paisagens, assim como ignorar a morte das pessoas, mostra que não há parâmetro de qualidade nenhuma na humanidade, que isso não passa de uma construção histórica não confirmada pela realidade”[iv].

Também, inspirado em sua própria história e no que escreveu Davi Kopenawa no livro A queda do céu: palavras de um xamã yanomami, Krenak ensinou: “Quando você sentir que o céu está ficando muito baixo, é só empurrá-lo e respirar”.

 

Mas, está cada vez mais difícil respirar nestes tempos tenebrosos.

[i] SHIVA, Vandana. Biopirataria: a pilhagem da natureza e do conhecimento. Petrópolis, RJ: Vozes, 2001.152 p.

[ii] KRENAK, Ailton. Ideias para adiar o fim do mundo. 2ed. São Paulo: Companhia das Letras, 2020.

[iii] Disponível em: Fundação Anti-indígena: um retrato da Funai sob o governo Bolsonaro – INESC. Acesso em: 18 jul. 2022.

[iv] KRENAK, Ailton. A vida não é útil. Pesquisa e organização Rita Carelli. São Paulo: Companhia das Letras, 2020.

DIA MUNDIAL DA ÁGUA – 2022

22 de março de 2022 8:56 por Fátima de Sá

PLANETA ÁGUA

Água que nasce na fonte
Serena do mundo
E que abre um
Profundo grotão

[…]
Águas escuras dos rios
Que levam
A fertilidade ao sertão

Águas que banham aldeias
E matam a sede da população…

[…]
Água que o sol evapora
Pro céu vai embora
Virar nuvens de algodão…

Gotas de água da chuva
Alegre arco-íris
Sobre a plantação

Gotas de água da chuva
Tão tristes, são lágrimas
Na inundação…

Águas que movem moinhos
São as mesmas águas
Que encharcam o chão

E sempre voltam humildes
Pro fundo da terra
Pro fundo da terra…

[…]

 

Em 1981, Guilherme Arantes, ainda um jovem cantor/compositor, cantou Planeta Água, letra e música de sua autoria[i] em um festival de música brasileira. Embora tenha sido classificada em 2º lugar (sob protestos do público), nunca deixou de ser cantada, fazendo sucesso até hoje e nos levando a reflexões.

Celebração e Reflexão

Nessa letra, é possível visualizar o ciclo da água e muitos de seus usos. Hoje é celebrado o Dia Mundial da Água, e cantar essa música nos faz refletir sobre esse recurso tão útil e cada vez mais tão maltratado. E torna-se escasso por irresponsabilidade e omissão.

Neste dia, a UNESCO (Organização das Nações Unidas para Educação, Ciência e Cultura) destaca a importância dos lençóis freáticos. O compositor nos faz recordar que essas águas superficiais sempre voltam humildes/ Pro fundo da terra/ Pro fundo da terra…

Faça um exercício sem sair do local onde você mora! Qual a condição de qualquer curso d’água que você pode enxergar perto de sua casa ou por onde você transita?

Águas subterrâneas

A ONU Brasil afirma que as águas subterrâneas representam 99% da água doce no planeta. No entanto, é um recurso negligenciado, mesmo sendo “a única fonte de água das pessoas” em alguns lugares do mundo. Também, alerta para a condição transfronteiriça das águas subterrâneas, e os impactos das mudanças climáticas sobre as águas em geral.

Contudo, precisamos reavivar a memória e lembrar de alguns pontos que afetam as águas desse planeta e que vêm sendo cada vez mais negligenciados: 1. Nas cidades, notadamente nas metrópoles, há a crescente exploração do lençol freático para o abastecimento de prédios cada vez mais altos; 2. O uso crescente de agrotóxicos, que aumenta com os grandes empreendimentos do agronegócio – o agrobusiness tão propagandeado como tech e pop – que contamina o ar, o solo e o lençol freático; 3. A falta de saneamento básico na grande maioria dos municípios, com destaque para as zonas periféricas das grandes cidades, incluindo-se aí a insuficiência no fornecimento de água potável, o lançamento de efluentes não tratados em cursos d’água, o tratamento inadequado dos resíduos sólidos e a falta de educação ambiental, entre outros.

Ética do Uso da Água 

Em 2002, a Unesco divulgou no Brasil, uma publicação resultante do trabalho da Subcomissão sobre Ética da Água Doce, presidida pelo Lord Selborne, da Comissão Mundial sobre a Ética do Conhecimento Científico e Tecnológico (COMEST[ii]).

Embora a referida publicação tenha 20 anos, suas reflexões continuam atuais e são úteis para subsidiar discussões sobre o tema. Ressalto alguns:

  1. “Os debates sobre a administração dos recursos hídricos refletem debates mais amplos sobre a ética social, relacionando-se com o que muitos consideram princípios éticos universais…”;
  2. … a falta de acesso à água de beber segura e ao saneamento básico relaciona-se diretamente com a pobreza e a saúde precária […], mais de cinco milhões de pessoas morrem anualmente com doenças causadas pela água de beber pouco segura e a falta de saneamento e de água para fins de higiene”;
  3. A cúpula Mundial sobre a Alimentação, em 1974, adotou como meta a erradicação da fome no mundo dentro de uma década (?!)…, e “garantiu a vontade política e o compromisso dos Estados para alcançar a segurança alimentar para todos – isto é, o acesso a uma alimentação segura, nutritiva e adequada”.
  4. A COMEST afirmou: “A segurança alimentar é um imperativo moral e as exigências da indústria e as necessidades da irrigação devem ser coordenadas de modo a garantir que os agricultores de subsistência tenham direito à água, inclusive ao pleno uso da precipitação e coleta de chuva, assim como de fontes adequadas à irrigação.”;
  5. Consideração especial deve ser dada ao papel exercido pelas mulheres que, nas numerosas vilas e comunidades de pequenas dimensões, são as principais administradoras da água disponível”. Entretanto, elas, “raramente estão envolvidas nos processos decisórios estratégicos relativos ao fornecimento da água”;
  6. “… a indústria tem a responsabilidade de economizar água, e utilizá-la com eficiência, para evitar o esgotamento de água contaminada, tendo em vista as necessidades dos que vivem a jusante, a conservação e restauração da natureza, a observação do Princípio do Pagamento pelo Poluidor e, talvez acima de tudo, as medidas de precaução que precisam ser tomadas para evitar possíveis tragédias”.
Em Conclusão

Esses são apenas alguns pontos que destaquei para nos darmos conta de que é necessário compromisso com seriedade na gestão das ÁGUAS. O que foi feito até agora desde aquele início do século 21?

Creio que a Carta da Ecopedagogia[iv] pode auxiliar nessa luta. Dali, destaco um dos itens: “A mudança do paradigma economicista é condição necessária para estabelecer um desenvolvimento com justiça e equidade. Para ser sustentável, o desenvolvimento precisa ser economicamente factível, ecologicamente apropriado, socialmente justo, includente, culturalmente equitativo, respeitoso e sem discriminação”.

 

[i] Ver https://www.youtube.com/watch?v=IHiR8TgtBts. Nesse vídeo, o cantor fala sobre a sua criação.

[ii] World Commission on the Ethics of Scientific Knowledge and Technology.

[iii] SELBORNE, Lord. A ética do uso da água doce: um levantamento. Brasília: UNESCO, 2002. 80p. [A publicação encontra-se disponível para download].

[iv] GADOTTI, Moacir. Pedagogia da Terra. 3 ed. São Paulo: Peirópolis, 2000. 217p. (p. 184).

A ÁGUA QUE ESTAMOS CONSUMINDO

22 de março de 2022 8:59 por Fátima de Sá

O que podemos encontrar?

No início do mês de março, uma publicação[i] nos revelava já em seu título, uma verdadeira tragédia a que estamos submetidos: Água da torneira foi contaminada com produtos químicos e radioativos em 763 cidades. E a matéria inicia com a seguinte informação:

“Todos nós bebemos pequenas doses diárias de substâncias químicas e radioativas. São agrotóxicos e outros resíduos da indústria que se misturam aos rios e represas. Alguns especialistas defendem que não há risco se elas estiverem dentro do limite regulamentado. Outros argumentam que as doses aceitas no Brasil são permissivas, pois são bem mais altas que as da União Europeia”.

O que é bom para o Brasil não é para a União Europeia

Sobre isso, já denunciamos em outra postagem de 16/11/2021[ii], quando falamos da assimetria entre os índices admitidos no Brasil e na União Europeia (UE). Por exemplo, dentre os 10 agrotóxicos mais vendidos no Brasil, três têm seus usos proibidos na UE. Outro exemplo estarrecedor é o caso de um pesticida organofosforado. Pois aqui é permitido 400 vezes mais resíduos dele na produção de feijão do que é permitido na UE.

Portanto, imaginemos as consequências do consumo diário do feijão nosso de cada dia e de outros alimentos. Eles podem fornecer não apenas nutrientes, mas também, como alerta a matéria: “o risco de câncer, mutações genéticas, problemas hormonais, nos rins, fígado e no sistema nervoso – a depender do produto”. E embora os alimentos estejam cada vez mais caros, a água é sempre consumida, nem que seja a que sai da torneira.

Os dados são apenas de 763 cidades. E as demais?

A matéria se refere à água que saiu da torneira de 763 cidades nos anos 2018, 2019 e 2020 – período em que foram coletados os dados. Substâncias químicas e radioativas foram encontradas acima do limite em 1 de cada 4 municípios que fizeram os testes. O detalhamento da metodologia pode ser encontrado na matéria do site Repórter Brasil. Adiantamos a informação de que os testes são feitos após o tratamento da água e a maioria dessas substâncias não pode ser removida por filtros ou por fervura da água.

Como seriam os resultados desses testes em cidades que sequer têm tratamento da água?

Algumas dessas substâncias têm efeito cumulativo e silencioso, e seus impactos podem ser detectados após muitos anos sendo acumulados no organismo, resultando em doenças graves. Portanto, explica um professor de toxicologia (Prof. Fábio Kummrow, da Universidade Federal de São Paulo) entrevistado pelas repórteres, “contaminada ou imprópria existe risco para quem bebe a água, e ele varia de acordo com a substância e com o número de vezes que ela foi consumida ao longo do tempo”.

Nosso futuro é cada vez mais roubado

No primeiro texto que postei neste blog sobre Agrotóxicos[iii], falei sobre um livro publicado no final do século XX. Trata-se de “Nosso futuro roubado” (Our stolen future), que mostra dados de pesquisas efetuadas em vários países e que trazem informações estarrecedoras sobre os efeitos dessas substâncias químicas em animais e, principalmente, em humanos. Apesar do tempo transcorrido desde a publicação (1997), vale a pena voltar a ler este livro, pois a situação só piorou. E, no Brasil, houve a aprovação de mais de 500 novos agrotóxicos[iv] somente no ano passado!

Entrevistado pelo site Brasil de Fato, o engenheiro agrônomo Leonardo Melgarejo, do Movimento Ciência Cidadã, alertou para o risco de contaminação mesmo para quem está longe das lavouras: “Veja os casos de deriva de agrotóxicos. O sujeito aplica o veneno na sua lavoura e, a 6 quilômetros de distância, tem gente sendo intoxicada. Outro exemplo é que usamos no Brasil um bilhão de litros (desses produtos) por ano e tudo isso vai parar na água. (…) Os estudos realizados sobre a qualidade da água no Brasil apontam que pelo menos 25% dos municípios analisados têm até 27 tipos de venenos na água.”

Substâncias cancerígenas

Por exemplo, os dados atuais mostraram que o nitrato, “usado na fabricação de fertilizantes, conservantes de alimentos, explosivos e medicamentos”, está colocado em terceiro lugar entre as substâncias que mais vezes excederam o limite considerado tolerável. Não é demais lembrar que essa é uma substância classificada como “provavelmente cancerígena” pela Organização Mundial de Saúde.

Por outro lado, as autoras da matéria sobre o mapa da água finalizam:

O Mapa da Água

 

 

No mapa fornecido pelo site Repórter Brasil (elaborado a partir dos dados do levantamento), é possível acessar os dados das cidades pesquisadas. E, as informações são testes feitos pelas empresas de abastecimento, que os enviaram ao banco de dados do Ministério da Saúde, o SISAGUA – Sistema de Informação de Vigilância da Qualidade da Água para Consumo Humano.

No entanto, não é possível sabermos a situação das cidades alagoanas. Ao buscar os dados para algumas cidades do Estado, por exemplo a Capital, depara-se com a seguinte informação: Maceió (AL) enviou dados inconsistentes ao Ministério da Saúde[v]. E, se a capital não forneceu dados consistentes, imaginemos as demais cidades do Estado. Cabe a todas/todos contribuintes fazerem a cobrança de seus direitos.

Commodities do egoísmo

Mais uma vez, utilizo reflexão de Melgarejo (acima citado): “O Brasil depende do envenenamento de seu território para gerar a renda dessas commodities que são exportadas”. “Ir contra o uso de agrotóxicos significa ir contra o domínio de grupos que não dão a mínima para os direitos humanos e para os problemas ambientais”.

Lutemos pois! É a nossa vida e o futuro das crianças de agora. Essas crianças que, como mostrei em artigo anterior, estão mamando veneno, literalmente.

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[i] Disponível em: https://reporterbrasil.org.br/2022/03/exclusivo-agua-da-torneira-foi-contaminada-com-produtos-quimicos-e-radioativos-em-763-cidades/. Acesso em: 20 mar. 2022.

[ii] https://082noticias.com/2021/10/08/agrotoxicos-e-impactos-ambientais/

[iii] Disponível em: https://082noticias.com/2021/08/09/20905/

[iv] Disponível em: https://www.brasildefato.com.br/2022/01/12/governo-bolsonaro-bate-proprio-recorde-e-libera-uso-de-550-novos-agrotoxicos-em-2021. Acesso em: 20 mar. 2022.

[v] Disponível em: https://mapadaagua.reporterbrasil.org.br/. Acesso em: 20 mar 2022.

 

COP26

16 de novembro de 2021 8:46 por Fátima de Sá

O que é?

COP é a sigla para a Conferência das Partes – a Conferência das Nações Unidas sobre Mudança do Clima, a conferência das partes da Convenção-Quadro das Nações Unidas sobre Mudança do Clima.

Anualmente, os países signatários, se reúnem na COP que, excepcionalmente, não ocorreu no ano passado (2020) por conta da pandemia da Covid-19. Assim, neste ano de 2021, ocorreu a COP26, em Glasgow (Escócia) da qual participaram 197 países signatários, no período de 1 a 12 de novembro de 2021.

Histórico

Em 1988, o Programa das Nações Unidas sobre Meio Ambiente (PNUMA) e a Organização Meteorológica Mundial (OMM) criaram o Painel Intergovernamental para as Mudanças Climáticas (IPCC), que passou a ser a fonte para informações científicas relacionadas ao tema.

Como principal instrumento internacional no assunto, a Convenção-Quadro das Nações Unidas sobre Mudanças Climáticas (em inglês, United Nations Framework Convention on Climate Change ou UNFCCC) foi adotado em 1992, durante a Cúpula da Terra, no Rio de Janeiro[i].

Em consequência, foi adotado, em 1997, o Protocolo de Kyoto, no qual se estabeleceram metas obrigatórias para 37 países industrializados e para a comunidade europeia, com vistas à redução das emissões de gases estufas.

Enquanto, em 2002, foi realizada em Johanesburgo (África do Sul), a Cúpula Mundial sobre Desenvolvimento Sustentável, onde se fez um balanço “das conquistas, desafios e novas questões surgidas desde a Cúpula da Terra”. O objetivo era “transformar metas, promessas e compromissos da Agenda 21 em ações concretas e tangíveis”. Assim, os Estados-Membros concordaram com a “Declaração de Johanesburgo sobre Desenvolvimento Sustentável e um Plano de Implementação” em que foram detalhadas as prioridades para a ação.

Base para as discussões em Glasgow?

Em 9 de agosto de 2021, foi liberado o mais novo relatório do Painel Intergovernamental de Mudanças Climáticas (IPCC)[ii], em que se mostra a influência de ações antrópicas no superaquecimento do planeta.

No relatório, constata-se que, entre 2011 e 2020, a média da temperatura global atingiu 1,09oC  acima dos níveis pré-industriais. Por isso, afirmou-se que “estamos vivendo a última janela de oportunidades para a tomada de ação em direção a uma mudança urgente e necessária para conter as mudanças climáticas”.

Na véspera da COP26, o Greenpeace afirmou: “A Conferência que se aproxima é de suma importância porque estamos na última década para juntar esforços e evitarmos que os impactos do aquecimento global sejam ainda mais perversos. Estamos falando sobre desastres naturais inimagináveis, eventos externos cada vez mais intensos e frequentes, elevação do nível do mar e perda irreparável da biodiversidade”.

Ao mesmo tempo, com base nos dados do relatório do IPCC, o Secretário Geral da ONU alertou[iii]: “Os alarmes de emergência estão soando, e a evidência é irrefutável… o aumento médio das temperaturas globais está ‘perigosamente próximo’ [teto estabelecido no Acordo de Paris = 1,5oC acima dos níveis pré-industriais].

