quinta-feira 23 de março de 2023

Perspectivas de desenvolvimento para o Brasil

13 de janeiro de 2023 9:01 por Reynaldo Rubem Ferreira Jr

 

www.bbc.com/portuguese/brasil-59557761 GETTY IMAGES

(*) Reynaldo Rubem Ferreira Jr (Professor da Faculdade de Economia, Administração e Contabilidade – FEAC – da UFAL).

A chegada de um novo governo sempre suscita muita especulação quanto ao sucesso ou não da política econômica. Estamos vivendo exatamente este momento no Brasil e o mercado financeiro procura descontar a valor presente suas expectativas futuras quanto ao preço dos ativos. Mas é preciso distinguir a incerteza oriunda de eventos econômicos inesperados da reação ao modelo de gestão econômica considerado não market friendly assumido pelo atual governo ao longo da campanha presidencial.

O nosso ponto aqui é que o sucesso econômico do Brasil nos próximos anos dependerá, primordialmente, da superação da narrativa mercado versus Estado com responsabilidade social. Para tanto é preciso deixar claro que o setor financeiro é uma parcela do mercado. No caso do Brasil, as atividades financeiras respondiam por 6,9% do PIB em 2020 depois de atingirem 8% em 2016, quando a selic alcançou 14%aa. Logo, a política econômica não pode ser orientada pelos interesses estritos das instituições financeiras.

Mas vamos tratar da distinção entre incerteza e reação à política econômica sinalizada pelo novo governo, colocada acima.

No tocante a precificação do futuro, o economista norte americano Paul Samuelson certa vez disse que Wall Street havia previsto dez das últimas seis recessões nos EUA. O fato dos economistas só eventualmente acertarem suas previsões está diretamente associado à economia não ser, para a frustração de muitos dos meus colegas de profissão, uma ciência exata, mas sim social e moral como considerava Keynes. Na realidade, não dá para fazer ilações macrodinâmicas a partir da agregação de decisões microeconômicas dos agentes econômicos como se estes não tivessem interesses divergentes. Isso significa dizer, em outras palavras, que não dá para desconsiderar o caráter político da política econômica, cujo sucesso está diretamente relacionado à capacidade de negociação com os diferentes segmentos da sociedade civil.

Recentemente o economista Olivier Blanchard, que está longe de ser considerado um heterodoxo, foi criticado por seus pares por afirmar que a inflação é o resultado da luta dos agentes econômicos (empresários e trabalhadores) por maior apropriação da riqueza gerada no país. Assim, reduzir um fenômeno tão complexo como a inflação à uma dimensão puramente monetária (excesso de demanda sobre a oferta) é o que tem levado o próprio Blanchard a criticar a visão do “pensamento único” macroeconômico de estabilização de preços: “um instrumento (juros), uma meta (inflação)”.

A reação do mercado financeiro à proposta do novo governo de gestão macroeconômica, a meu ver a razão primordial para a chiadeira, o ponto de discordância está na visão, dita não amigável ao mercado, que a política econômica deve coordenar os instrumentos de políticas monetária e fiscal visando dar estabilidade e sustentabilidade ao crescimento, com inclusão social e desconcentração da renda. A execução de tal política não atende aos interesses do mercado financeiro porque mexe com a estrutura de distribuição da riqueza, alterando a estrutura tributária e tornando-a menos regressiva. Também, requer juros compatíveis com o retorno dos setores produtivos.

A construção de tal sintonia fina entre os instrumentos de política macroeconômica, por sua vez, não só demanda tempo como só é possível com um arcabouço fiscal que envolva tanto o lado dos gastos (com regra crível e ajustável de controle das despesas) quanto o da receita (a partir de uma reforma tributária que possa diminuir o caráter regressivo da distribuição dos impostos no país). Do ponto de vista monetário, para que o sistema financeiro seja funcional (com os recursos fluindo da esfera financeira para a produtiva da economia) a taxa básica de juros não pode ficar acima da taxa de crescimento do PIB.

O legado da macroeconomia amigável ao mercado tem sido a drenagem de recursos dos setores produtivos mais dinâmicos, notadamente o industrial, para o setor financeiro. Ou seja, temos a maior taxa básica de juro real do mundo, de 7,5%aa, alavancando a rentabilidade dos bancos no Brasil, o que explica a presença de quatro entre os dez maiores bancos do mundo (Santander, Itaú Unibanco, Banco do Brasil e Bradesco) no ranking de rentabilidade sobre o patrimônio (ROE) de instituições com mais de US$ 100 bilhões em ativos, segundo levantamento da Economatica em dezembro de 2021. Enquanto o faturamento real da indústria brasileira, por sua vez, caiu 22,5% em relação ao seu pico em agosto de 2013, a participação da indústria de transformação no PIB passou de 15% em 2010 para 11,3% em 2021.

Os reflexos sociais de tal política econômica são pronunciadamente negativos. A taxa média de desemprego (IPEA) que era de 7,4% em 2012 atingiu 13,5% em 2021. De acordo com dados do IBGE no mesmo período, 17,9 milhões de brasileiros estavam na extrema pobreza e 62,5 milhões na pobreza. Estimativa da Organização das Nações Unidas para Alimentação e Agricultura (FAO), 61,3 milhões de pessoas no Brasil lidam com algum tipo de insegurança alimentar.

Em termos de distribuição da riqueza, segundo a BBC, “os 50% mais pobres possuem apenas 0,4% da riqueza brasileira (ativos financeiros e não financeiros, como propriedades imobiliárias) (…) Os 10% mais ricos no Brasil possuem quase 80% do patrimônio privado do país. A concentração de capital é ainda maior na faixa dos ultra-ricos, o 1% mais abastado da população, que possui, em 2021, praticamente a metade (48,9%) da riqueza nacional. Nos Estados Unidos, o 1% mais rico detém 35% da fortuna americana”.

As consequências econômicas e sociais desse quadro de exclusão não podem ser ignoradas no desenho da política de desenvolvimento para o país. Para enfrentar esse desafio, é preciso desconstruir a narrativa que a política econômica com responsabilidade social é prejudicial aos setores produtivo e financeiro. Na realidade, no tocante aos primeiros, tal política sustenta a necessidade da maior articulação entre as políticas industrial, agrícola, comercial, tecnológica e ambiental, endereçando as parcerias estratégicas entre os setores públicos e privados. Quanto aos bancos, tanto públicos como privados, é preciso resgatar a funcionalidade do sistema com foco no financiamento aos setores produtivos a taxas que permitam a rentabilização dos investimentos.

Transitar da política amigável aos interesses do mercado financeiro, adotada até então, para uma que contemple o bem-estar da maioria da sociedade não será fácil. Mas estou convencido de que as perspectivas de desenvolvimento econômico, social e ambiental para o Brasil dependerão do sucesso de tal transição e que, como diz um velho adágio popular, “não se faz omelete sem quebrar ovos”.

A questão fiscal no Brasil e o “pensamento único” macroeconômico

9 de dezembro de 2022 9:36 por Reynaldo Rubem Ferreira Jr

 

(*) Reynaldo Rubem Ferreira Jr (Professor da Faculdade de Economia, Administração e Contabilidade – FEAC – da UFAL)

Desde o resultado da eleição presidencial em 30 de outubro, o cenário fiscal brasileiro para os próximos anos tem provocado muito ruído no mercado financeiro. A bolsa tem se desvalorizado, assim como o real frente ao dólar. A principal polêmica está na retirada do teto dos gastos de R$ 198,0bi nos próximos quatro anos proposta na “PEC da transição” apresentada ao Congresso Nacional pela equipe de transição do próximo governo. Na proposta, R$ 157,0bi seriam para o pagamento de R$600,0 do Bolsa Família, mais R$ 18,0bi destinados às despesas de R$ 150,0 para as famílias (por crianças com idade de até seis anos) e R$ 23,0bi para investimentos.

O estranho é se tomar como referência um teto de gastos no qual há consenso entre boa parte dos economistas, de diferentes correntes, que deve ser revisto em virtude de sua total inviabilidade.
Isto significa que defendo ausência de regra fiscal? Não. A nossa posição nesse debate é de que é preciso ter um novo arcaboço fiscal que não só contemple uma regra bem desenhada de controle de gastos (responsabilidade fiscal), sujeita à ajustes e aprimoramentos como sugerido no artigo de Braúlio Borges e Claudio Gonçalez (Valor Econômico), como também inclusão social (responsabilidade social). Além de uma regra eficiente, eficaz e efetiva para os gastos (ou seja, que evite a prociclicalidade das despesas públicas e preserve o seu caráter contracíclico) é crucial uma reforma tributária que retire a atual regressividade na distribuição da carga tributária, que tanto penaliza a população de baixa renda assim como o setor produtivo (ou seja, que passe a taxar a renda e o patrimônio progressivamente e desonere a produção).