Balanço Final da COP26

Segundo Fabiana Alves, coordenadora da campanha de Clima e Justiça do Greenpeace Brasil, o texto final de Glasgow reforça o compromisso dos países para a redução de emissões de gases do efeito estufa, mas não cumpre a meta de 1,5oC[iv]. Segue o balanço sobre o texto final da COP26, feito pelo Greenpeace:

  • Eliminação progressiva dos subsídios ao carvão e aos combustíveis fósseis;
  • Apelo para a redução de 45% das emissões globais até o final desta década para o cumprimento da meta da temperatura média do planeta abaixo de 1,5oC;
  • O texto traz alguns progressos para a adaptação climática: a) Os países desenvolvidos finalmente começam a responder aos apelos dos países em desenvolvimento por financiamento e recursos para lidar com o aumento das temperaturas; b) Reconhecimento de que os países em situação de vulnerabilidade estão sofrendo perdas e danos reais com a crise climática, mas o que foi prometido até agora ainda está longe das necessidades dos territórios.
  • “Apesar de alguns aparentes avanços, a Conferência impulsionou falsas soluções, como esquemas de compensação de carbono que acabaram ganhando espaço colocando em risco o meio ambiente, os povos tradicionais e a meta de 1,5oC.
  • O Brasil deixa a COP26 com a assinatura de dois acordos e o compromisso de revisão das metas de emissão.
As promessas brasileiras

Ainda de acordo com o Greenpeace, as promessas brasileiras foram:

  • Revisão das NDCs (Contribuições Nacionalmente Determinadas): tornar-se carbono neutro até 2050 e cortar em 50% as emissões até 2030. O governo promete atingir a meta por meio de compensações (não de corte das emissões), ou seja, “os grandes poluidores continuarão poluindo”, comprando créditos de carbono;
  • Redução em 30% da emissão de metano até o final da década (2030). O país precisará diminuir seu rebanho bovino, principal emissor desses gases (70% das emissões de metano);
  • Fim do desmatamento até 2030. Reconhece o Greenpeace que essa meta, na prática, dá “luz verde a mais uma década de destruição da floresta”.
Ativistas na COP26
Foto: Jeremy Sutton-HIbbert (Greenpeace)
Fiquemos de olho …

Por fim, acompanhemos para ver se as promessas serão cumpridas. No que diz respeito ao Brasil, para quem acompanha o modus operandi desse governo brasileiro, em que a mentira sempre está presente, concordo com a avaliação do Greenpeace, de que haverá avanços na desregulamentação e fragilização da legislação ambiental [“passando a boiada”] e a promoção de ameaças aos direitos dos povos e comunidades tradicionais.

[i] A ONU e o Meio Ambiente. Disponível em: https://brasil.un.org/pt-br/91223-onu-e-o-meio-ambiente. Acesso em: 16 nov. 2021.

[ii] AR6 Climate Change 2021: The Physical Science Basis. Disponível em:  https://www.ipcc.ch/report/ar6/wg1/#FullReport. Acesso em: 15 nov 2021.

[iii] Aquecimento global atinge níveis sem precedentes e dispara “alerta vermelho” para a humanidade. Disponível em:   https://brasil.un.org/pt-br/139401-aquecimento-global-atinge-niveis-sem-precedentes-e-dispara-alerta-vermelho-para-humanidade. Acesso em: 15 nov. 2021.

[iv] COP26 chega ao fim, mas ainda há muito a ser feito. Disponível em: https://www.greenpeace.org/brasil/blog/cop26-chega-ao-fim-mas-ainda-ha-muito-a-ser-feito/. Acesso em: 15 nov. 2021.

AGROTÓXICOS E IMPACTOS AMBIENTAIS

9 de outubro de 2021 12:03 por Fátima de Sá

Conference STOP EU-MERCOSUR

No texto anterior, postado neste blog, fiz um panorama geral sobre os impactos provocados pelo uso indiscriminado de agrotóxicos no agronegócio. E, agora, quero ressaltar informações importantes mostradas pela Professora LARISSA BOMBARDI, em uma palestra proferida numa conferência realizada em Bruxelas, pelo Parlamento Europeu, em 12 de dezembro de 2019. Parte deste texto tem como base um vídeo do Canal do jornalista Bob Fernandes[i] no YouTube.

A professora foi convidada para compor uma mesa-redonda durante a Conferência pelo Meio Ambiente, Agricultura e Trabalho – STOP UE-MERCOSUL (The Conference Environment, Farming and JobsSTOP EU-MERCOSUR), da qual participaram pesquisadores, membros de organizações sociais, e políticos de ambas as regiões, que discutiram o acordo comercial entre o Mercosul e a União Europeia (UE).

Destaco também, importante pronunciamento do membro do Parlamento Europeu, Helmut Scholz, que tanto confirma informações da Professora Bombardi, quanto faz importante alerta ligado ao Acordo UE-Mercosul, que destaco no final.

Quem é ela?

Larissa Bombardi, com pós-doutorado em Geografia Humana, é professora e pesquisadora do Departamento de Geografia da Universidade de São Paulo (USP), onde desenvolve estudos ligados a esse tema. Desse trabalho, em 2019, foi produzido e publicado o atlas Geografia do uso de agrotóxicos no Brasil e conexões com a União Europeia[ii].

Em março deste ano (2021), por conta de seu trabalho de denúncia do uso e abuso de agrotóxicos no Brasil, sentiu-se intimidada por ameaças [https://www.brasildefato.com.br/2021/03/19/apos-intimidacoes-por-luta-contra-agrotoxicos-pesquisadora-decide-deixar-o-pais]. Em Carta Aberta aos Colegas do Departamento de Geografia, a professora explicou os motivos que a estavam levando a se afastar do país. Atualmente, ela realiza estudos na Universidade Livre Bruxelas (Bélgica).

A Palestra

A professora iniciou falando sobre a desigualdade entre os dois blocos (Mercosul e União Europeia), lembrando que os países do Mercosul basicamente “exportam minérios e produtos de origem agropecuária” e importam produtos industrializados.

Como exemplo de produtos exportados, citou o farelo de soja (5,7 bilhões de dólares, em 2018), ressaltando que, “para cada dólar exportado em farelo de soja”, o Mercosul importou “dois dólares de produtos industrializados, relativos apenas a equipamentos”. Portanto, sintetizou a palestrante: os países do Mercosul “têm produzido e exportado commodities e agroenergia (biocombustíveis)”, com a consequente redução da produção de produtos básicos para alimentar a população.

O agro é pop?

No Brasil, essa opção essencialmente econômica tem acarretado riscos “tanto para a saúde humana quanto ambiental”. Isso é detalhado no decorrer da apresentação, quando a pesquisadora mostra a grande dependência que essa produção tem de produtos químicos, sobretudo de pesticidas. E, muitos desses agrotóxicos são produzidos por indústrias que têm sede na UE, onde há a proibição de seus usos. No entanto, a própria UE os vende para o Mercosul. Contradição que traduz a falta de compromisso social do capitalismo: vidas não importam; o lucro em primeiro lugar.

Ocupação de áreas e agrotóxicos

A Profa. Bombardi mostrou alguns exemplos dessa relação. O Brasil, ressaltou ela, é um dos principais exportadores de soja, açúcar e etanol produzidos a partir da cana-de-açúcar, café, suco de laranja, tabaco, milho, carnes bovina e de frango, dentre outros.

Em consequência, os impactos vão desde a grande área territorial ocupada por esses empreendimentos agrícolas, até os efeitos nefastos dos produtos químicos utilizados na produção.

A seguir, ela passou a estabelecer comparações entre os tamanhos das áreas cultivadas com algumas monoculturas e os territórios de alguns países europeus. Por exemplo: no Brasil, a área ocupada com a plantação de cana-de-açúcar equivale a quatro vezes o território belga. Trocando em miúdos: “4 Bélgicas são ocupadas no Brasil com cana-de-açúcar”.

E mais: a área ocupada com o cultivo de soja equivale a 11 Bélgicas, ou uma Alemanha plantada apenas com soja. Somadas as áreas ocupadas com os plantios de soja + eucalipto + cana-de-açúcar é o mesmo que cinco vezes e meia a área de Portugal. Concomitantemente, tem havido a redução de áreas ocupadas com a “produção de arroz, feijão, trigo e mandioca”, com óbvios impactos sobre a segurança alimentar.

A lógica tem sido: para que produzir comida para a população se os grandes produtores agrícolas “engordam” suas contas bancárias com a venda de “commodities e biocombustíveis”? Como se sabe, e ficou mais evidente durante esse período da pandemia, é o pequeno produtor agrícola quem, de fato, produz alimento que chega à mesa da população em geral.

Saúde e agrotóxicos

Portanto, falar nas culturas de exportação é falar também no uso intensivo de agrotóxicos, o que explica o “aumento de 25% no uso desses produtos nos últimos 5 anos [a palestra aconteceu em dezembro de 2019]. Isso explica o aumento de casos de pessoas intoxicadas devido ao uso de agrotóxicos no país, de acordo com dados do Ministério da Saúde. No entanto, sabe-se que esses números são subnotificados.

Embora muitos desses casos tenham representado óbitos, dados do Ibama, de 2019, mostram que, dentre os 10 agrotóxicos mais vendidos no Brasil, pelo menos três deles (Acefato, Atrazina e Paraquat) têm seus usos proibidos na UE. As causas da proibição, explica a palestrante, são bastante conhecidas através de estudos científicos: Acefato é neurotóxico, Atrazina é um disruptor endócrino e Paraquat tem sido associado ao mal de Parkinson.

Na distribuição de uso dos produtos no território nacional, o maior aumento é na região amazônica, onde houve a expansão da área de plantação de soja e, paralelamente, detecta-se o aumento de área desmatada.

Outra informação estarrecedora trazida pela pesquisadora: a assimetria nos índices admitidos no Brasil e na UE. Aqui é permitido 400 vezes mais resíduos de Malation [pesticida organofosforado]na produção de feijão do que o permitido na UE; na água potável, os limites permitidos de resíduos de 2.4-D [ácido diclorofenoxiacético, herbicida] são 300 vezes superior ao limite autorizado pela UE; e são permitidos resíduos de Glifosato [herbicida carcinogênico]5 mil vezes superior do que é permitido na UE.

Bebês mamam agrotóxicos

No texto anterior, citei resultados de pesquisas que mostravam o número de bebês intoxicados com agrotóxicos, mas eram dados de outros países. Nessa palestra, a Dra Larissa Bombardi traz informações impactantes: números oficiais mostram que mais de 500 bebês (de zero a 12 meses de idade) foram intoxicados com agrotóxicos, entre 2007 e 2017.

Helmut Scholz

Helmut Scholz[iii] confirmou que, no Acordo entre os dois blocos, a balança comercial pende grandemente para a UE, sendo os vencedores empresas europeias do setor de máquinas e farmacêutico, responsáveis por metade das exportações. E citou um exemplo: somente em 2019, produtos agrícolas e minérios representaram, respectivamente, 40% e 18% das importações da UE.

Ressaltou que há excelentes exemplos de agricultura e produção alimentar orgânica e sustentável na Europa, mas, também, há formas industriais de “produção” de vacas e porcos, que são alimentados com soja OGM [Organismo Geneticamente Modificado] importada a baixo custo do Brasil e da Argentina. Além disso, os carregamentos de soja que chegavam aos portos de Rotterdam ou Antuérpia, na maioria dos casos, não eram testados para resíduos de agrotóxicos.

Igualmente, Scholz relacionou o aumento da produção de soja e carne para a UE e para a China com o aumento, em escala dramática, de incêndios na Amazônia. E alertou: “Se as empresas da UE puderem fazer encomendas a produtores que possam estar ligados aos incêndios, é como encomendar um crime. Normalmente, em nossos sistemas jurídicos, ordenar um crime deve ser punível e não recompensado”.

“Este homem não é confiável!”

No encerramento de sua fala, Scholz deu sua opinião sobre “um homem que deveria assinar este acordo: o presidente do Brasil. “Este homem não é confiável!”, afirmou e advertiu:

Triste Conclusão

Este tema é desafiante e há muito mais o que comentarmos. Não é uma discussão de política partidária apenas. Deve merecer atenção de todos nós. É o que está sendo ingerido por cada pessoa. E, ainda mais grave: por bebês que não têm ainda condições de escolher e mamam, literalmente, veneno no seio das suas mães.

Ter aprovação, no Brasil, de produtos proibidos na União Europeia, me faz lembrar letra de Chico Buarque: “Não existe pecado ao sul do Equador”.

[i] Disponível em: https://youtu.be/W4zPXDU1m70. Acesso em: 1 out 2021.

[ii] Disponível em: http://ecotoxbrasil.org.br/upload/587ed92192e9dbe77bddffd31cbe25a7-e-book_atlas_agrot_axico_2017_larissa_bombardi.pdf. Acesso em: 7 out 2021.

[iii] Disponível em: https://www.helmutscholz.eu/de/article/1019.conference-for-environment-farming-and-jobs-stop-eu-mercosur.html. Acesso em: 08 out 2021.

 

AGROTÓXICOS (I)

11 de agosto de 2021 9:47 por Fátima de Sá

Foto: Fernando Frazão/Agência Brasil Fonte: GRIGORI (2021)

“Os dias atuais têm materializado uma agricultura do veneno, pois devido à grande flexibilização do Estado e à baixa fiscalização sanitária, o Brasil é o país que mais utiliza agrotóxicos no mundo”.

A afirmação acima é de pesquisadores (Gomes, Moraes, Moraes, 2018[i]) da UFPA e da UFAC, que efetuaram uma revisão bibliográfica de trabalhos publicados entre os anos 2004 e 2016, resultantes de dados coletados no Brasil.

Rachel Carson

Entretanto, eu quero voltar ao ano de 1962, quando a bióloga americana Rachel Carson publicou Silent Spring (Primavera Silenciosa), livro que pode ser encontrado até hoje em livrarias. Quase 60 anos de seu lançamento, e eu recomendo fortemente a sua leitura. Nele, a autora alertou o mundo sobre os perigos do mal uso dos pesticidas. E, além de ponto de partida que ampliou a discussão do tema à época, continua sendo uma referência para quem se ocupa com os problemas decorrentes do uso dos agrotóxicos. A autora inicia o livro com Uma fábula para amanhã, na qual descreve uma cidade imaginária onde ocorrem vários problemas ambientais que, de fato, já haviam sido registrados em várias comunidades reais.

“A fable for tomorrow”

Assim, Carson inicia: “Houve outrora uma cidade, no coração da América, onde a vida toda parecia viver em harmonia com o ambiente circunstante” (There was once a town in the heart of America  where all life seemed to live in harmony with its surroundings) [ii]. E segue descrevendo a vida bucólica em uma cidade do interior.

No entanto, essa vida tranquila e de belezas naturais sofreu drásticas alterações. Segue um trecho da descrição de Carson:

“Depois, uma doença estranha das plantas se espalhou pela área toda, e tudo começou a mudar. Algum mau-olhado fora atirado àquela comunidade; enfermidades misteriosas varreram os bandos de galinhas; as vacas e os carneiros adoeciam e morriam. Por toda parte se via uma sombra de morte. Os lavradores passaram a falar de muita doença em pessoas de suas famílias. Na cidade, os médicos se tinham sentido cada vez mais intrigados por novas espécies de doenças que apareciam nos seus pacientes. Registraram-se várias mortes súbitas e inexplicadas, não somente entre os adultos, mas também entre as crianças (…)”[iii]

A importância da obra de Carson

Na introdução da edição mais recente (1999) de Primavera Silenciosa, Linda Lear comentou: “Quando Carson morreu, na primavera de 1964, aos 56 anos de idade, havia dado partida a uma série de eventos que resultariam na proibição da produção doméstica do DDT e na criação de um movimento popular exigindo a proteção do meio ambiente por meio de regras estaduais e federais.”

DDT

O DDT (Diclorodifeniltricloroetano) teve suas propriedades descobertas em 1939, por um entomologista suíço (Paul Müller), e passou a ser produzido em grande escala em 1945, pois ficou bastante conhecido por ter sido utilizado na Segunda Guerra Mundial para “prevenção de tifo em soldados, que o utilizavam na pele para combate a piolhos”. A partir daí, devido ao seu baixo custo e elevada eficiência, passou a ser largamente utilizado na agropecuária. E, no Brasil, foi também usado em programas de doenças tropicais, como malária e leishmaniose visceral (D’AMATO, TORRES, MALM, 2002[iv]).

DDT no Brasil

Embora haja afirmações de que, em 1970, passou a ser proibido o uso do DDT, na revisão de literatura [recomendo aos interessados no assunto, e, neste texto, utilizo as informações científicas ali registradas]feita pelos autores acima citados, do Instituto de Biofísica da UFRJ, há a informação de que de fato, em 1/1/1970, a Suécia foi o primeiro país a banir o DDT. No entanto, no Brasil, embora tenha havido a proibição parcial do seu uso em 1971 [No artigo citado, os autores informam as portarias do Ministério da Agricultura do Brasil], vários organoclorados continuaram sendo usados para determinados fins. E, mesmo após a sua proibição em 1985, continuaram sendo permitidos em campanhas de saúde pública, “bem como em uso emergencial na agricultura, a critério do Ministério da Agricultura”. E mais: “… manteve-se a permissão do uso de iscas formicidas à base de aldrin e dodecacloro, e do uso de cupinicidas à base de aldrin para reflorestamento”.