O nosso objetivo aqui, no entanto, é mostrar que, no debate da questão fiscal, uma parte importante da apropriação do orçamento público, a financeira, é desconsiderada e precisa ser discutida. Em outras palavras, para se buscar conciliar responsabilidade fiscal e social é imperativo que politicamente se enfrente o “pensamento único” macroeconômico (focado no orçamento primário) para que seja possível se abrir espaço para uma agenda de desenvolvimento.

A pergunta que você deve estar se fazendo neste momento é: o que vem a ser esse tal “pensamento único”? A partir dos anos 90, o debate macroeconômico em grande parte do mundo passou a ser dominado por uma espécie de “pensamento único” macroeconômico (conhecido na literatura econômica como “Novo Consenso Macroeconômico”), que está na base do famoso tripé macroeconômico. O resultado negativo deste pseudo consenso foi relegar as demais visões econômicas ao ostracismo pressupondo-se que estas careciam de fundamentação teórica e aplicação prática. As lições tiradas a partir das crises financeira de 2008 e sanitária da Covid19 explicitaram a fragilidade de tal pressuposto.

Na visão do mercado financeiro, às vezes simplificadamente chamada de mercado, o crescimento com estabilidade de preços depende, em primeira instância, de uma meta nominal de inflação e de a taxa real de juros de curto prazo ter como referência as taxas de juros estrutural e de crescimento do produto potencial da economia a longo prazo, sendo ambas variáveis não observáveis (Regime de Meta de Inflação). A austeridade fiscal é outro pilar destacado para se manter a relação dívida/PIB caíndo no tempo. Por fim, o último fundamento é o regime de câmbio flutuante (com livre entrada e saída de capitais).

Em síntese, cabe aos gestores da política macroeconômica fazer o “dever de casa”, com base no manual do mainstream macroeconômico (que deve ser aplicado à qualquer país indepentemente de sua estrutura sócio-econômica), e manter a inflação na meta, ancorando, deste modo, as expectativas inflacionárias. Assim fazendo, mesmo com o advento de choques exógenos temporários, o nivel de atividade tenderá a seu nível de pleno emprego a longo prazo. É a famosa “coincidência divina”: mantenha a inflação na meta que o livre mercado se encarregará de sustentar a economia em seu potencial de crescimento.

A narrativa do “pensamento único” macroeconômico vem sofrendo uma série de críticas, principalmente nos países desenvolvidos, a partir da crise financeira de 2008. A primeira crítica diz respeito aos Bancos Centrais (BCs) só utilizarem como único instrumento para estabilizar os preço a taxa de juros básica (no caso do Brasil, a selic), mesmo que a natureza da inflação não seja de demanda. Até o momento a maioria dos BCs tem se mostrado resiliente à essa crítica, apesar dos choques de oferta se constituirem na principal causa da inflação na maioria dos casos (notadamente os provocados pela Covid19).

Do ponto de vista fiscal, a crítica é de que o “pensamento único” macroeconômico se baseia na polêmica hipótese da “contração fiscal expansionista” cujo efeito no tempo seria a diminuição do risco país, levando à redução dos juros e ao aumento dos investimentos privados. O problema dessa hipótese é que desconsidera a importância dos multiplicadores fiscais dos gastos públicos sobre a renda da economia, cuja relevância, mais uma vez, ficou evidenciada na crise econômica global provocada pela Covid19.
Notadamente, no caso brasileiro, não há como negar que, sem as transferências fiscais para as famílias, empresas e estados, fora do teto dos gastos, a economia brasileira poderia ter retraído 8% do PIB em 2020, de acordo com o FMI. Ademais, além de neutralizar o caráter contracíclico da política fiscal, uma vez que congela os gastos reais por vinte anos, a política de austeridade fiscal brasileira desconsidera o nível de regressividade da carga tributária, do lado da receita, e uma parte extremamente relevante, como será mostrado a seguir, das despesas públicas, do lado das despesas financeiras.

Vamos aos dados.

A principal distorção provocada pelo “pensamento único” macroeconômico na economia brasileira, do nosso ponto de vista, pode ser observada no gráfico nº 1. Ou seja, apesar dos superávits primários, notadamente no governo Lula, das reformas trabalhista e da previdência no governo Temer, de 1996 a 2021 só em dois anos (2010 e 2021) a taxa de crescimento real da economia esteve acima da taxa de juros real. Não há dívida que se mantenha em uma trajetória de redução em relação ao PIB com tamanha disfunção financeira, que se mantém desde o governo FHC.
As consequências sobre a economia brasileira são taxas médias de crescimento do PIB próxima a zero e do PIB per capita negativa no período de 2011 a 2020, 0,2% e -0,6% respectivamente, a segunda década perdida desde os anos oitenta.

Os dados do gráfico n° 2 deixam claro a herança do modelo de gestão macroeconômico do “pensamento único”. Comparando-se o último ano do governo Lula com o penúltimo do Bolsonaro, observa-se que os recursos destinados à dívida pública representam a maior parcela das despesas pagas do orçamento federal executado, ou seja, 45,3% e 50,9%, respectivamente. Não só houve aumento da participação financeira no bolo, no período em análise, como se deu em detrimento dos recursos destinados aos investimentos produtivos e ao pagamento de pessoal e encargos sociais, sendo este último sempre colocado como o vilão do desequilíbrio fiscal na narrativa do mercado financeiro.

Para se ter uma ideia da apropriação por parte do setor financeiro do orçamento público, com base nos últimos dados de 2022 dos gastos totais executados, a educação, saúde, cidadania e ciência e tecnologia representam 24,9% do que foi pago com juros e encargos mais amortização da dívida. Este valor é muito semelhante ao observado em 2010 (24,7%), o que demonstra que o problema está no modelo de gestão macroeconômica do “pensamento único”, independentemente das diferenças ideológicas dos governos.

Na narrativa do mercado financeiro, o estoque da dívida é composto por uma infinidade de pequenos poupadores que adquirem títulos por meio do Tesouro Direto. De acordo com dados do Tesouro Nacional, em outubro de 2022 o estoque do Tesouro Direto alcançou um montante de R$ 101,23 bilhões, enquanto o Dívida Pública Federal atingiu R$ 4,64 trilhões. Ou seja, 2,12% representam o percentual da riqueza financeira abocanhada por uma miríade de poupadores (cerca de 2,1 milhões de investidores ativos), ficando os demais 97,8% nas mãos das instituições financeiras (28,1%), dos investidores não residentes (9,8%), fundos de previdência e de investimentos (62%).

Para concluir, é preciso ter em mente a relevância das políticas sociais em um país que, segundo o IBGE, em 2021, entre cada dez brasileiros, aproximadamente três viviam abaixo da linha da pobreza e um em condição de extrema pobreza. São 62,5 milhões vivendo em condições de exclusão social. Ante contexto tão sombrio não dá para colocar mais de 50% das despesas financeiras do governo fora da conta para se buscar combinar responsabilidade fiscal com social. Sem enfrentar a armadilha do “pensamento único” macroeconômico não há como se implementar uma agenda de desenvolvimento econômico e social com sustentabilidade ambiental. No Brasil, exceto em momentos de injeção de gastos públicos autônomos na economia, o rentismo só tem gerado “voo de galinha”.

 

A economia brasileira e do Nordeste em tempos de Covid-19: o antes, o durante e o “depois” (XIV)

19 de dezembro de 2022 5:29 por Reynaldo Rubem Ferreira Jr

Com este artigo encerro a coletânea sobre os impactos da Covid19 nas economias brasileira e do Nordeste. Tentarei mostrar neste balanço que a economia brasileira já vinha estagnada antes da pandemia e que, a partir de 2020, o nível de atividade econômica se manteve devido às expressivas transferências fiscais principalmente para as famílias, como será visto à frente.

É importante salientar, antes de apresentar os dados, que, no debate das medidas econômicas para mitigar os efeitos da pandemia sobre os setores mais vulneráveis, foi desconsiderado pela maioria dos analistas o efeito multiplicador dessas políticas sobre o emprego e a renda da economia. Geralmente o foco é na despesa e pouco se considera a receita gerada pelo gasto.