Agricultor aplicando agrotóxicos. Foto: PxHere Fonte: https://reporterbrasil.org.br/2021/06/acordo-com-uniao-europeia-vai-ampliar-uso-de-agrotoxicos-e-desmatamento-diz-pesquisadora-que-teve-de-deixar-o-brasil/
Os organoclorados e a saúde dos humanos

Dentre os malefícios causados aos seres humanos por organoclorados (DDT e metabólitos, BHC, aldrin, heptacloro, etc), entre outros, destacam-se (iv):

  1. Embora tenha baixa absorção pela pele humana, são absorvidos pelas vias digestivas e respiratórias, acumulando-se na cadeia alimentar e no tecido liposo;
  2. Atuam no sistema nervoso central;
  3. Provocam convulsões, paralisia e morte;
  4. A intoxicação aguda nos seres humanos pode levar a sintomas inespecíficos, como dor de cabeça, tonturas, convulsões, insuficiência respiratória e até morte;
  5. Após 2h, em casos de intoxicação aguda, os sintomas neurológicos de hiperexcitabilidade, parestesia na língua, lábios e membros inferiores, desorientação, fotofobia, cefaleias persistentes, fraqueza, vertigem, alterações do equilíbrio, tremores, convulsões, depressão central severa, coma e morte;
  6. Em caso de inalação, entre outros, podem ocorrer os seguintes sintomas: tosse, rouquidão, edema pulmonar, irritação laringotraqueal, hipertensão e broncopneumonia (este é um sintoma muito frequente).
Manifestações crônicas

As manifestações crônicas são ainda mais comuns e consistem, entre outras, lesões hepáticas e renais, além de arritmias. Estudos de laboratório, em camundongos, mostraram que há a potencialização da divisão de células neoplásicas e ativação de substâncias carcinogênicas. Os efeitos dos organoclorados sobre os seres humanos, especialmente, perturbações sobre o funcionamento do fígado, já foram relatados em 1962, por Carson (Capítulos 12, 13 e 14 da edição por mim consultada), que comentou resultados de pesquisas médicas efetuadas até aquela data.

Nem tudo é o que parece …

Uma das tantas explicações que continuam atuais: “A exposição do ser humano às substâncias produtoras de câncer (inclusive aos pesticidas) é incontrolada; e tem formas múltiplas. Um indivíduo pode passar por muitas exposições diferente à mesma substância química. O arsênico fornece o exemplo.” [Carson citou várias formas de exposição humana ao arsênico].

E argumentou: “É muito possível que nenhuma destas exposições, individualmente considerada, baste para precipitar a malignidade; contudo, qualquer dose supostamente ‘segura’ poderá ser suficiente para fazer inclinar-se a balança, um de cujos pratos já esteja carregado de outras doses também ‘seguras’” (p. 244).  E alertou sobre a interação de variadas substâncias químicas, ou entre um agente físico e um agente químico, que pode provocar danos ainda maiores do que cada uma isoladamente.

Bebês bebem organoclorados

Como a eliminação ocorre também através do leite materno, bebês estão bebendo doses de organoclorados diretamente do peito da mãe. Em pesquisa para o TCC do bacharelado em enfermagem na UFMS, a aluna Letícia Regina dos Santos, efetuou uma revisão integrativa nas bases de dados Science Direct e MedLine, com descritores: human milk e pesticides organoclhorine, em 17 artigos publicados no período entre 2010 e 2014. Os artigos selecionados, de acordo com os critérios adotados pela pesquisadora, resultaram de pesquisas feitas com mães residentes em áreas urbanas de países asiáticos (Turquia, China, Índia e Coreia do Sul) e europeus (Espanha, Suíça, Polônia, Croácia, República Checa e Eslováquia).

O objetivo da pesquisa foi “verificar as evidências disponíveis na literatura científica sobre contaminação do leite humano devido aos pesticidas organoclorados”. Por fim, os estudos mostraram evidências de que o leite materno das pacientes estudadas estava “contaminado por resíduos de pesticidas organoclorados”. Os principais produtos encontrados nas amostras de leite materno analisadas foram: DDT, DDE, HCH e PCB”.

Defensivos ou Agrotóxicos?

Na década de 1970, houve maior impulso ao uso do que eram chamados à época os “defensivos agrícolas”, com a conhecida “revolução verde”, que mais do que o verde da clorofila, representava (como atualmente) o verde das notas de dólar, que não chegam ao bolso daqueles trabalhadores que, de fato, manuseiam, respiram e passaram também a “consumir” os venenos utilizados na produção agrícola. Além disso, implantou-se no campo, entre pequenos agricultores, a cultura do uso dos agrotóxicos como se fosse essa a única forma de produzir alimentos.

“Nosso futuro roubado”

Por outro lado, em 1997, foi lançado nos Estados Unidos, o livro Our stolen future[v] (Nosso futuro roubado), cujo Prefácio foi escrito por Al Gore, que imediatamente percebeu nessa publicação, uma continuidade na luta iniciada por Carson:

Futuro Roubado oferece uma descrição realista e fácil de ler sobre a pesquisa científica emergente que investiga de que maneira uma ampla variedade de agentes químicos sintéticos alteram delicados sistemas hormonais. Sistemas estes que têm um papel fundamental em vários processos, desde o desenvolvimento sexual humano até a formação do comportamento e da inteligência e o funcionamento do sistema imunológico.”

Em 1999, havia no Brasil 300 princípios ativos e 2.000 formulações de agrotóxicos, segundo dados do Guia da Vigilância Epidemiológica, da Fundação Nacional (citado pela revisão realizada na UFAC). No entanto, nos últimos 21 anos, esse dado cresceu; notadamente, nos últimos dois anos, quando aumentaram as facilidades para o agronegócio, onde o agricultor é mera peça numa engrenagem que rende lucros crescentes. Lucros esses que não chegam ao bolso dos que estão na labuta do campo, e que são os primeiros a serem envenenados.

“Passando a boiada?”

Em matéria do site Repórter Brasil, publicada em 13/05/2020, Pedro Grigori, da Agência Pública, informou (https://reporterbrasil.org.br/2020/05/96-agrotoxicos-sao-aprovados-durante-a-pandemia-liberacao-e-servico-essencial/. Acesso em: 8 ago. 2021): 

“Mesmo durante a quarentena, o Governo Federal continua a aprovar novos agrotóxicos para serem vendidos no mercado brasileiro. Desde março deste ano [2020] foram publicados os registros de 118 novos produtos, sendo 84 destinados para agricultores e 34 para a indústria. No mesmo período, as empresas produtoras de pesticidas solicitaram ao Ministério da Agricultura a liberação de mais 216 produtos, que estão sendo avaliados agora pelo governo.”

O número de aprovações foi maior do que o ocorrido no mesmo período de 2019, quando 80 produtos agrotóxicos tiveram o registro publicado. O ano passado conquistou recorde histórico de aprovações de agrotóxico, com 475 novos produtos sendo liberados.

E 2020 segue o mesmo passo, com um total de 150 produtos recebendo registro desde o começo do ano.”

Fonte: GRIGORI (2021)

 

Como se vê, estamos à mercê de dirigentes que nem respeitam a legislação ambiental e optaram por deixar “passar a boiada”.  Portanto, devemos analisar com cuidado a afirmação de que o uso destas substâncias não provoca danos aos trabalhadores da agricultura.

 

Os pesticidas se deslocam…

Ainda que haja portarias, desde 1971, proibindo o uso de determinados produtos, como destacaram D’Amato, Torres e Malm na revisão citada, resíduos de pesticidas “podem ser transportados por grandes distâncias através do mundo, retidos no organismo de animais migrantes marinhos, por correntes de ar e oceânicas”.

Esses autores também destacaram os danos que os pesticidas podem causar ao meio ambiente em geral:

  1. Aqueles aplicados em lavouras, terrenos ou em processos de reflorestamento, ligam-se aos sedimentos do solo e sofrem ação de lixiviação e contaminação de águas, volatilização e contaminação do ar ou são absorvidos por micro-organismos, vegetais ou animais.
  2. Pode contaminar águas subterrâneas e águas tratadas para consumo humano;
  3. Estudo realizado em região de cultivo da cana-de-açúcar, no estado de São Paulo, mostrou que “os maiores riscos estão associados a locais onde há uso intensivo de herbicidas”.
  4. Na biota, “as taxas de acumulação variam entre as espécies, e de acordo com a concentração, as condições ambientais e o tempo de exposição”.
  5. Os organismos acumulam estes compostos a partir do meio circundante ou pelos alimentos.
  6. Nos peixes, como a absorção no meio aquático é mais rápida do que no ambiente terrestre, a bioconcentração é geralmente maior do que nos invertebrados, pois esses servem de alimento para muitas espécies de peixes. Portanto, quanto mais próximo ao topo da cadeia alimentar a espécie se encontra, maior a concentração do agrotóxico em seu organismo.
Continuaremos com o tema…

Como o assunto é extenso e há novas pesquisas mostrando os efeitos dos agrotóxicos sobre a saúde humana e do meio ambiente, e a permissividade aumentada na liberação da entrada destes produtos no Brasil (mesmo produtos proibidos na União Europeia), sem qualquer preocupação com seus efeitos sobre os trabalhadores do campo e a contaminação dos alimentos para a população em geral, voltaremos a falar sobre o tema.

[i] GOMES, A.C.S.; MORAES, L.G.S.; MORAES, C.R.S. O uso de agrotóxicos e a saúde do trabalhador rural no Brasil. ARIGÓ Revista do Grupo PET e Acadêmicos de Geografia da UFAC, v.1, n.1, p. 53-61, jul./dez. 2018.

[ii] CARSON, Rachel. Silent spring. London: Penguin Books, 2000. (Reprinted).

[iii] CARSON, R. Primavera silenciosa. Trad. Raul de Polillo. São Paulo: Melhoramentos, 1964. [Há uma edição de 2010, em português, da Ed. Gaia que, em 2013, também lançou a 1ª edição digital].

[iv] D’AMATO, C.; TORRES, J.P.M.; MALM, O.  DDT (Dicloro Difenil Tricloroetano: toxicidade e contaminação ambiental – uma revisão. Quim. Nova., v.25, n.6, p. 995-1002, 2002.

[v] COLBORN, T.; DUMANOSKI, D.; MYERS, J.P. Our stolen future: are we threatenng our fertility, intelligence, and survival? – A scientific detective story. New York: Plume/Penguin, 1997. [Há tradução para o português em edição da L&PM].

 

Dia Mundial do Meio Ambiente – PRECISAMOS RESTAURAR A DEMOCRACIA!

8 de junho de 2021 6:12 por Fátima de Sá

Relembrando…

Como em todos os anos, desde 1974, o Programa das Nações Unidas para o Meio Ambiente (PNUMA) elege um tema e lidera as comemorações do Dia Mundial do Meio Ambiente, visando “sensibilizar e promover a ação ambiental pelo mundo”.

Por outro lado, desde que foram definidos os Objetivos de Desenvolvimento Sustentável (ODS), esse é um dia em que se busca incentivar ações que permitam atingir as metas propostas na Agenda 2030.

Assim, neste ano (2021), o dia 5 de junho tem como marco principal, o lançamento da Década das Nações Unidas para a Restauração de Ecossistemas, cujo anfitrião será o Paquistão. Por isso, no site do PNUMA, há a proposta:

REIMAGINE. RECRIE. RESTAURE.

Este é o nosso momento.

Não podemos voltar no tempo. Mas podemos cultivar árvores, tornar nossas cidades verdes, renovar nossos jardins, mudar nossas dietas e limpar rios e encostas. Somos a geração que pode fazer as pazes com a natureza.

Vamos ficar ativos, não ansiosos. Sejamos ousados, não tímidos.

Junte-se a #GeraçãoRestauração!

Tudo bem que é uma proposta que se estenderá pelos próximos 10 anos, e, como nos lembrou Lao-Tzu[i] “Uma jornada de mil milhas começa com um único passo”, mas não podemos fazer de conta que estamos em um ano “normal”. E não é somente por conta da pandemia – que afeta a todos e todas – mas é que, acredito que, em nenhum outro país, se vive a distopia que vivemos no Brasil. Portanto, creio que o Dia Mundial do Meio Ambiente terá, aqui, características únicas, embora haja a programação oficial proposta pelo PNUMA[ii].

Enquanto isso, no Brasil…

No Brasil, a forma como está sendo conduzida a gestão da pandemia, levando muitos à morte e, de acordo com cientistas da área, muitas dessas mortes poderiam ter sido evitadas se tivéssemos governo comprometido com o bem-estar de todos e todas, que tivesse adotado ações sérias baseadas em evidências científicas.

Por outro lado, temos nos defrontado com fatos cada dia mais catastróficos: aumento de áreas  desmatadas, queimadas, comunidades indígenas e quilombolas desrespeitadas e agredidas, garimpeiros invadindo terras indígenas, aumento da população pobre desassistida – que volta a sentir os efeitos da fome, do desemprego, habitando as ruas das cidades por não ter moradia e nem condições de pagar aluguel.

Estamos no mesmo mar, mas não na mesma embarcação

Certamente, o próprio PNUD não desconhece que “bilhões de cidadãos e cidadãs em vários países continuam a viver na pobreza e a elas é negada uma vida digna”. Portanto, PREVENIR, PARAR E REVERTER A DEGRADAÇÃO DOS ECOSSISTEMAS EM TODO O MUNDO, como proposto para refletirmos e agirmos hoje, não será tão fácil diante do quadro montado no Brasil.

E, ao informar que a Década das Nações Unidas para a Restauração do Ecossistema “é um grito de guerra global para curar nosso planeta”,  é lançado o desafio: “O que você vai restaurar?”

O que você vai restaurar?

Antes de tudo, creio que a maioria dos brasileiros, imediatamente gritará: PRECISAMOS RESTAURAR A DEMOCRACIA em primeiro lugar. Ou estaremos atados e sem forças para cuidarmos de nossos jardins, de nossas hortas, de nosso entorno, da segurança alimentar, do nosso meio ambiente. Pois, tudo isso está interligado e depende de políticas sérias e comprometidas com uma visão de mundo totalmente diferente do que está aqui sendo imposto à população brasileira.

Quando o PNUMA diz: “Nunca houve uma necessidade mais urgente de reviver ecossistemas danificados do que agora”, concordo. E temos urgência de viver. Cada alerta nos leva ao mesmo diapasão: queremos DEMOCRACIA ou sufocaremos sem ar, sem as mínimas condições de enfrentamento da crise ambiental global.

A COVID-19 ofusca a crise ambiental

Crise ambiental que é assim vista pelo monge budista Bhante Buddharakkhita:  O mundo está atravessando muitas, muitas crises; por exemplo, a pandemia de COVID[…]. Temos também as mudanças climáticas. Essas são crises bem grandes. Mesmo agora, acho que a COVID está ofuscando as mudanças climáticas. Temos conflitos em larga escala, guerras em todo lugar, a crise humanitária[iii]. 

O grifo acima é meu. Sim, a pandemia da COVID-19 está “ofuscando” a crise climática, principalmente no Brasil onde o (des)governo se aproveitou da maior atenção de que necessita para a pandemia para “passar as boiadas” que, entre outras consequências, têm contribuído para ampliar a crise climática. E precisamos mostrar a relação entre as pandemias e a forma como tem sido tratado o meio ambiente. “Tudo está interconectado”, é sempre bom lembrar.

Como estão os ecossistemas aquáticos, por exemplo?

Portanto, não há como “tapar o sol com uma peneira”. O que continuam fazendo com nossos cursos d’água? Como falar de restauração de ecossistemas aquáticos sem falar em saneamento básico? Sem falar e sem se executar o que é essencial.

A gestão das águas nas mãos da iniciativa privada vai deixar as periferias ainda mais abandonadas porque não interessam aos que apenas visam lucro imediato. O lixo continua sendo acumulado a céu aberto nas ruas. Riachos, rios, lagoas e lagunas têm sido a lata do lixo e dos efluentes que contaminam e poluem o ambiente. E, grande parte desse lixo desce até as praias, juntando-se aos efluentes e ao lixo que tem sido atirado fora das lixeiras. Portanto, quando falamos disso, repetimos mais do mesmo.

Em publicação de março deste ano, o Instituto Trata Brasil informa: … o país mantém sem serviços de água tratada quase 35 milhões de habitantes, sendo 5,5 milhões nas 100 maiores cidades []. Temos aproximadamente 100 milhões de pessoas sem acesso à coleta de esgotos, sendo 21,7 milhões nesses maiores municípios […]. O Brasil ainda não trata metade dos esgotos que gera (49%), o que representa jogar na natureza, todos os dias, 5,3 mil piscinas olímpicas de esgotos sem tratamento. Nas 100 maiores cidades, em 2019, descartou-se um volume correspondente a 1,8 mil piscinas olímpicas diárias.

A construção de uma casa começa pelo alicerce

O PNUD nos lembra: Os ecossistemas sustentam toda a vida na Terra. Quanto mais saudáveis forem nossos ecossistemas, mais saudável será o planeta – e seu povo. A Década das Nações Unidas para a Restauração de Ecossistemas visa prevenir, interromper e reverter a degradação dos ecossistemas em todos os continentes e oceanos. Pode ajudar a erradicar a pobreza, combater as mudanças climáticas e prevenir uma extinção em massa. Só terá sucesso se todos participarem.

Concordando com tudo isso, volto a lembrar: são necessárias medidas de suporte básico para que o cidadão e a cidadã deem sua contribuição no cotidiano, apoiando projetos de “restauração local” (do seu bairro e da sua cidade). Lembrando que a construção de uma casa não começa pelas paredes, para restaurar os ecossistemas há ações que dependem de políticas públicas que saiam do papel: saneamento básico, fiscalização, parar o desmatamento, reduzir o uso de agrotóxicos, manter saudáveis as matas ciliares e outras APP (Áreas de Proteção Permanente), entre outros.

Em conclusão…

Enfim, tudo isso vem antes de a comunidade plantar árvores, limpar margens de rios”. Além disso, para que “a natureza se recupere” é preciso que cessem as agressões à Terra. Concluo com reflexão do próprio PNUD: O esgotamento dos recursos naturais e os impactos negativos da degradação ambiental, incluindo a desertificação, as secas, a degradação dos solos, a escassez de água doce e a perda da biodiversidade aumentam e agravam a lista de desafios que a humanidade enfrenta.

 

[i] LAO-TZU – apelido do autor do Tao-te King e que viveu “nos fins do século VII a.C., contemporâneo de Confúcio” (LAO-TZU. Tao-te King: o livro do sentido e da vida. São Paulo: Ed. Pensamento, 1978.

[ii] Disponível em: https://www.unep.org/pt-br/events/un-day/dia-mundial-do-meio-ambiente-2021. Acesso em: 5 jun. 2021.

[iii] Disponível em: https://bodisatva.com.br/cebb-talks-bhante/. Acesso em: 5 jun. 2021.

15 de maio de 2021 10:52 por Fátima de Sá

O que se viu na Câmara dos Deputados foi confusão. Desfiaram discursos em sua grande maioria sem fundamentação, em defesa do “desenvolvimento”, onde a proteção do meio ambiente figurou apenas como empecilho

Apresentado pelo deputado federal Neri Geller foi aprovado na noite de quarta-feira, 12 de maio. Hoje, dia 13, serão votados os destaques ao projeto.

A aprovação foi um dos maiores retrocessos normativos que o Brasil já presenciou. A Câmara dos Deputados conta com uma minoria de deputados independentes e conscientes sobre os temas da sustentabilidade. Porém, há uma maciça frente do agronegócio, ligada à política ambiental nefasta do Executivo federal. Essa massa caminhou, em passo de boiada, rumo à simplificação daquilo que é, de per si, complexo por natureza.

O licenciamento ambiental não é simplificável, pois a teia da vida é complexa. Seu correto dimensionamento é o único caminho para a sustentabilidade. De outro lado, a realidade civilizatória e a sociedade contemporânea exigem essa adequação.

Os princípios da sustentabilidade e da avaliação prévia de impactos ambientais estão bem clarificados no Art.4º, I, da Política Nacional do Meio Ambiente (Lei 6938/81), que aponta “a compatibilização do desenvolvimento econômico-social com a preservação da qualidade do meio ambiente e do equilíbrio ecológico”.

Note-se que o objetivo principal se encontra no final da frase, uma vez que a proteção do meio ambiente e o equilíbrio ecológico são condições basilares para o desenvolvimento, de forma que este não se torne um mero crescimento – e assim sendo, tem precedência sobre os interesses econômicos.

Com esta compreensão, a Constituição Federal garante a todos os brasileiros o direito ao meio ambiente equilibrado e saudável qualidade de vida.

O que se viu na Câmara dos Deputados foi confusão. Desfiaram discursos em sua grande maioria sem fundamentação, em defesa do “desenvolvimento”, onde a proteção do meio ambiente figurou apenas como empecilho. É desnecessário comentar sobre a capacidade de discernimento dos deputados.

Devemos analisar o que representa, de fato, o licenciamento ambiental e a avaliação de impacto ambiental – e como e em que condições tem ocorrido este processo em nossa realidade. A pergunta agora é: quais as medidas possíveis e os caminhos que a sociedade brasileira deve trilhar a partir deste momento de retrocesso?

A conjuntura nos revela que a confusão vem de longe. Os debates nos licenciamentos costumam ser acalorados. Na ausência do planejamento ambiental, o licenciamento muitas vezes ganha contornos de um debate sobre políticas públicas. A lacuna de planejamento e a falta de diretrizes para a sustentabilidade produzem empreendimentos inadequados, apresentados à sociedade sem maturidade político-ambiental.

Quem observou os eventos de Brumadinho, Mariana, Belo Monte e Balbina entende que setores econômicos irresponsáveis empreendem ambicionando projetos de grande porte e com significativos impactos ambientais, já que a lucratividade demanda escala.

Encontro do Rio Piranga com o Rio do Carmo, dando origem ao Rio Doce, atingido pelo rompimento da barragem de rejeitos da mineradora Samarco, em Minas Gerais. Imagem de julho de 2016. Foto: Felipe Werneck/Ibama.
Na maior parte dos casos tais projetos contratam empresas que apresentam avaliações de qualidade discutível, com deficiências no diagnóstico, consumado sobre más alternativas locacionais. Isso se deve muitas vezes à manipulação dos empreendedores, que abandonam a seriedade técnica para imprimir os resultados que pretendem obter.

As lacunas no planejamento e a baixa qualidade dos estudos apresentados têm sido, em muitos casos, o maior motivo de demora dos processos de licenciamento ambiental. Muitas vezes há tentativas de aprovar como viáveis projetos que não o são — e que permanecem emperrados por não conseguirem demonstrar sua viabilidade ambiental.

Sem generalizar, há bons consultores, que seguem princípios éticos. A própria Associação Brasileira para Avaliação de Impacto (ABAI) defende entre seus valores o diálogo, a pluralidade, transparência, participação, rigor técnico e sustentabilidade. Há bons empreendedores, voltados aos princípios da Environmental, Social and Governance (ESG) e que já entenderam que o caminho da sustentabilidade é uma via global com futuro e sem retorno.

De outro lado, os órgãos ambientais, com falta de estrutura e pessoal, são pressionados politicamente para convalidar projetos ruins. Alguns resistem bravamente, por questões de caráter e profissionalismo, ou até mesmo porque os mecanismos de controle social funcionam, seja por meio de atuação do Ministério Público, da sociedade civil e da visibilidade proporcionada por veículos de imprensa investigativa.

Neste terreno pantanoso, onde reside a incapacidade e falta de lucidez, acabou sendo mais fácil colocar a culpa no licenciamento ambiental. Assim foi também para os órgãos ambientais, ansiosos para se livrar da responsabilidade e da pressão. Essa estranha coalizão entre setores econômicos e governos por facilitações e simplificações surge travestida de modernização e desburocratização– e já revelou quando os próprios órgãos ambientais partiram para uma iniciativa de revisão do licenciamento, que foi bloqueada por uma eficiente atuação da sociedade civil no Conama, com apoio do Ministério Público Federal.

Quis a história que esta matéria, de grande relevância ambiental, caísse no colo do Congresso Nacional, como já ocorreu com o Código Florestal, que acabou sendo significativamente dilacerado para atender ao maciço interesse do agronegócio que lá habita.

A proposta aprovada na quarta-feira traz como premissa a facilitação e nada mais faz do que se insurgir contra a essência do licenciamento ambiental, cujo princípio é a correta e constitucional avaliação prévia de impactos ambientais.

Quem observou os eventos de Brumadinho, Mariana, Belo Monte e Balbina entende que setores econômicos irresponsáveis empreendem ambicionando projetos de grande porte e com significativos impactos ambientais, já que a lucratividade demanda escala.

 

A proposta transborda inconstitucionalidade. Tenta minar o princípio da gestão participativa, da participação social, ao excluir da obrigatoriedade do licenciamento empreendimentos impactantes que, como qualquer outro, afeta comunidades e o meio ambiente. Inova ao instituir o licenciamento autodeclaratório, sem controle social — em que pese a gestão participativa na área ambiental estar consagrada na Constituição, já que a população será a principal destinatária dos efeitos positivos ou negativos das questões ambientais, portanto de interesse comum.

Para maiores facilitações, a proposta permite estudos de impacto ambiental com dados reutilizados de outros projetos, institucionalizando o copia e cola que hoje já se comprova em muitos casos.  Retira a percepção abrangente e estrutural sobre impactos sinérgicos, pois libera do licenciamento empreendimentos de baixo impacto — sem considerar que, em seu conjunto e a depender da plataforma ambiental em que se inserem, os impactos sinérgicos e cumulativos podem ser muito mais significativos para o meio ambiente e para as comunidades do que seriam causados por um grande empreendimento.

Os pontos já citados comprovam a ineficácia da proposta. Entre dezenas de outros absurdos, atenta ainda contra os direitos dos povos tradicionais e retira  possibilidades para que a sociedade brasileira trilhe o caminho do desenvolvimento sustentável, previsto constitucionalmente.

Finalmente, o PL compromete o patrimônio ambiental e o futuro, semeando insegurança jurídica.

O índice de judicialização deverá aumentar, em função de descumprimento da obrigatoriedade de avaliações prévias e mais precisas sobre os impactos ambientais. Também aumentarão os danos ambientais causados pela imprevidência. Quem os reparará?

É preciso ressaltar que a comunidade internacional está atenta ao Brasil e às manobras internas para facilitações ambientais, que permitem a produção de commodities às custas da degradação do meio ambiente.

Consequentemente, a aprovação do PL do licenciamento, com claros indicadores de facilitações, aumentará as desconformidades ambientais e será mais um elemento a se refletir negativamente na imagem do Brasil e na balança comercial.

Além disso, há as exigências de regularidade ambiental da Organização de Cooperação para o Desenvolvimento Econômico (OCDE), onde o Brasil espera há anos por sua admissão. Também irá confrontar a exigente Comunidade Europeia, enquanto o Mercosul, por inépcia brasileira e na contramão da história, será cada vez mais capitaneado ou protagonizado isoladamente por nossos vizinhos.

A Organização Mundial do Comércio (OMC) tem sido abordada pelos Estados Unidos para instituir mecanismos de penalização por concorrência desleal, praticada por aqueles que se recusam a produzir sem o devido cuidado e investimento na proteção do meio ambiente.

A aprovação do PL do Licenciamento Ambiental é uma pá de cal na gestão ambiental brasileira e irá arruinar o que restou da combalida imagem do Brasil. O Senado Federal deve acordar e não corroborar com essa proposta absurda. É preciso focar a gênese do problema.

Sobre reações possíveis, ainda restam elementos recursais para combater mais uma inconstitucionalidade, como já reconheceu o STF no caso da resolução Conama 303/2002 — e nas alterações destrutivas que ocorreram na entidade.

Será mais uma batalha árdua, pois em defesa do Congresso sairá a própria Presidência da República, que parece contar com uma inadequada simpatia por parte do Procurador Geral da República.

A Lei Geral do Licenciamento Ambiental contraria sua própria razão de ser, ao se tornar uma das maiores ameaças à sustentabilidade ambiental do Brasil.

 

Fonte: https://www.oeco.org.br/colunas/a-insustentavel-lei-geral-do-licenciamento-ambiental
Por: Carlos Bocuhy

 

COVID-19 – a pandemia deixa lições

6 de abril de 2021 7:13 por Fátima de Sá

O livro

Na Universidade do Estado da Bahia – UNEB, profissionais do Programa de Pós-Graduação em Ecologia Humana e Gestão Socioambiental decidiram pôr em execução uma ideia: reunir profissionais de diferentes áreas do conhecimento para refletirem sobre a Covid-19 em meio à pandemia.

Como resultado dessa “balbúrdia”, surgiu o livro organizado pelas Professoras Eliane Maria de Souza Nogueira e Iramaia De Santana, Lições e memórias de uma pandemia, que está disponível, gratuitamente, em formato de e-book[i]. Eu tive a alegria de escrever o prefácio e vou aqui reproduzir alguns trechos para convidar todos e todas à leitura.

Tragédia anunciada

Primeiramente, lembro que são passados quase 60 anos da publicação do livro Primavera Silenciosa, de Rachel Carson; a bióloga americana dedicou o livro a Albert Schweitzer que disse: O homem perdeu sua capacidade de prever e de prevenir. Ele acabará destruindo a Terra.

Enquanto isso, em pleno século 21, nos deparamos com dados mostrando que 335 eventos sobre doenças infecciosas emergentes ocorreram entre 1940 e 2004[ii], com padrões globais não aleatórios, confirmando que essas doenças estão significativamente correlacionadas com fatores socioeconômicos, ambientais e ecológicos.

Além disso, pesquisas mostram a ocorrência de epidemias a partir da ecologia de patógenos naturais, notadamente quando seres humanos são expostos em atividades tais como, produção animal, extração de recursos naturais, e práticas agrícolas e culturais inadequadas.  Ainda, as mudanças climáticas e a perda de biodiversidade constituem-se em ameaças à saúde humana, ao expor as pessoas à insegurança alimentar e hídrica, condições climáticas extremas, poluição e doenças infecciosas[iii].

Um patógeno no comando

Em dezembro/2019, o noticiário anunciava uma nova doença infecciosa acometendo pacientes internados em um hospital de Wuhan – capital da província de Hubei, China Central, um centro comercial onde vivem 11,08 milhões de pessoas.

Dias depois, foi identificado o código genético do vírus – um novo tipo de coronavírus, que recebeu o nome de SARS-CoV-2, e a doença por ele causada recebeu a sigla COVID-19 [CO = corona, VI = vírus, D = Disease = Doença, 19 = 2019].

Portanto, emergiu uma nova zoonose, ceifando vidas humanas, deixando sequelas em muitos sobreviventes, além de trazer prejuízos econômicos globais. Além do mais, ficou evidente que os mais vulneráveis da sociedade (pobres, moradores de periferias, indígenas, quilombolas) ficaram mais expostos à doença. Isto está evidente na afirmação de Emicida.

Por outro lado, a OMS emitiu um alerta: a melhor forma de prevenir e retardar a transmissão é estar bem informado sobre o vírus da Covid-19, a doença que ele causa, e como se espalha[iv]. Desse modo, a publicação desse livro da UNEB, com o apoio da Sociedade Brasileira de Ecologia Humana, é uma contribuição importante para discussões e disseminação de informações que poderão enriquecer o debate sobre a pandemia.

Detalhando o livro

A partir de diferentes olhares e diversas formações acadêmicas, o livro foi composto por análises de dados disponíveis sobre o tema, com as seguintes abordagens:

  1. Políticas públicas brasileiras em meio ambiente e saúde: reflexões acerca das implicações sobre a pandemia da covid-19, em que é mostrada a interconectividade entre saúde humana, animal e ambiental, proposta pela ONU na abordagem da Saúde Única (One Health). Por fim, os autores relatam como o governo brasileiro tem agido diante do problema e discutem perspectivas para o enfrentamento desta e de futuras pandemias.
    SAÚDE ÚNICA (ONE HEALTH): Saúde Ambiental, Saúde Humana, Saúde Animal (ONU, 2020)
  2. Projeções e simulações: importância na previsão de impactos na comunicação a populações vulneráveis – onde se buscou demonstrar a importância do uso das tecnologias para projeções e simulações como apoio ao combate à pandemia, entendendo que elas podem e devem ser utilizadas para permitir a disseminação dos dados baseados em ciência.

3. Reminiscências e admoestações da educação à luz de uma pandemia: a urgência da consciência de si – as autoras discutiram a importância do trabalho interdisciplinar, fizeram reflexões sobre a Covid-19 e as lições trazidas pelas reminiscências do corpo.

4. Como guiar no nevoeiro? Pensamento complexo e aprendizagem institucional em tempos de pandemia, em que se trabalhou com a hipótese de que a capacidade de organização das populações indígenas tem-se mostrado favorável diante da pandemia. E se destacou a necessidade de: Orquestrar os movimentos, aguçar os sentidos da escuta, reconhecendo-nos partes de um sistema complexo, a exemplo dos povos das florestas.

5. História e pandemia: ressignificando as ações humanas sobre o meio ambiente e saúde. Discute-se a necessidade de se pensar meio ambiente, ciência e economia de forma conjunta e sustentável, entendendo que tudo está conectado.

6. A regenerativa contribuição da agricultura familiar agroecológica em tempos de pandemias, onde se mostra a necessidade da adoção de medidas pautadas numa perspectiva agroecológica, para fazer frente à crise sanitária, econômica e social à qual a humanidade está submetida.