Apesar de ainda existirem divergências entre os economistas quanto aos valores destes multiplicadores, este debate já evoluiu bastante fora do Brasil. Ainda, há um relativo consenso que a consolidação fiscal em economias com insuficiência de demanda provoca recessão no curto prazo e dúvidas quanto aos seus efeitos de médio e longo prazos, a depender da taxa de juros, ritmo de crescimento do PIB e progressividade tributária. No pós-crise de 2008, o próprio FMI passou a sustentar a importância das políticas fiscais contracíclicas em razão da relevância dos multiplicadores de gastos públicos, recomendação que o Teto dos Gastos, instituído no Brasil em 2016, ignorou solenemente ao pretender congelar estes gastos, em termos reais, por vinte anos.

A dissertação de mestrado defendida na Universidade de São Paulo (USP) por Marina da Silva Sanches (2020), orientanda da professora Laura Carvalho, faz uma ampla discussão quanto ao estado da arte no tocante ao papel da política fiscal e quanto à importância dos multiplicadores fiscais. E mais, os efeitos sobre o PIB da redução dos impostos são bem menos pronunciados do que os dos aumentos dos gastos públicos. Destaca também que o investimento público é complementar e não concorrente ao privado, principalmente se houver distribuição de renda que aumenta a propensão a consumir, o que estimula o investimento privado.

Dito isto, vamos aos dados. O gráfico nº 1 deixa claro que nos anos de 2019 a 2021 os benefícios sociais, sem o Auxílio Emergencial (AE), praticamente estagnaram no Brasil, Nordeste e nos estados desta região em valores nominais. Visto que houve inflação de 4,5% de 2019 a 2020 e de 10,06% de 2020 a 2021, a perda acumulada no período das transferências sociais em termos reais foi de aproximadamente 15%.

Os dados do gráfico nº 2, por sua vez, nos permitem estimar o impacto fiscal do AE nos anos de 2020 e 2021 no Brasil, Nordeste e estados da região, que abrigam grande parcela dos pobres do Brasil. O Nordeste em 2020 respondeu por 35% do AE com R$ 134,61 bi e por 38% em 2021 com R$ 56,23 bi. No primeiro ano, o impacto foi de R$ 97,03 bi e no segundo de 17,32 bi. A queda pronunciada no impacto AE de 82% ocorreu devido a redução do montante transferido de 2020 para 2021 da ordem de 42%. A aposta do governo era de que os efeitos negativos da COVID19 sobre as famílias e empresas acabariam no final de 2020 e, por esta razão, resolveu suspender o AE e sinalizar com uma política de austeridade fiscal, o que mostrou ser um equívoco.

 

Tomando-se como referência o multiplicador para benefícios sociais estimados por Marina da Silva Sanches (2020), para o período 2014 a 2016, e usando-se os dados da tabela nº 2, é possível estimar os seguintes impactos sobre a renda para os anos de 2020 e 2021, respectivamente: Brasil de R$ 864,5bi e de R$ 157,1bi; Nordeste de R$ 281,4bi e R$ 50,2bi; Sergipe R$ 11,3bi e de R$ 2,2bi; Rio Grande do Norte de R$ 16,4bi e de R$ 3,0bi; Piauí R$ 16,8bi e de R$  2,7bi; Pernambuco  de R$ 47,5bi e de R$ 8,9bi; Paraíba de R$ 19,4bi e de R$ 3,4bi; Maranhão de R$ 34,9bi e de R$ 5,5bi; Ceará de R$ 44,7bi e de R$ 8,4bi; Bahia de R$ 74,5bi e de R$ 13,4; e Alagoas de R$ 16,0bi e de R$ 2,9bi.

Tais valores são expressivos e explicam, em grande medida, a amenização das perdas dos índices médios do volume de vendas do varejo nos estados da região Nordeste, visto que só dois estados PI e MA apresentaram índices médios na Covid19 acima do período da estagnação e só este último superou o período de recessão, como pode ser visto no gráfico nº 3. Todavia, é fato que dificilmente as médias dos dados dos anos da Covid19 estariam próximos aos dados da estagnação se não fosse o AE somado às transferências sociais, principalmente no ano de 2020.

 

Os resultados acima nos permitem concluir que a economia nordestina entra em uma trajetória de estagnação pós-recessão, em sintonia com o observado em termos de dinâmica econômica em nível nacional, antes de sermos atingidos pelo cometa Covid19, o que só fez aprofundar o platô de defasagem com o período recessivo, principalmente no setor de serviços como pode ser observado no gráfico nº 4. Assim, os resultados conjunturais positivos obtidos com o programa de Auxílio Emergencial, mesmo que provisórios, como mostrado acima, não foram suficientes para superar o caráter estagnante do atual modelo econômico brasileiro.