7. Povos indígenas e os desafios da Covid-19: produção de memória e mobilizações políticas. Fez-se uma análise fundamentada em quatro eixos: o caráter histórico do papel político desempenhado por patógenos e epidemias nas relações interétnicas; aspectos sociopolíticos evidenciados pela crise da Covid-19; aspectos culturais na multiplicidade de povos indígenas e suas visões de mundo; o modo de produção de memórias acerca da pandemia como uma frente de ação do Movimento Indígena.

8. Direito do mar: um mar de direitos violentados – foram analisados leis e processos históricos que asseguram os direitos do mar. Também abordaram aspectos das leis de proteção às águas marinhas, considerando o vazamento do óleo nas praias, ocorrido em 2019, mas, que foi eclipsado em função da urgência acarretada pela pandemia da Covid-19.

Em Conclusão

Lições e memórias de uma pandemia é uma demonstração de que diversos profissionais, ao fazer a integração de conhecimentos necessária ao entendimento da pandemia da Covid-19, não escolheram “se esconder”, mas aumentaram a chama do interesse pela realidade que está batendo às nossas portas há mais de um ano, invadiu muitos lares e já dizimou milhões de vidas.

 

 

[i] http://www.sabeh.org.br/?mbdb_book=licoes-e-memorias-de-uma-pandemia

[ii] JONES, K.E. et al. Global trends in emerging infectious diseases. Nature, v. 451, p. 990-994, fev. 2008.

[iii] GIBB, R.; FRANKLINOS, L.H.V.; REDDING, D.W.; JONES, K.E. Ecosystem perspectives are needed to manage zoonotic risks in a changing climate. BMJ 2020.371:m3389. Disponível em: http://dx.doi.org/10.1136/bmj.m3389. Acesso em: 13 nov. 2020.

[iv] Coronavirus. Disponível em: https://www.who.int/health-topics/coronavirus#tab=tab_1. Acesso em: 19 dez. 2020.

O CANYON DO RIO SÃO FRANCISCO E A ESTUPIDEZ HUMANA

22 de março de 2021 11:44 por Fátima de Sá

Canyon do rio São Francisco, entre Alagoas e Bahia Foto: Fátima De Sá

Eu quero começar lembrando de duas frases que podem justificar o que vou mostrar aqui. Na verdade,  desconheço a autoria da primeira, embora esteja muito atual: “A ignorância é atrevida”. E a outra é do jornalista gaúcho, Apparício Fernando de Brinkerhoff Torelly, famoso pelo falso título Barão de Itararé: “De onde menos se espera, daí é que não sai nada”.

Embora pareça estranho começar assim, vejamos… Hoje, Dia Mundial da Água, dia estabelecido para reflexões sobre as ÁGUAS, eu quero falar de ROCHAS, rochas que são esculpidas também pela força de ÁGUAS.

Paisagens de exceção

O rio São Francisco apresenta várias feições em seu longo percurso desde a nascente, em Minas Gerais, até a foz, na divisa de Alagoas e Sergipe. Particularmente diferente é a feição topográfica em longo trecho do sertão nordestino, onde o rio flui entrincheirado entre grandes paredões, protagonizando cenas de rara beleza.

Sobre isso, o saudoso Professor Aziz Nacib Ab´Sáber[i] assim explicou: […] o rio São Francisco talhou rochas graníticas em plena área dos sertões secos, na tríplice fronteira da Bahia, Alagoas e Sergipe.

Para deixar mais claro, Ab´Sáber, cientista conhecedor das variadas paisagens brasileiras, considerava os canyons “paisagens de exceção” e que devem ser preservadas. Os canyons constituem-se cenários complexos que desafiam cientistas de todo o mundo. E completou: Já se disse que as paisagens de exceção constituem fatos isolados, de diferentes aspectos físicos e ecológicos inseridos no corpo geral das paisagens habituais. Mais que isso, são referências para os homens desde a pré-história.

O que são canyons?

Enquanto isso, paremos um pouco para entender do que estamos falando. Os canyons podem ser submarinos ou de rio. E esses últimos, mais conhecidos, constituem-se em vales estreitos e profundos com encostas íngremes. Neles, ocorre a pressão do movimento da água, entrincheirada entre os paredões, e somam-se processos de intemperismo e erosão.

O Grand Canyon Yarlung Zangbo, no Tibete, é considerado o mais profundo do mundo – com mais de 5.300m, e seus mais de 500 km de extensão o tornam um dos mais longos do mundo.

Em artigo de revisão – Aspectos da hidrografia brasileira, publicado na Revista Brasileira de Geografia -, Ruth S. B. dos Santos, cita estudo de J.C. Pedro Grande, de 1955, no qual há uma lista do que o autor denominou de as “principais passagens estreitas” dessas bacias. E lá, dentre as oito citadas, consta: “No rio São Francisco, extenso canyon entre Petrolândia [PE] e Piranhas [AL]”.

O canyon do rio São Francisco
Canyon entre os Estados de Alagoas e Bahia Foto: Fátima De Sá

Em 2001, a Expedição Engenheiro Halfeld percorreu o trecho de Pirapora (MG) até a foz, em Piaçabuçu (AL), com o objetivo de fazer o registro das formações naturais existentes ao longo e no entorno do rio São Francisco. Então, destacaram o canyon, informando que a altura das paredes rochosas pode chegar a 50 metros, circundando o lago formado pela represa da Usina Hidroelétrica de Xingó, reservatório que tem, em alguns pontos, 190 metros de profundidade.

Por outro lado, Roberto R. do Amaral Reis, em seu livro Paulo Afonso e o sertão baiano, afirmou que o canyon foi elaborado a partir de rochas do Pré-Cambriano fruto do trabalho continuado das águas que se movimentam agitadas. Também, informou que é formado por rochas, ora graníticas ora gnaisses, que tornaram essa paisagem especialmente bela.

Nova “vocação” do rio

Mas, o Velho Chico mudou (aliás, mudaram-no), atraindo novos olhos. À jusante da barragem de Xingó, parte do canyon transformou-se tomando a forma de um lago que logo foi atraído por empreendimentos turísticos, haja vista informação da Secretaria de Turismo de Paulo Afonso, em 2006: O parque Ecoturístico do Rio do Sal proporciona um passeio de Catamarã pelo Canyon […]. Esse trecho navegável do Canyon pode chegar a mais de 80 metros de paredões de granito, além de ter uma extensão de 37km.

Assim, foi dada ao Velho Chico uma nova tarefa que se constituiu em fonte de lucro para empresas que deveriam assumir, paralelamente a planilhas financeiras, responsabilidade socioambiental. Olhos mais atentos não precisariam de bola de cristal para saber o que estava por vir.

 

 

Por outro lado, em 2011, na dissertação de Mestrado em Gestão do Desenvolvimento Local Sustentável (UFPE), Luiz Valdélio Lins analisou o Turismo Sustentável no parque ecoturístico canyon do rio do Sal (Paulo Afonso – BA). E constatou, entre outros, os seguintes gargalos: a) inexistência de planejamento estratégico e de um plano de monitoramento para implantação do parque; b) inconsistências na parceria entre poder público e trade turístico local; c) exclusão da população local na concepção e implantação do parque; d) indefinições sobre a gestão operacional.

Como está essa joia esculpida durante séculos pela natureza?

Antes de tudo, trago mais uma informação do Professor Áb´Sáber:

O canyon de Xingó, à jusante dos grandes reservatórios regionais […] é um dos desfiladeiros mais importantes e espetaculares do Brasil. Suas paredes rochosas semidesnudas são revestidas por espécies anãs de uma caatinga arbustiva esgarçada. Uma vegetação resistente se instalou em íngremes vertentes de rochas resistentes, superficialmente dominadas por litossolos.

Portanto, foi com tristeza, mas não surpresa, que li uma denúncia feita no mês passado, pelo jornalista Mozart Luna, em seu blog Meio Ambiente & Turismo[iii]. O título da matéria é revelador da situação atual: ICMBio tenta deter destruição do Vale dos Mestres na região dos Cânions. O trecho em questão faz parte de uma Unidade de Conservação (UC) Federal – o Monumento Natural do rio São Francisco – cuja fiscalização é da responsabilidade do Instituto Chico Mendes de Conservação da Biodiversidade (ICMBio) – Ministério do Meio Ambiente.

No entanto, não é apenas fiscalização que deve ser responsabilizada, mas a gestão das atividades realizadas na UC. Quem ali desenvolve atividades turísticas tem a responsabilidade de orientar os visitantes sobre como agir no local de forma responsável e civilizada, mesmo quando longe dos olhos dos fiscais.

Relembrando
Pescador artesanal – Olho D’Água do Casado Foto: Fátima De Sá

Eu falei que não fiquei surpresa, em primeiro lugar em virtude das informações de Lins, em relação ao Parque Rio do Sal. Em adição, uma visita que fiz, em 2014, em trechos do canyon no município alagoano de Olho D´Água do Casado, para escrever um capítulo de um livro[iv] que trazia resultados de pesquisas sobre a pesca artesanal naquela área. Por exemplo, constatei que os pescadores artesanais estavam enfrentando problemas decorrentes da “opção pelo turismo” tomada pelos gestores que não levaram em consideração as comunidades tradicionais daquelas áreas.

Ainda mais, essas comunidades já haviam sido vítimas das “opções” que levaram o rio caudaloso a se transformar, em vários trechos, em lagos de águas calmas. E, nesses novos lagos, não foi alterada somente a paisagem. Por ali passaram a atuar novos atores: catamarãs e lanchas com motores potentes, deslocando-se sem qualquer preocupação com as pequenas canoas artesanais, movidas a remos e pequenos motores, que passavam ou tentavam ficar paradas para atividades de pesca. E eu não apenas vi, eu estava em uma dessas canoas, ao lado do pescador, testemunhando um pouco do que eles passam quando se aventuram a buscar a sobrevivência naquelas águas.

A ignorância e a ganância são pragas bem atuais

Como resultado, muitas das novas atividades têm trazido ameaças à sustentabilidade da área. Lembremos que quando os desastres ocorrem, os prejuízos são sempre socializados. E, quando os negócios deixam de ser lucrativos, os empreendedores se deslocam para explorar outras áreas, enquanto aí permanecerão, sem outra opção, as comunidades tradicionais daquelas áreas ribeirinhas, pois é o único espaço de que dispõem desde que ali se instalaram seus antepassados.

Inscrições “rupestres”  do século XXI em paredão do Vale dos Mestres Foto: Mozart Luna

Eu reproduzo aqui foto do artigo do Luna, que nos mostra do que é capaz a ignorância. Em paisagens tão complexas, que constituem riqueza histórica e arqueológica, construída durante séculos pela natureza, a ignorância e a estupidez são mostradas nos paredões do canyon. Daqui a alguns séculos, arqueólogos terão dificuldade de decifrar que civilização passou pelo local.

Para finalizar

É apropriado lembrar algumas informações citadas, sobre os canyons, na National Geographic[v]: Os canyons são como diários silenciosos da história de uma área ao longo de milhares ou até milhões de anos. Ao estudar as camadas de rocha expostas em uma parede de um canyon, os especialistas podem aprender sobre a mudança do clima, que tipo de organismos estavam vivos em determinados momentos, e talvez até mesmo como o canyon pode mudar no futuro. E mais: Os cânions são importantes para a paleontologia. Os fósseis costumam ser mais bem preservados em áreas secas e quentes.

Por fim, nunca é demais ressaltar que a falta de planejamento, gestão adequada e compromisso com a sustentabilidade real pode comprometer o capital ecológico de forma irreversível, com consequências irreparáveis para as gerações atuais e futuras.

[i] ÁB-SÁBER, A.N. Paisagens de exceção e canyons brasileiros. Scientific American, v.1, n.6, p. 98, nov. 2002. [Republicado em: ÁB’SÁBER, A.N. Os domínios de natureza no Brasil: potencialidades paisagísticas. São Paulo: Ateliê Ed., 2003. p. 149-151.].

[ii] ALMEIDA, A.W.B.; MARIN, R.E.A. (Coord.). Nova cartografia social dos povos e comunidades tradicionais do Brasil: pescadores e pescadoras artesanais do Cânion do rio São Francisco. Delmiro Gouveia: Casa B Design/UEA Ed., 2009.

[iii] Disponível em: http://meioambienteeturismo.blogsdagazetaweb.com/2021/02/07/icmbio-tenta-deter-destruicao-do-vale-dos-mestres-na-regiao-dos-canions/. Acesso em: 20 mar. 2021.

[iv] Disponível em: http://www.sabeh.org.br/?mbdb_book=a-pesca-artesanal-no-baixo-sa%CC%83o-francisco. Acesso em: 20 mar. 2021. [O livro está disponível para download gratuito].

[v] NATIONAL GEOGRAPHIC. Education. Canyon. Disponível em: https://www.nationalgeographic.org/encyclopedia/canyon/. Acesso em: 21 mar. 2021.

A DOENÇA DE HAFF E O CONSUMO DE PESCADO

5 de março de 2021 2:46 por Fátima de Sá

Fonte: https://commons.wikimedia.org/w/index.php?curid=408841
A notícia

Em programas de TV, no Recife, no início desta semana, foi apresentado um caso de duas irmãs que foram hospitalizadas alegando dores muito fortes no corpo, dor de cabeça e, uma delas, apresentava paralisia no corpo.  Segundo depoimento da mãe, “ninguém sabia qual era o problema delas”. A que apresentou sintomas mais graves foi para a Unidade de Terapia Intensiva.

Dois dias após a internação, uma das pacientes ouviu um médico relatando casos parecidos, registrados na Bahia, e que aquelas ocorrências teriam sido atribuídas ao consumo de Arabaiana – um peixe marinho, muito comum na costa do nordeste. Ao ouvir a conversa, a paciente lembrou que ambas haviam ingerido daquele peixe numa refeição, quatro horas antes da ocorrência dos sintomas iniciais.

A doença

A síndrome de rabdomiólise – quadro apresentado por uma delas – pode ser atribuída a diversas causas, e esta condição leva à fraqueza muscular, dores musculares e urina escura. A excreção de mioglobina é o que deixa a urina com “cor de café”, conforme consta em alguns relatos.

Diante da informação do consumo do peixe e, de posse dos resultados de exames já realizados, além dos sintomas apresentados, foi dado o diagnóstico de Doença de Haff. Para esse diagnóstico, leva-se em consideração: “quadro clínico, história epidemiológica (ingesta de peixe ou crustáceo nas 24 horas precedentes ao evento) e níveis elevados de marcadores de necrose muscular, particularmente mioglobina e CPK [creatinofosfoquinase].”[i]

História

Os primeiros casos descritos da doença ocorreram no verão de 1924, na costa do Báltico, em pessoas que viviam na parte norte de uma laguna, Königsberg Haff  [Haff = lagoa ou laguna, em alemão], e que consumiam peixes de água doce: Enguia (Anguilla anguilla), Pike (Esox spp) e outro conhecido como Bacalhau de água doce (Lota lota).  Os sintomas destacados à época foram: grave rigidez muscular, frequentemente, acompanhada de urina escura. A maioria dos pacientes se recuperou rapidamente, embora alguns vieram a óbito.

A busca por informações

Quando vi os vídeos que me enviaram, meu primeiro pensamento foi: muitas pessoas vão temer comer Arabaiana. Antes de tudo, passei a buscar informações sobre as causas dos sintomas que podem levar, se não cuidado a tempo, a sérias complicações. Não sou da área de saúde. Como engenheira de pesca, pensei imediatamente em como isto vai afetar a vida dos pescadores artesanais e da população que tem o hábito de consumir peixes na semana santa. Mais uma vez, tudo está interconectado.

No entanto, logo verifiquei que foi o consumo de algumas espécies de peixes de água doce que levou aos primeiros casos relatados. Então, a questão não era específica da Arabaiana. Não foi indicada a espécie no caso do Recife, embora, relatos dos casos que ocorreram na região metropolitana de Salvador falam de Seriola sp, conhecida como Arabaiana ou Olho-de-boi.

Igualmente, em 2018, um jornal do Ceará[ii] anunciou um caso considerado o primeiro registrado em um hospital de São Paulo, em que os pacientes haviam ingerido Arabaiana, ou Olho-de-boi como eles também conheciam, que fora adquirido em Aquiraz (município da Região Metropolitana de Fortaleza) quando lá estiveram em férias, mas haviam transportado o peixe de forma segura. Vale salientar que os três envolvidos moram em São Paulo, mas são cearenses, da mesma família, e estavam acostumados a comer esse peixe.

Primeiro surto descrito no Brasil

E constatei que, desde aquele primeiro registro no que é atualmente a cidade de Kaliningrado, foram registrados casos em vários países – Suécia, Rússia, Japão, Estados Unidos e China –, sejam provocados pela ingestão de um determinado crustáceo e/ou de peixes de água doce, estuarinas ou marinhas.

Ainda mais, em 2008, no Estado do Amazonas foram notificados os primeiros casos da doença, apresentados em forma de surto. Assim como acontece na maioria dos casos, as duas pacientes de Manaus apresentaram sintomatologia de rabdomiólise, mas, a princípio, não se identificou o fator de risco para a doença. No entanto, foi observado um ponto em comum: as duas haviam ingerido o mesmo peixe horas antes do início dos sintomas.