O fato é que continuamos armadilhados em um “voo de galinha” sustentado por uma política macroeconômica ancorada no mantra da “fadinha da confiança” fiscal, em um monetarismo que reforça o caráter disfuncional e rentista do nosso sistema bancário e em uma política cambial que tem sido usada ao longo do tempo pelo BCB como mecanismo de estabilidade de preços com pronuciados efeitos de aceleração da desindustrialização brasileira.

Para reforçar o caráter estagnante do crescimento da economia brasileira desde a recessão iniciada em 2014, levantamento recente feito pelo economista Sergio Gobetti (UOL) calcula taxa de crescimento médio de menos 0,95% de 2015 a 2018 e de 0,59% de 2019 a 2021, o que só não foi pior neste último período graças ao AE dado em 2020 e 2021.

O crescimento de 2,67% estimado pelo mercado financeiro para 2022 na economia brasileira também está associado aos seguintes fatores temporários: pacote fiscal do governo federal estimado em R$ 150,0bi (Valor Econômico); efeito da redução do ICMS nos preços da energia e combustíveis na taxa de inflação (Valor Econômico); e uso da poupança acumulada pela classe média em 2020 e 2021 associada ao relaxamento das restrições sociais impostas pela COVID19, alavacando o setor de serviços de entretenimento.

Na contramão e em nome de um pretenso risco fiscal, o BCB tem sinalizado que os juros básicos continuarão acima de dois dígitos por um bom tempo, mesmo que em um ranking de juros reais em 40 países o Brasil possua a maior taxa, com 8,2% (FSP). As estimativas de 0,5% do mercado financeiro para o crescimento da economia brasileira em 2023 sinalizam que a atual política de juros altos pode não ter a eficácia esperada para combater a inflação (visto que as deflações em julho e agosto são resultado da redução do ICMS e dos preços das commodities), mas possivelmente contribuirá para reduzir o crescimento do PIB e aumentar a dívida pública brasileira.

Visto que o atual modelo econômico é ineficaz, acreditamos que, para sair da armadilha do “voo de galinha” no pós-Covid19, a seguinte agenda de desenvolvimento precisa ser concertada politicamente ao longo dos próximos anos.

  • Superar a disfuncionalidade do mercado financeiro (rentismo X empreendedorismo) a partir da gestão de uma política de estabilidade macroeconômica (ou seja, coordenação das políticas fiscal, monetária, cambial e de rendas);
  • Definir regra fiscal que preserve os investimentos públicos em parceria com o setor privado em infraestrutura física, social (saúde, educação, saneamento, mobilidade) e tecnológica. Ou seja, separar orçamento de custeio do de capital, como proposto por Keynes;
  • Buscar outros instrumentos de estabilidade de preços (sair da armadilha dos juros básicos reais acima do crescimento do produto real) assim como adoção de metas de inflação realistas;
  • Resgatar as políticas industrial, tecnológica, agrícola, comercial e ambiental (baixo carbono) como pilares de desenvolvimento econômico e social; e
  • Implementar uma Política de Desenvolvimento Regional (com foco na inclusão social e produtiva com sustentabilidade ambiental).

Em síntese, é preciso que a sociedade entenda que nossos problemas econômicos e sociais têm raízes estruturais que precisam ser enfrentadas e que políticas macroeconômicas conjunturais de estímulos temporários são sopros de esperança no marasmo do subdesenvolvimento.

A economia brasileira em tempos de Covid-19: o antes, o durante e o “depois” (XIII)

25 de julho de 2022 3:43 por Reynaldo Rubem Ferreira Jr

Após dois anos do início da pandemia da Covid19, é importante fazermos um balanço do que herdamos e onde estamos do ponto de vista macroeconômico. Como nas duas décadas do século XXI a economia brasileira sofreu duas grandes crises (respectivamente a recessão de 2015 a 2016 e a Covid19 a partir de março de 2020, uma vez que a crise do sub-prime em 2008 e 2009 teve impacto marginal na nossa economia) tomaremos o ano de 2014, quando a economia brasileira cresceu próximo a zero, para avaliarmos onde nos encontramos, tanto em termos da economia brasileira como da nordestina.