A partir daí, teve início uma investigação nos hospitais de Manaus, resultando na identificação de um total de 27 casos, o que ficou registrado como “a primeira descrição da doença no continente Sul Americano”[iii]. O detalhe é que todos os pacientes haviam consumido peixes de água doce comumente utilizados pela população. E os peixes foram cozidos, assados ou fritos: Pacu (Mylossoma duriventre), Tambaqui (Colossoma macropomum) e/ou Pirapitinga (Piaractus brachypomus).

Nos EUA

Em uma revisão[iv] de surtos ocorridos entre 1984-2014, nos Estados Unidos, foram relatados 26 casos, com ocorrências na primavera-verão. Constatou-se que 58% ocorreram após o consumo do peixe búfalo (Ictiobus cyprinellus), uma espécie de água doce, que foi consumido na forma cozida.  Em outros casos (n=9), o consumo foi de um crustáceo, conhecido como crayfish (lagostim, da espécie Procambarus clarkii) e de salmão do Atlântico (n=2). A maioria dos casos (n= 18) ocorreu na Califórnia e Louisiana.

Uma forte candidata à causadora dos sintomas decorrentes da ingestão de peixes marinhos, tem sido a palitoxina, já encontrada em alguns peixes. Essa toxina é um vasoconstritor intenso, considerada uma das substâncias não proteicas mais venenosas conhecidas, e que já foi isolada de um tipo de coral do gênero Palythoa. No entanto, há especulações sobre outras origens – como bactérias ou, ainda, de que seja biossintetizada por algas unicelulares e flageladas que vivem na zona bentônica.

Em todos os surtos registrados, peixes e crustáceos estavam cozidos ou assados, o que leva à certeza de que a toxina que provoca a doença é termoestável. O autor da revisão concluiu que, nos surtos citados, pode ter ocorrido “bioacumulação de uma nova miotoxina oriunda de algas de água doce e/ou salobra/salgada, similar à palitoxina”.

Em outra publicação, os autores descrevem dois casos de fraqueza muscular e rabdomiólise que ocorreram nos EUA, em 2007 e 2016, após os pacientes terem comido, respectivamente, Salmão do Atlântico e Carpa capim. No caso da Carpa, os autores disseram que, embora não haja confirmação, foi sugerido o nome de uma toxina possivelmente causadora – a cicutoxina – que seria produzida por uma planta chamada “veneno do castor” e que ocorre em áreas alagáveis. A hipótese seria de que os peixes podem consumir a toxina, que, por sua vez, pode ser liberada no organismo da pessoa que consome o peixe.

A cicutoxina também é estável ao calor e pode produzir rabdomiólise, podendo ser responsável pelos sintomas da doença de Haff. E concluem: “Mais pesquisas são necessárias para identificar a toxina. Nossos dois pacientes haviam comido o mesmo tipo de peixe antes desse incidente, indicando que o fator causal não é apenas a espécie de peixe, mas se o peixe consumiu a toxina antes de ser cozido”.

Na China

Embora os primeiros registros de surto da doença, na China, sejam de 2000, houve um grande surto ao longo do rio Yangtze, na província Anhui, entre junho e agosto de 2016. Dos 672 casos identificados, 560 (83,8%) ocorreram em apenas duas cidades (Wuhu e Ma’anshan), tendo sido registrados mais de 200 casos em um único dia. O lagostim (Procambarus clarkii),   relatado em todos os casos, foi identificado como o vetor principal. Detalhada pesquisa foi realizada, incluindo grupo controle, onde foi possível verificar que aumentaram os riscos para a doença naquelas pessoas que ingeriram o fígado do crustáceo ou maior quantidade da carne.

Os estudos mostram um padrão sazonal (verão e outono) e, embora haja registro, na China, de um surto, em 2009, provocado pela ingestão do que eles chamam Pomfret de água doce (Colossoma brachypomum), também neste caso houve associação com o consumo do lagostim.

Diversos estudos toxicológicos e análises químicas foram conduzidos em pesquisas efetuadas na China, tendo sido analisadas amostras dos animais, da água e do solo dos locais onde o pescado foi capturado, mas, os resultados foram negativos ou abaixo do limite de toxicidade. Os animais envolvidos nos casos estudados têm em comum hábito alimentar onívoro e se alimentam no fundo dos ambientes em que vivem, sendo, portanto, potenciais acumuladores de toxinas do ambiente. Entretanto, sugestões de que a etiologia possa incluir arsênico ou palitoxina permanecem sem confirmação, afirmam.

Necessidade de estudos

Enquanto não forem envidados esforços para esclarecer as causas da doença, continuaremos nos surpreendendo com os surtos e com as desinformações decorrentes. Por exemplo, a informação de que o peixe ingerido pode não ter sido bem cozido, ou ter sido mal manuseado, ou ter vindo de ambientes contaminados. Todas essas observações são válidas para o consumo de qualquer alimento. No entanto, vale ressaltar que, nos casos registrados da doença de Haff, a síndrome de rabdomiólise não foi desencadeada por infecção.

 E agora?

Contudo, estamos aqui, 82 anos depois da recomendação de Z.J. Bruno, constatando que as informações sobre o que causa a doença, até agora, são suposições. Não há casos de endemismo da doença em qualquer área, nem de uma determinada espécie de peixe eleita como a causadora dos sintomas. Estudos controlados comprovaram que não é a carne do pescado que provoca os sintomas, mas sim, alguma substância do ambiente, que ficou acumulada nos músculos do animal que serviu de alimento para humanos.

Por outro lado, considerando que peixes, crustáceos e moluscos são componentes da dieta de muitas pessoas, notadamente das populações humanas que vivem da pesca artesanal, são necessários esforços e recursos para estes estudos.

Recomendação

Havendo sintomas ou suspeitas da doença de Haff, as recomendações médicas são para que as pessoas  entrem em contato com os Centros de Controle e Prevenção de Doenças e, se possível, consigam restos dos peixes consumidos ou daqueles ainda armazenados, que podem ser enviados para análise laboratorial.

[i] MARQUES, B.A.; COSTA, G.A.; BENTES, A.A. Mialgia aguda epidêmica. Boletim Científico da Sociedade Mineira de Pediatria, v. 4, n. 46, maio 2017.

[ii] https://diariodonordeste.verdesmares.com.br/metro/doenca-rara-tem-novos-casos-1.2009199

[iii] Disponível em: https://www.researchgate.net/publication/41166698_Outbreak_of_Haff_Disease_in_the_Brazilian_Amazon. Acesso em: 24 fev 2021.

[iv] DIAZ, James. Don´t be half-educated about Haff disease in Louisiana.  J La State Med. Soc., v. 167, n.1, p. 6-10, 2015.

UM OLHAR PARA AS LAGOAS E SEUS CANAIS

10 de fevereiro de 2021 8:19 por Fátima de Sá

Canal da Massaguera
Lagoas ou Lagunas?

Lembro de uma definição que aprendemos em aulas de geografia, no curso primário: LAGOA é uma porção de água cercada de terra por todos os lados. No entanto, a maioria da população usa este nome também para designar corpos d’água que apresentam um formato parecido, mas que não são totalmente cercados de terra por todos os lados. Este é o caso de vários ecossistemas costeiros que ocorrem de norte a sul do país. Por exemplo:  lagoa dos Patos (RS), Garopaba (SC), lagoas Rodrigo de Freitas e Araruama (RJ), lagoa Juparanã (ES), lagoa do Papicu (CE), lagoa Salina (PA) e, no estado de Alagoas, as lagoas Mundaú, Manguaba, Roteiro e Jiquiá.

Do ponto de vista geológico, estes corpos d’água que têm comunicação permanente, ou intermitente, com o mar são denominados LAGUNAS. No entanto, concordo com meu professor de limnologia – Francisco Esteves[i] – que deve ser mantido o termo lagoa “devido a seu caráter regional e de ampla aceitação”.

Um Mestre me disse

Revisitei a tese de doutorado do biólogo José Geraldo Wanderley Marques, alagoano de boa cepa e estudioso destas águas. Defendida em 1991, na Unicamp, após anos de pesquisa de campo, a tese é um rico trabalho intitulado Aspectos Ecológicos na Etnoictiologia dos Pescadores do Complexo Estuarino-Lagunar Mundaú-Manguaba.

Ali, ele fala de duas ecologias (a prática e a científica) que coexistem. “Uma, no seio dos espaços culturais exógenos à produção científica e tecnológica (a popular)”. “A outra (a erudita), no seio mesmo dos espaços produtores da ciência e da tecnologia.”  Tal coexistência, explica, “teorizam, cada uma à sua maneira, sobre os seres vivos e outros aspectos da natureza”. Assim, as teorias populares “manipulam a mesma matéria das teorias cientificas que lhes são correspondentes”.

As lagoas de Alagoas

Desde quando cheguei a Maceió, fui informada que o nome do Estado decorre da existência de muitas lagoas costeiras. Falaram-me de 21 lagunas. Nunca chequei o número real.

O Prof. José Geraldo destacou em sua tese: “sobressaem-se as Lagoas Mundaú e Manguaba que se interligam por uma série de canais e mantêm contato permanente com o mar através de uma ou mais vias comuns. Elas são incluídas, na verdade, em um ecocomplexo […]”, mas, “por precedência histórica – e para evitar confusão na literatura”, manteve na tese a expressão Complexo Estuarino Lagunar Mundaú-Manguaba (CELMM).

São três os principais rios formadores do CELMM: Mundaú, Paraíba do Meio e Sumaúma. Os dois primeiros nascem em Pernambuco e desaguam, respectivamente, nas lagoas Mundaú e Manguaba, “suas antigas fozes, as quais, hoje afogadas, constituem rías”, conforme informação do Professor Ivan Fernandes Lima.

Além dos rios principais e das lagoas, há vários rios menores, córregos e canais, que formam “um verdadeiro emaranhado, unindo-se uns aos outros, unindo as lagoas entre si e unindo-as à barra de contato com o mar”, informou José Geraldo.

O CELMM multiestressado

Tive, como primeiras tarefas, ao chegar a Alagoas em 1977, de coletar amostras d’água nas lagoas Mundaú e Manguaba e seus canais a fim de monitorar, entre outras, as variações de temperatura e salinidade ao longo do ano. Desde então, tenho olhado para os trabalhadores e as trabalhadoras destas águas e não entendo por qual razão os gestores os mantêm abandonados à própria sorte, vítimas da poluição e do descaso.

De fato, ao longo dos anos, as lagoas vêm sendo (des)cuidadas, transformando-se em latas de lixo, receptoras de efluentes poluidores (da indústria, do agronegócio e de residências), sendo gradativamente aterradas e assoreadas, sem qualquer ordenamento dos seus espaços.

Já em 1991, o CELMM era um ecossistema poluído, como comprovam várias publicações. Assim, José Geraldo Marques, à época, “devido à sua própria complexidade e à natureza da sua degradação”, considerou-o como um “ecocomplexo multiestressado”.

Além do fato de ecossistemas estuarinos, por sua natureza, sofrerem estresse, identificava cinco grupos de estressores: 1. coleta de recursos renováveis, 2. descargas poluentes, 3. reestruturação física, 4. introdução de espécies exóticas, 5. eventos devastadores.

Além disso, listou problemas específicos: (a) desaparecimento cíclico do sururu; (b) diminuição do pescado; (c) desaparecimento de espécies de peixes; (d) mortandade de peixes; (e) assoreamento das barras; (f) assoreamento das embocaduras; (g) grande aporte de nutrientes; (h) grandes florações; (i) poluição hídrica.

O que mudou?
Vergel do Lago – lindo nome para um bairro abandonado pelas gestões municipais

Não vou repetir o que dizem publicações recentes porque seria falar mais do mesmo. Mas, me perguntei: O que foi feito para mudar este quadro descrito há 30 anos?

Em março/2020, fui atraída pelo tema de uma audiência pública que haveria na Câmara Municipal de Maceió, convocada por um dos vereadores: Lagoa Mundaú e Orla Lagunar. Ouvi a apresentação da representante do Instituto para o Desenvolvimento das Alagoas (http://institutoideal.org.br) que (eu soube ali) é fundadora do Movimento dos Povos das Lagoas. Percebi que o pessoal envolvido já mapeou  amplo leque de problemas, e tem uma lista de possíveis soluções, inclusive com objetivos definidos e metas traçadas[ii].

Contudo, percebi que os estressores não só continuam a ocorrer como aumentaram de intensidade, além de outros que se somaram aos tradicionais.

Portanto, estresse é o que não falta ao Ecocomplexo. As cargas poluidoras aumentaram. Os desmatamentos persistem e, não por acaso, o assoreamento dos corpos d’água. Efluentes industriais e do agronegócio continuam sendo lançados. Apenas um pequeno percentual das moradias situadas ao longo dos rios, riachos e lagoas, é atendida com serviços de  saneamento básico. Em consequência, há lançamento de esgotos sem tratamento e acúmulo de resíduos sólidos. Cresceram as áreas de favelização, principalmente, diante do quadro de desemprego e de aumento da pobreza no país. Por fim, os gestores públicos nunca dão às orlas lagunares a mesma atenção da orla marítima.

E, mais um fator de estresse tem contribuído para o quadro de desalento: a ocupação de espaços para construção de condomínios ou de moradias da classe média e alta, com a expulsão crescente das comunidades tradicionalmente instaladas nessas áreas.

Como ter esperança de mudança?

No entanto, para a gestão não ser de “faz-de-conta” há que se considerar as bacias hidrográficas formadoras do CELMM e a gestão conjunta dos problemas, envolvendo as comunidades humanas e os gestores municipais e estaduais (de Pernambuco e Alagoas).

Portanto, soluções pontuais serão apenas enganação de campanhas eleitoreiras que ocorrem periodicamente. Em conclusão, a história continua a ser reproduzida como há décadas, aumentando as vulnerabilidades nas áreas de conflitos, haja vista o testemunho, há 102 anos, de outro alagoano ilustre:

“A natureza excelsa em formosa eclosão.

Os homens na miséria, apatia, orfandade,

O mangal em progresso, a vida-estagnação,

O lavrador sem pão, sem terra e liberdade.”

[Esta é uma das estrofes de: Dos canais à Lagoa do Sul – poema de Octávio Brandão, escrito no dia 27/01/1919, “… no mato da Lagoa Manguaba”].

[i] Francisco de Assis Esteves é autor do livro Fundamentos de Limnologia. 1 ed. Rio de Janeiro: Interciência: FINEP, 1988.

[ii] Visite a página do IDEAL no Facebook [https://www.facebook.com/InstitutoIdealAL] e veja como colaborar.

 

TUDO ESTÁ INTERCONECTADO

2 de janeiro de 2021 1:43 por Fátima de Sá

Perplexidade

Em julho de 2020, o diretor da Organização Mundial da Saúde (OMS) perguntou, perplexo: “Por que é tão difícil para humanos se unirem para lutar contra o inimigo?” E alertava que a COVID-19 continuava fora de controle, necessitando de união para enfrentar a pandemia.

A pandemia continua

Como resultado, estamos diante de um novo ano – 2021, sabendo que ainda não acabou! Pois, a pandemia não acaba por decreto, por decisão governamental, porque decidiram em gabinetes ou porque algum governante acordou um dia e determinou que a Covid-19 está no “finzinho”. E, o vírus não está nem aí para eles. Segue sua “rotina” desde que pulou para um humano e vem seguindo percursos que não se sabe onde nem quando vai parar.

A dor e a esperança

Enquanto isso, revisito Camus. E leio, no livro A Peste: “Mas, as famílias que se esquivaram mais à alegria geral foram, sem dúvida, as que nesse mesmo momento tinham um doente se debatendo contra a peste num hospital e que, nas casas de quarentena ou em suas próprias casas, esperavam que o flagelo acabasse verdadeiramente com eles como tinha acabado com outros. Essas concebiam, é claro, a esperança, mas faziam dela uma provisão que guardavam de reserva e proibiam-se de se servir dela antes de terem realmente esse direito”.

Pausa para a eleição

Entretanto, decidiram, alguns “iluminados”, que poderia haver eleição, mas esqueceram de combinar com o SARS-CoV-2, o vírus.  Assim, ocorreram aglomerações em todas as cidades do país e, no dia seguinte à votação, “surpresa”, houve quem anunciasse que havia chegado a segunda onda. Contudo, para serem honestos, deveriam ter dito que a primeira nem havia acabado. E estamos vivenciando aquela situação de “tudo junto e misturado”, e segunda ou a continuação da primeira, o real é que o coronavírus – causador da Covid-19 – continua entre nós e causando muitas mortes.

Pegada ecológica?

Para clarificar, escuto Ailton Krenak[i] nos lembrando que “cada movimento que um de nós faz, todos fazemos. Foi-se a ideia de que cada um deixa sua pegada individual no mundo; quando eu piso no chão, não é o meu rastro que fica, é o nosso. E é o rastro de uma humanidade desorientada, pisando fundo”. É óbvio que não se pode perder de vista que estamos todos conectados numa interdependência, no planeta Terra, fazendo com que cada um seja responsável pelo que acontece ao outro.

Altruísmo e Compaixão

Por sua vez, o Dalai Lama, ao falar sobre compaixão global, em um livro que foi publicado há duas décadas[ii], trouxe reflexões que são bem atuais: 1. “De país a país e de continente a continente, o mundo está interconectado de modo inextrincável; 2. “Além da infinidade de crises sociais e políticas, o mundo também está enfrentando um ciclo cada vez mais intenso de calamidades naturais; 3. “[…] a questão da proteção ambiental é, no final das contas, a questão de nossa própria sobrevivência neste planeta”; 4. “Em última instância, a humanidade é só uma, e esse pequeno planeta é nossa única casa. Se quisermos proteger essa nossa casa, cada um de nós precisa experimentar um sentimento intenso de altruísmo e compaixão universal”.

Precisamos de honestidade

Por outro lado, essa nossa casa é objeto do que ficou conhecido como a hipótese de Gaia. Para explicar parte do quebra cabeça na elaboração da hipótese, o químico James Lovelock contou com a preciosa colaboração da bióloga Lynn Margulis e seu conhecimento sobre simbiose. E MARGULIS[iii] nos falou que a Terra, “no sentido biológico, possui um corpo sustentado por processos fisiológicos complexos. A vida é um fenômeno em nível planetário e a superfície da Terra está viva há pelo menos 3.000 milhões de anos”.  Em outras palavras, a espécie Homo sapiens chegou aqui muito tempo depois. Consequentemente, Margulis alertou: “Precisamos de honestidade. Precisamos nos libertar de nossa arrogância específica da espécie. Não existe evidência de que somos ‘escolhidos’, a espécie única para a qual todas as outras foram feitas. Nem somos os mais importantes porque somos tão numerosos, poderosos e perigosos[…] precisamos nos proteger de nós mesmos”.

É preciso estar atento sempre

Diante desse alerta, volto à Camus (A Peste), cuja leitura me foi muito útil para conviver com os medos iniciais da pandemia. Ali, bem no final, há a lembrança de que não dá para se descuidar nunca, mesmo depois da vacina:

“Na verdade, ao ouvir os gritos de alegria que vinham da cidade, Rieux lembrava-se de que essa alegria estava sempre ameaçada. Porque ele sabia o que essa multidão eufórica ignorava e se pode ler nos livros: o bacilo da peste não morre nem desaparece nunca, pode ficar dezenas de anos adormecido nos móveis e na roupa, espera pacientemente nos quartos, nos porões, nos baús, nos lenços e na papelada. E sabia, também, que viria o dia em que, para desgraça e ensinamento dos homens, a peste acordaria os seus ratos e os mandaria morrer numa cidade feliz.”

O que pensar?

Mas, para nossa felicidade temporária, os poetas nos fazem esperançar. E Cora Coralina deixou estes versos: “Creio numa força imanente / que vai ligando a família humana / numa corrente luminosa de fraternidade universal”.

Será?

Em conclusão, tenho que concordar com Krenak: “Quando pensamos na possibilidade de um tempo além deste, estamos sonhando com um mundo onde nós, humanos, teremos que estar reconfigurados para podermos circular”.

[i] KRENAK, Ailton.  A vida não é útil. São Paulo: Companhia das Letras, 2020. p. 96.

[ii] DALAI LAMA. A vida de compaixão. Trad. Fernanda Abreu. 2 ed. Rio de Janeiro: Bertrand Russel, 2002. (Título original: The compassionate life, 2001).

[iii] MARGULIS, Lynn. Symbiotc planet: a new look at Evolution. Amherst, Massachusetts, 1998.

O DIA MUNDIAL DA PESCA

21 de novembro de 2020 6:09 por Fátima de Sá

 

Pescador na Várzea da Marituba

 

 

 

 

 

 

Dia Mundial da Pesca

O Dia Mundial da Pesca foi instituído em 1998 como uma forma de “celebrar o que para muitos não é apenas uma profissão, mas um modo de vida”. Assim,  neste dia são discutidas formas de aumentar  a consciência global sobre a necessidade de gerenciar os ecossistemas aquáticos de forma sustentável. Mas, também deve-se destacar a importância social, econômica e cultural das atividades pesqueiras.

De acordo com a Organização das Nações Unidas para a Alimentação e Agricultura (FAO[i]), mais de um terço dos estoques globais são pescados de forma abusiva. Isto prejudica não apenas os estoques pesqueiros, mas aqueles profissionais que atuam historicamente na área – os pescadores artesanais.

Pescadores artesanais tornam-se marujos

Acima de tudo, abusiva mesmo é a forma como foram e são tratados os pescadores artesanais no Brasil. Primeiramente, voltemos o olhar para meados do século XIX, pois foi em 1846 que houve a primeira regulamentação da atividade pesqueira, com a criação de Distritos e Capatazias de Pesca, quando teve início o recrutamento de pescadores para a Marinha de Guerra. Mas, somente em 1897, o Governo Federal iniciou a campanha de nacionalização da pesca.

Não por acaso, grande parte dos marujos, incluindo os que participaram da Revolta da Chibata, era proveniente de comunidades pesqueiras. E a razão está explicitada no site da CNPA: […] pois ninguém melhor que os pescadores conhecem os “segredos” de rios e mares. Os conhecimentos, adquiridos e sistematizados durante décadas, eram de interesse da Marinha. Eles detêm um mapa mental sobre a geografia do lugar, conhecem rios, furos, canais, atalhos, lugares rasos e fundos que eram de interesse do Estado. O lema adotado pela Marinha para a fundação das colônias foi: “Pátria e Dever” (CNPA, 2019[ii]).

Organização dos trabalhadores da Pesca

Como um resultado, coube a um Comandante da Marinha a tarefa de organizar os pescadores do Brasil. E, em 1920, foi criada a Confederação dos Pescadores do Brasil. Entretanto, o Estado utilizou uma estratégia para a “conquista da confiança dos pescadores”: […] serviços gratuitos em embarcações, doou redes, ofereceu serviços de saúde, além de ter criado algumas escolas para os filhos dos pescadores, denominadas de Escoteiros do Mar, com finalidade de militarização e treinamento para os jovens.

Por outro lado, mesmo reconhecendo as razões – acima citadas – que levaram ao recrutamento dos pescadores, a Marinha considerava que “as relações instituídas entre pescadores e Estado se caracterizavam pelo paternalismo e assistencialismo”. Ou seja, interessava ao Estado apossar-se dos conhecimentos dos pescadores, adquiridos por esforços próprios e repassados de geração a geração, mas a contrapartida foi considerada como benefícios “assistencialistas”. A via de mão dupla é totalmente ignorada porque os dominadores sempre dão a sua versão de “bonzinhos”. Da mesma forma, vale relembrar o ditado africano: Até que os leões tenham seus próprios historiadores, as histórias de caçadas continuarão glorificando o caçador.

Imposições do Estado

Consequentemente, desde quando os pescadores foram submetidos aos poderes do Estado, passaram a ser administrados por portarias criadas no Ministério da Marinha e depois pelo Ministério da Agricultura, sem qualquer participação de representantes da categoria. E as eleições tinham que ser homologadas pelo presidente da Confederação de Pescadores, que não era um pescador. De igual modo, não eram pescadores os Presidentes das Federações Estaduais de Pescadores, nem os presidentes das Colônias de Pescadores. E os eleitos eram nomeados pelo Ministério a que estivessem submetidos na ocasião [Marinha ou Agricultura].

A Constituição Cidadã
Pescador no Complexo Estuarino Lagunar Mundaú-Manguaba

Somente em 1985, teve início um movimento que levou ao reconhecimento de direitos para a categoria, incluindo assumir as representações dos pescadores. Naquele ano, a Confederação Nacional dos Pescadores orientou as Federações Estaduais a realizar assembleias e eleger delegados que viriam a compor o Movimento Constituinte da Pesca, a fim de apresentar propostas aos parlamentares, reivindicando benefícios para a categoria.

Acima de tudo, na história recente do movimento dos pescadores, a Constituinte da Pesca (1988) “pode ser considerado um marco que deu visibilidade à categoria e alavancou os processos recentes da organização de pescadores”, afirmou Eduardo Schiavone Cardoso, em um trabalho intitulado Pescadores: geografia e movimentos sociais, apresentado no 10º Encontro de Geógrafos da América Latina, em 2005.

Os problemas ganham novas caras

No entanto, os problemas relacionados à categoria estão longe de terem sido resolvidos. Apesar dos poucos avanços conquistados (nos governos Lula e Dilma Roussef), a dívida social continua, principalmente agravada por problemas ambientais e pelo jogo adotado em diferentes governos que, antes de decidirem qual ministério se responsabiliza pela administração da pesca no Brasil, não se preocupam em ouvir a categoria, mas atendem às exigências das negociações dos partidos de plantão.

Territórios Pesqueiros e o Grito da Pesca
Pescador na Lagoa Manguaba – Marechal Deodoro

Portanto, “a luta tem que continuar” e se aprofundar cada vez mais diante dos “novos” tempos. Por isto, um Projeto de Lei de Iniciativa Popular propõe a regulamentação dos Territórios Pesqueiros no Brasil. O Grito da Pesca Artesanal denuncia as mais diferentes ameaças e ataques aos seus territórios e sua vida (CPP, 2019[iii]).

Em conclusão, ouçamos reflexões do Grito da Pesca, em atividade no Congresso Nacional, no ano passado: Hoje, passados mais de cem anos, pescadores e pescadoras continuam sendo desrespeitados […].  As chibatadas, hoje, aparecem em forma de suspensão de benefícios, de direitos trabalhistas e sociais, da negação da identidade da pescadora e do pescador artesanal, e o ataque às demandas desses profissionais, exemplificadas pelos danos socioambientais do óleo nas praias do nordeste e as queimadas da Amazônia. (CPT, 2020[iv]).

 

 

 

 

[i] FAO. Food and Agriculture Organization of the United Nations

[ii] CNPA. CONFEDERAÇÃO NACIONAL DOS PESCADORES E AQUICULTORES.

[iii] CPP. CONSELHO PASTORAL DOS PESCADORES. Disponível em:  http://www.cppnacional.org.br/noticia/come%C3%A7a-o-grito-da-pesca-2019-territ%C3%B3rio-pesqueiro-biodiversidade-cultura-e-soberania. Acesso em: 21 nov. 2020.

[iv] CPT. COMISSÃO PASTORAL DA TERRA. Movimento dos Pescadores e Pescadoras Artesanais lança campanha pelo Território Tradicional Pesqueiro em Brasília.

OPARÁ, o Velho Chico e eu

5 de outubro de 2020 3:55 por Fátima de Sá

Rio-Mar

Os moradores que habitavam estas terras antes de 1500, o chamavam de OPARÁ = Rio-Mar. Mas, num dia 4 de outubro, quando os “colonizadores” alcançaram este Rio-Mar, deram-lhe o nome de rio São Francisco por ser este o dia em que se comemora o santo católico, São Francisco de Assis.

Minha história começa

Minha relação com o Opará começa na minha infância por ter nascido no sertão pernambucano, numa cidade – Tacaratu – que ficava a algumas léguas (assim se mediam as distâncias por lá naquele tempo) desse rio. Ele escoava lindamente onde foi iniciada Petrolândia que, agora, por causa das alterações sofridas com a construção de uma hidroelétrica, tornou-se mais próxima de Tacaratu. Numa linha reta, a distância entre as duas cidades é de 15km, ou seja, 2,5 léguas.

Petrolândia

Em grande parte da minha infância, eu pude ver o rio São Francisco todos os dias. Minhas lembranças daqueles anos são da velha Petrolândia.

O cais mandado construir por D. Pedro II quando lá esteve em 1877; a Estação de trem de onde partiam lentamente os vagões que iam até Piranhas (uma cidade que ficava à margem do rio, lá longe em outro estado), e a ferrovia que também foi construída por ordem do imperador na mesma ocasião. [Não por acaso, mudaram o nome da cidade em homenagem ao tal].

E a igreja de São Francisco de Assis? Lá recebi minha primeira comunhão quando eu já tinha 10 anos de idade. Uma imagem que nunca saiu da minha memória: homens descendo a rua em direção ao mercado publico, com enormes surubins ou dourados capturados na cachoeira de Itaparica. Os peixes eram tão grandes e pesados que um homem levava apenas um exemplar em suas costas. Eles iam para o mercado municipal para comercializá-los, e as famílias iam comprar sua porção para a peixada fresquinha.

O Velho Chico escoando em frente a Piranhas – AL. Foto: Fátima de Sá
E o rio vira lago

Todas as testemunhas materiais destas minhas lembranças foram inundadas, afogadas nas águas do Velho Chico por decisão daqueles que viram ali a forma de conseguir energia elétrica das forças das águas com a construção da hidroelétrica. Agora, só enxergo um grande lago que aumenta o calor devido à evaporação do grande espelho d´água, de um azul brilhante, mas sem a força da correnteza. E, na minha opinião, a nova cidade não tem o encanto da velha por onde caminhei, inclusive indo ao Grupo Escolar Delmiro Gouveia, durante três anos da década de 60.

O rio no município de Petrolândia. Foto: Fátima de Sá

 

Riachos cantados

Por outro lado, morando em Floresta (desde o ano do início da ditadura militar), deparei-me com o sertão seco. As águas salobras, vindas do cristalino, era o que usávamos para várias atividades. A água de beber vinha do rio São Francisco que estava distante. Não era água encanada. Daí a dificuldade de acesso ao precioso líquido.

Mas, por ali passava um riacho que, durante parte do ano, era seco. No entanto, na época das chuvas fortes, inundava as ruas da cidade. Era o rio Pajeú.

E, para chegarmos até a fazenda onde meu pai foi trabalhar e morava a minha mãe com os filhos menores, atravessávamos o riacho do Navio, que podia estar seco ou, muitas vezes, até impedia a passagem dos caminhões. Aí entendi porque a cidade era conhecida como Floresta do Navio. Também, tinha um significado especial ouvir a música de Zé Dantas e Luiz Gonzaga: Riacho do Navio corre pro Pajeú, o rio Pajeú vai despejar no São Francisco, e o rio São Francisco vai bater no meio do mar.

O rio muda

E as águas do rio mudam, não só de volume, mas de cor durante o ano. Naquela época, comecei a enxergar o rio em duas versões. No tempo do rio “seco”, as crianças e jovens tomávamos banho em suas águas – claras e caudalosas que se deslocavam na calha principal – enquanto as mulheres lavavam roupa em pedras na beira do rio. Roupas que eram colocadas a “quarar” em lajedos.

O entardecer na barranca do rio era uma terapia para a adolescente que costumava ver o pôr-do-sol vendo o rio passar caudaloso, mas sereno.

Entretanto, chegava o tempo de as águas do rio aumentarem de volume e mudarem para uma cor barrenta. E se espalhavam nas laterais formando lagoas nos trechos mais baixos, árvores ficavam cobertas de água e os filtros de pedra, usados em casa, juntavam muito barro até que a água pudesse ser utilizada para bebermos.

O canyon
Canyon do rio São Francisco, entre Alagoas e Bahia. Foto: Fátima de Sá

Na conclusão do curso ginasial, em 1968, a nossa turma ganhou um passeio a Paulo Afonso. Em cima de uma caminhonete, fomos conhecer a usina hidroelétrica, além da primeira idealizada por Delmiro Gouveia, e a ponte metálica sobre o canyon – onde o rio se espremia entre paredões de pedra. Até hoje, me encanto ao ver o espetáculo que é o canyon. Sobre ele, o Prof. Ab´Sáber descreveu: […] o rio São Francisco talhou rochas graníticas em plena área dos sertões secos, na tríplice fronteira da Bahia, Alagoas e Sergipe.

O Baixo São Francisco

No final dos anos 70, certamente seguindo a sina cigana do meu pai, vim trabalhar em Maceió. Assim, pude reencontrar o Velho Chico passando por Penedo. Diferente porque mais largo, mas lá estava o meu querido rio. Percorri uma parte do seu percurso desde o sertão até vê-lo desaguar no mar. Agora, estava no Baixo São Francisco. Depois, avistei-o a partir de outras cidades alagoanas e sergipanas.

Nasci mais perto dele do que imaginava

Em 1981, em uma aula sobre Domínios Morfoclimáticos e Fitogeográficos da América do Sul, tive a alegria de ser aluna do Professor Aziz Nacib Ab´Sáber, e lhe falei onde eu havia nascido – uma cidadezinha escondida no sertão de Pernambuco. Pensando que ele não a conhecia, fui duplamente surpreendida, pois ele não só a visitara como repassou outra informação.

Assim, com um jeito seu de ficar com os olhos meio fechados, como a se transportar para o lugar, falou: lá, em muitos lugares é fácil furar uma cacimba e a água jorrar. Isso eu sempre ouvi os mais velhos falarem e conhecíamos muitas cacimbas ou “ocos” que até levavam o nome do dono da terra. Isto, me ensinou o professor, deve-se ao fato de alguns riachos passarem de forma subterrânea e irem aflorar mais adiante, tornando-se afluentes do São Francisco.