O gráfico abaixo deixa bem claro que, a partir de 2015, tanto a economia brasileira quanto a nordestina mantiveram-se abaixo dos seus respectivos índices do PIB em 2014, com pronunciado distanciamento do ano de referência nos anos de 2015, 2016 e 2020. É importante salientar que tanto o Brasil como o Nordeste continuaram com suas economias rodando abaixo do seu dinamismo em 2014.

Tal desempenho nos leva à seguinte pergunta: qual foi o legado da gestão macroeconômica das duas grandes crises nos últimos oito anos para a economia brasileira? Para responder esta indagação, é preciso antes de mais nada definir, em linhas gerais, os contornos da política macroeconômica neste período. Em seguida, usaremos a mesma métrica adotada nos artigos anteriores neste espaço (ou seja, a partir da datação de ciclo da FGV, considerando que a recessão no Brasil durou do segundo trimestre de 2014 ao último trimestre de 2016). Este período será tomado como referência para comparar os dados das contas nacionais, tanto da ótica da demanda como da oferta, a partir de 2017 até o quarto trimestre de 2021, que engloba um período de recuperação incipiente (primeiro trimestre de 2017 a igual período de 2020) com o da Covid19 (segundo trimestre de 2020 ao quarto trimestre de 2021).

A gestão macroeconômica a partir de 2015, com exceção de 2020 (orçamento de guerra instituido pelo Congresso para fazer frente às vicissitudes da Covid19, combinado com injeção de liquidez no sistema financeiro pelo BCB), acentuou o papel da austeridade fiscal na estabilização econômica e manteve as outras duas pernas do tripé: regime de metas de inflação e disfarçada administração da taxa de câmbio. Os pressupostos macroeconômicos a partir do programa “Ponte para o Futuro” baseavam-se no fim das políticas fiscais contra-cíclicas (Teto dos Gastos), na flexibilização das leis trabalhistas, na reforma da previdência, em metas ousadas de inflação (tornando a taxa básica de juros muito sensível a choques cambiais e de commodities) e em um conjunto de reformas microeconômicas buscando aumentar a produtividade da economia.

A narrativa era que tal conjunto de reformas estabilizaria macroeconomicamente a economia brasileira, aumentaria a confiança do investidor e despertaria seu espírito animal, colocando o país em uma trajetória sustentada de crescimento. Os dados que exibiremos a seguir deixam claro que a realidade se mostrou bem diferente.

No tocante à demanda, na comparação com o período da recessão, enquanto o índice médio de consumo das famílias se encontra no mesmo patamar, o dos gastos do governo e dos investimentos estão 2,3% e 5,4% abaixo. Só a taxa média de investimento público (nas três esferas de governo mais as estatais federais) como percentual do PIB passou 3,1% na recessão para 2,3% no período posterior. O índice das exportações, que no caso brasileiro é muito influenciado pelos preços das commodities, foi o único índice acima do período de referência: 8,5%. Na contramão, o baixo dinamismo da demanda no pós-recessão puxou a renda para baixo e, consequentemente, as importações com contração de 0,5%. Os setores produtivos também apresentaram desempenhos insatisfatórios no pós-recessão, com exceção do agropecuário que se encontra, em média, 16,4% acima. A indústria está 5,5% abaixo e o setor de serviços no mesmo nível.

Assim, no pós-recessão, a economia brasileira continuou apresentando vários sinais de estagnação, além de restrições de demanda nos casos dos gastos do governo e dos investimentos (públicos e privados) e da oferta com o desempenho insatisfatório da indústria. Não é sem razão que a taxa de desemprego em nível nacional atingiu em média 8,9% de 2014 a 2016, 12,4% no triênio de 2017 a 2019 e 13,5% no biênio de 2020 e 2021.

Para complicar ainda mais esse quadro de estagnação, a taxa de inflação (IPCA, no acumulado de doze meses) segue em sua trajetória de aceleração, atingindo em abril de 2022 o patamar de 12,13% contra 11,3% de março, postergando o pico de alta esperado pelo BCB. A guerra entre Rússia e Ucrânia, assim como os lockdowns na China, têm pressionado os preços das commodities e de componentes eletrônicos, alimentado expectativas de alta da inflação e contaminado cada vez mais a taxa esperada para 2023. O mercado estima inflação para o próximo ano de 4,1% e, em 2024, de 3,2%, se distanciando do centro da meta de 3,25% e 3%, respectivamente.