As várzeas

No início dos anos 1990, visitei Igreja Nova, Piaçabuçu e Neópolis. Tecnocratas haviam feito intervenções que alteraram a produção de arroz e a pesca na região. A Várzea da Marituba, como o próprio nome indicava, era uma área alagável situada entre os municípios de Penedo, Piaçabuçu e Feliz Deserto. Os tecnocratas queriam fazer ali o mesmo que nas outras várzeas.

Havia um RIMA (Relatório de Impacto Ambiental) favorável. E o Prof. José Geraldo Marques, com quem muito aprendi, reuniu uma equipe para fazermos o “Contra-Rima dos Deserdados”. Analisei a parte referente à pesca na região. E constatei algo que o saudoso Sirkis[ii] havia dito à época: É relativamente raro o RIMA não rimar com quem paga.

Outros moradores e amantes do rio

Graças a este trabalho com o Prof. José Geraldo, participei da Oficina do São Francisco, promovido pela OXPHAM, em 1991. Lá, discutimos várias questões que envolviam a vida do povo ribeirinho, e  pude conhecer pessoas que atuavam em outras partes do Rio-Mar. Um deles, Adriano Martins, compôs o grupo  que fez uma peregrinação de 1 ano (4/10/1992 a 4/10/1993) desde a nascente até a foz do São Francisco. Ele continua a atuar na defesa do Velho Chico, mesmo que não resida mais em sua barranca. E, recorrendo a um velho jargão, afirmo: você até pode se afastar geograficamente do Velho Chico, mas ele nunca se afastará de suas lembranças.

Toinho Pescador

Do mesmo modo, no início dos anos 90, conheci Seu Toinho – Toinho Pescador – que nasceu, viveu e mora em Penedo. Ele é a expressão forte, no Baixo São Francisco, da luta em defesa da pesca artesanal e das águas do rio. Com ele aprendi e continuo aprendendo sobre o rio e os povos que vivem em suas barrancas ou próximo a elas, e dependem deste que é, como disse Seu Toinho, em um poema: São Francisco – o nosso Pai.

Alto São Francisco

Por fim, em 1996, para concluir o doutorado em Ecologia, fui levada ao Alto São Francisco, nas terras de Minas Gerais. Foi em Três Marias que fui buscar os peixinhos que estudei. E não foi somente o Velho Chico que reencontrei, deslumbrei-me com as veredas. Eu as via ao longe de dentro do carro que me levava de São Carlos (SP) a Três Marias. Longas fileiras de buritis indicavam que por ali passava água que ia para o rio São Francisco. E  podia vê-las de pertinho porque uma das populações de peixes que estudei habitava uma daquelas veredas.

Vereda – ali onde se vê a fileira de buritis, escoa um veio d´água.  O solo do Cerrado funciona como uma esponja absorvendo as águas de chuva que vão se infiltrando no solo e abastecem as nascentes e córregos da região durante o ano, garantindo o contínuo fornecimento de água para o rio São Francisco. Foto: Fátima de Sá

 

Certamente, após a primeira viagem, fui à biblioteca da UFSCar e li, quase devorando, Grande sertão: veredas, de Guimarães Rosa. E a leitura teve outro significado. No meu caderno de anotações, a primeira foi: O sertão é do tamanho do mundo. Agora, por aqui, o senhor já viu: Rio é só o São Francisco, o Rio do Chico. O resto pequeno é vereda. E algum ribeirão.

 

[i] CAPPIO, Frei Luiz Flávio, MARTINS, Adriano, KIRCHNER, Renato (Orgs). Rio São Francisco: uma caminhada entre vida e morte. Petrópolis (RJ): Vozes, 1995. 110p.

[ii] SIRKIS, Alfredo. Rima ou não rima. Jornal do Brasil, Rio de Janeiro, 1º Caderno, p. 9, 3 jun. 1991.

ÁREA DE PRESERVAÇÃO PERMANENTE – APP

30 de setembro de 2020 10:56 por Fátima de Sá

Esclarecendo…

Comecemos por entender o que é preservação, pois esta palavra é usada, às vezes, erradamente como sinônimo de conservação. A rigor, preservação é uma das modalidades de conservação, mas nem todo tipo de conservação é preservação.

O que é conservação?

CONSERVAÇÃO está definida no Glossário de Ecologia[i], (1) é um sistema flexível ou conjunto de diretrizes planejadas para o manejo e utilização sustentada dos recursos naturais, a um nível ótimo de rendimento e preservação da diversidade biológica; (2) Manutenção de áreas naturais preservadas, através de um conjunto de normas e critérios científicos e legais, visando sua utilização para estudos científicos; (3) Manejo dos recursos do ambiente, ar, água, solo, minerais e espécies viventes, incluindo o homem de modo a conseguir a mais alta qualidade de vida humana sustentada.

SNUC

No Brasil, o Sistema Nacional de Unidades de Conservação (SNUC) disciplina diversos tipos de Unidades de Conservação através da Lei no 9.985/2000. Em algumas é permitido o manejo dos recursos pelo homem, enquanto em outras, medidas restritivas permitem apenas pesquisas, estudos, prospecção, preservação, como é o caso das Estações Ecológicas e Parques.

Preservação

Em outras palavras,  PRESERVAÇÃO é uma das formas de conservação. A preservação ambiental diz respeito a ações que garantem a manutenção das características próprias de um ambiente e as interações entre os seus componentes. Portanto, o Preservacionismo engloba um conjunto de ideias e atitudes em favor das áreas e recursos naturais, considerados de grande valor como patrimônio ecológico.

Na prática…

A legislação ambiental brasileira tem sido considerada uma das mais avançadas do mundo. No entanto, falta fiscalização adequada devido a várias causas, sendo uma delas o número reduzido de fiscais para atuar em todo o território nacional, além dos riscos a que muitos abnegados funcionários que atuam nesta área estão expostos. Outro problema é que muitas unidades de conservação estão demarcadas apenas no papel, dependendo de diversos passos ainda para serem concretizadas de fato.

APP

Por sua vez, a Área de Preservação Permanente (APP) está definida na Lei no 12.651/2012, também conhecida como “Código Florestal”, como uma área protegida, coberta ou não por vegetação nativa, com a função ambiental de preservar os recursos hídricos, a paisagem, a estabilidade geológica e a biodiversidade, facilitar o fluxo gênico de fauna e flora, proteger o solo e assegurar o bem-estar das populações humanas.

Assim, são consideradas APP: 1. as faixas marginais de qualquer curso d´água natural perene e intermitente; 2. as áreas do entorno: a) dos lagos e lagoas naturais, b) de reservatórios d´água artificiais decorrentes de barramento ou represamento de cursos d´água naturais, c) das nascentes e dos olhos d´água perenes; 3. as encostas; 4. as restingas, como fixadoras de dunas ou estabilizadoras de mangues; 5. os manguezais; 6. as bordas dos tabuleiros ou chapadas; 7. o topo de morros, montes montanhas e serras; 8. áreas em altitude superior a 1.800 metros, qualquer que seja a vegetação; 9. as veredas. As faixas protegidas em cada uma das APP estão determinadas na Lei.

Em resumo

Para deixar claro, as APP são “ÁREAS NATURAIS INTOCÁVEIS” ou, pelo menos deveriam ser. E só poderiam ser alteradas com autorização dos órgãos ambientais que deveriam analisar se o desmatamento proposto comprovadamente atendia às “hipóteses de utilidade pública, interesse social do empreendimento ou baixo impacto ambiental”.

Supressão de APP

Quanto a isso, é importante atentar para a afirmação do Prof. Paulo Afonso Leme Machado, em seu livro Direito Ambiental Brasileiro[ii]: “A supressão de uma APP deve ser verdadeiramente uma exceção”. Ele também advertiu: “A área de preservação permanente – APP não é um favor da lei, é um ato de inteligência social e é de fácil adaptação às condições ambientais”.

E agora?

Contudo, ontem, em reunião do Conselho Nacional de Meio Ambiente (CONAMA), o Ministro do Meio Ambiente propôs e foi aprovada a revogação de duas Resoluções que garantiam a preservação de algumas importantes APP: áreas de restingas e manguezais (Res. 303/2002) e áreas no entorno de reservatórios d´água (Res. 302/2002). Além dessas, também foram revogadas as Resoluções 284/2001 (que trata do licenciamento ambiental para empreendimentos de irrigação, determinando critérios de eficiência de utilização de água e energia) e a 264/1999 (que “vetava a utilização de fornos rotativos de produção de cimento para queima, entre outros, de resíduos domiciliares brutos, resíduos de serviços de saúde e agrotóxicos”). Ficou, então, liberado o uso desses fornos para queima de resíduos de agrotóxicos e de lixo tóxico.

CONAMA

CONAMA foi criado com a finalidade de “assessorar, estudar e propor ao Conselho de Governo e demais órgãos ambientais, diretrizes e políticas governamentais para o meio ambiente e deliberar, no âmbito de suas competências, sobre normas e padrões para um ambiente ecologicamente equilibrado e essencial à sadia qualidade de vida”.

No entanto, parece que os conselheiros atuais, que votaram pelas revogações, não entenderam a importância dos ambientes que eram protegidos e decidiram, em uma reunião sem ouvir especialistas na área e sem audiências públicas, desprotegê-los, expondo-os à sanha voraz do capital. Estes não foram atos de “inteligência social”. E é justamente o CONAMA que tem, dentre as suas atribuições, “Deliberar, sob a forma de resoluções, proposições, recomendações e moções, visando ao cumprimento dos objetivos da Política Nacional de Meio Ambiente”.

A esperança por um fio

Em tempo: Ontem à noite a Justiça Federal do Rio de Janeiro, através de liminar, suspendeu as decisões proferidas na reunião 135ª do CONAMA.

Fiquemos de olho e… aguardemos os próximos passos…

 

[i] ACIESP. Academia de Ciências do Estado de São Paulo. Glossário de Ecologia. 2ed. São Paulo: ACIESP, CNPq, FINEP, FAPESP, SCTDT, 1997.

[ii] Este livro, excelente e necessário àqueles que se interessam pelo tema, está em sua 27ª edição revisada, atualizada e ampliada.

Dia Internacional para a Conservação do Manguezal

3 de agosto de 2020 10:03 por Redação

Manguezal em um canal da Massagueira – Marechal Deodoro – AL
Dia em Defesa do Mangue

No dia 26 de julho de 1998, Hayhow Daniel Nanoto, ativista micronésio do Greenpeace, estava em Muisne, no Equador, quando sofreu um ataque cardíaco e faleceu. Ele estava lá participando, junto à comunidade local, de um ato de protesto quando desmantelaram um tanque ilegal de criação de camarões.  Acima de tudo, o objetivo era restituir à região as condições para a restauração de uma floresta de mangue.

Por esta razão, a partir do ano 2000, o país passou a celebrar, em 26 de julho, o Dia da Defesa do Mangue.

Muisne – um recanto do Equador

Entretanto, por curiosidade, busquei saber mais sobre Muisne. Como resultado, descobri tratar-se de uma ilha cercada por rios e mar, com uma pequena indústria de transporte de banana. Por ser uma área relativamente remota, atrai somente visitantes que querem desfrutar de áreas afastadas das praias mais populares. Em resumo: A longa e solitária praia de palmeiras na parte de trás é sua melhor característica, e os poucos manguezais restantes na área são protegidos e merecem uma visita.

Dia Internacional para a Conservação do Manguezal

Por outro lado, em novembro de 2015, a Organização das Nações Unidas estabeleceu o dia 26 de julho como o Dia Internacional para a Conservação do Manguezal, que passou a ser comemorado a partir do ano seguinte. E a data ficou sendo lembrada a fim de renovar ações em defesa dos manguezais.

Entretanto, há alguns anos, em um evento em comemoração ao dia do manguezal, um colega professor da Universidade Federal da Bahia, o biólogo Everaldo Queiroz, interrompeu minha fala quando eu disse o que levou ao estabelecimento do dia 26 julho como o dia de comemoração em defesa do manguezal. Ele gritou: “Não, você está errada. Este dia é dedicado à Nanã Buruquê, a protetora dos manguezais”.

Nanã Buruquê – a vovó do Manguezal

De fato, Nanã, no Cadomblé e na Umbanda, é a “protetora” dos manguezais. E hoje é comemorado o seu dia! Ela é considerada a Vovó – a mais velha Orixá. Na Umbanda Sagrada, o sincretismo religioso a fez ser representada por Santana, mãe de Maria, a mãe de Jesus!

Contudo, naquela ocasião, perdi a oportunidade de esclarecer com Everaldo se havia algum documento que indicasse a escolha do dia da comemoração por ser o Dia de Nanã. E agora, quando decidi escrever esta história, não encontrei qualquer documento referente àquela defesa (até raivosa e exaltada) do meu colega, que achou absurdo eu não saber disso e ter citado o que está registrado. No entanto, recomendo um livro bem didático para quem trabalha em áreas de manguezais, e que cita Nanã em um capítulo como uma das “personagens” do manguezal. Vale a pena conferir.[i]

O que é o Manguezal

Mas, o que é exatamente o manguezal? Na minha área de trabalho, falar em Manguezal traz à memória imediatamente o nome Yara Schaffer-Novelli, docente e pesquisadora do Instituto Oceanográfico da Universidade de São Paulo. Ela trabalha e tem formado pesquisadores, há décadas, estudando e defendendo os manguezais. Um pequeno livro, lançado em 1995, que traz contribuição de diversos pesquisadores e que tem o título Manguezal: ecossistema entre a terra e o mar[ii]  continua atual e útil para o entendimento destes ecossistemas tão comuns em Alagoas. E, nessa publicação, que ela, como organizadora, considera uma monografia – para preencher a lacuna entre as “cartilhas” por demais elementares e os “trabalhos científicos” – a definição de manguezal é:  Ecossistema costeiro, de transição entre os ambientes terrestres e marinho, característico de regiões tropicais e subtropicais, sujeito ao regime das marés.

Em virtude da complexidade, a autora orienta que os manguezais devem ser estudados de forma interdisciplinar, com um enfoque holístico. Isto porque neste tipo de ecossistema há diversos compartimentos, o que não se restringe apenas a uma única formação acadêmica. Ali estão “a cobertura vegetal, a fauna associada, o sedimento, os processos hídricos, incluindo, marés, aporte da água doce pelos rios e pelas chuvas, evapotranspiração, entre outros”.  E tudo isso é fundamental para o funcionamento destes ecossistemas.

Rizophora, ou mangue vermelho
E o Mangue?

Eu quero dizer, para algumas pessoas que confundem mangue e manguezal, a diferença entre os conceitos. Mangue é a vegetação predominante no ecossistema Manguezal, e que o caracteriza. Assim é que reconhecemos o mangue vermelho ou mangue verdadeiro; siriúba – quando raspada a casca, apresenta cor amarelada; o mangue branco e o mangue-botão. Embora haja outros tipos de vegetação, o mangue fornece as principais características paisagísticas ao ambiente.

Impactos ambientais

Mas, é exatamente por estarem localizados em regiões intermediárias entre o mar e o ambiente terrestre, frequentemente associados a regiões estuarinas, que os manguezais sofrem ações deletérias de impactos ambientais provocados pelo homem. Dentre estes, destacam-se diversos tipos de poluição provocada por efluentes lançados sem qualquer tratamento, provenientes de atividades agroindustriais e esgotos domésticos gerados em aglomerados urbanos que ou não são contemplados por serviços de saneamento básico, ou o serviço é precário.

Além da poluição por esgotos, resíduos sólidos são lançados  nos cursos d’água e acabam ficando presos às raízes do mangue. Por outro lado, há desmatamentos promovidos pela ganância imobiliária, atividades turísticas, cultivo de camarão, entre outras atividades sem qualquer ordenamento e gestão. E, estamos cansados de saber que “Na briga do rochedo com o mar, quem sai perdendo é o marisco”. Dessa forma, as comunidades pesqueiras, que tradicionalmente habitam próximo aos manguezais e dependem da extração de seus recursos para a alimentação e a sobrevivência financeira, vêm perdendo território a cada ano.

Em conclusão

Eu gostaria de escrever muito mais. Mas, para finalizar por hoje, prometo que voltaremos a falar sobre os manguezais, ecossistemas altamente ameaçados! Há muito a ser dito, principalmente sobre as funções destes ecossistemas.

Desde 31/01/2014, nosso colega Everaldo Queiroz foi habitar outro plano e a ele dedico este dia de Nanã Buruquê! Saluba, Nanã Buruquê! Saluba!

[i] FREITAS, A.C. et al. Lendas, misticismo e crendices populares sobre manguezais. In: Pinheiro, M.A.A. (Org.) Educação ambiental sobre manguezais. São Vicente: UNESP, 2018. p. 144-165.

[ii] SCHAEFFER-NOVELLI, Y. (Org.) Manguezal: ecossistema entre a terra e o mar. São Paulo: Caribbean Ecological Research, 1995.