A aceleração do IPCA tem levado o mercado a apostar na continuidade do ciclo de alta da selic, com a mediana das expectativas estimando a taxa básica de juros em 13,25%aa no final de 2022. A curva DI para janeiro de 2023 e 2024 projeta taxas de 13,4%aa e 13,06%, sinalizando viés de alta para a selic. A dúvida é se o BCB sancionará ou não este patamar de juros.

A continuidade do ciclo de alta da selic, por sua vez, é preocupante uma vez que esta política, mesmo com a defasagem dos efeitos na ponta para consumidores e empresas, tem se mostrado pouco eficaz para fazer frente a inflação provocada, em grande medida, por choques sucessivos de oferta, além de majorar ainda mais o serviço da dívida pública. Ademais, há a possibilidade de desaceleração, talvez até recessão, no futuro próximo na economia americana em função da manutenção de um possível ritmo mais forte de ajuste dos juros pelo Banco Central dos EUA, com efeitos negativos para a economia brasileira.

A política de alta de juros do BCB também tem elevado a taxa de juros real (descontada a inflação esperada para os próximos 12 meses) de referência para os investimentos das empresas, que passou de 1,1% em abril de 2021 para 6,7% em igual período em 2022. Em síntese, ao insistir na atual política monetária, o BCB coloca em risco o modesto crescimento esperado para este ano, algo próximo a 1% graças ao aumento dos preços das commodities e alguns estímulos fiscais, com pouca chance de conseguir atingir o centro da meta em 2023.

No caso da economia nordestina, os sinais de perda de dinamismo também podem ser observados nos índices médios de volume de serviços dos estados – com peso de aproximadamente 70% dos seus respectivos PIBs – tomando como referência o período de recessão, como pode ser observado no gráfico abaixo. No pós-recessão, todos os índices estaduais se encontram abaixo do patamar alcançado na recessão. Na média nacional, segundo o IBGE, a taxa de desemprego do Nordeste, de 14,9%, foi a mais alta no primeiro trimestre de 2022, bem acima dos 11,1% registrados em nível nacional.

O quadro de estagnação descrito acima deixa claro o imperativo da retomada dos investimentos públicos e privados (em infraestrutura física, social e tecnológica) para alavancar o crescimento da economia brasileira e, consequentemente, nordestina nas próximas décadas. A janela de oportunidade fiscal obtida pelos estados nos últimos dois anos aumentou a sua capacidade de induzir investimentos, seja com recursos próprios, seja com recursos avalizados pelo governo federal.

De acordo com o Relatório Resumido de Execução Orçamentária (RREO) para o 1º bimestre de 2022, os estados brasileiros apresentam poupança corrente em relação à RCL positiva, demonstrando autonomia para realizar investimentos com recursos próprios. No caso dos estados do Nordeste, os percentuais são: Alagoas e Bahia de 44%, Ceará de 47%, Paraíba de 43%, Pernambuco de 38%, Piauí de 42%, Maranhão de 42%, Rio Grande do Norte de 38% e Sergipe de 30%.

Em síntese, como enfatizado no artigo anterior, é preciso a percepção, nos diferentes níveis da federação, de que políticas de desenvolvimento sistemicamente bem desenhadas, a partir de alianças estratégicas entre os setores público e privado, são cruciais para fazer frente aos 17 Objetivos de Desenvolvimento Sustentável elencados pela ONU. Afinal, como diz um velho adágio popular: “Se um cavalo selado passar perto de você, suba porque pode ser que ele passe apenas uma vez”.

A economia brasileira em tempos de Covid-19: o antes, o durante e o “depois” (XII)

Começamos o ano de 2021 com a narrativa de que a economia estava em um processo de recuperação em V, a partir do segundo trimestre de V passou para raiz quadrada e agora tudo indica que estamos em recessão técnica e com a economia rodando. Segundo Ricardo Barboza e Braulio Borges (Valor Econômico de 30/12/2021), esta encontra-se “3% abaixo da (fraca) tendência de crescimento de antes da pandemia (2017-2019) e 4,4% abaixo da trajetória projetada pelo consenso de mercado (Focus) em fevereiro de 2020”.

As expectativas do mercado financeiro são de crescimento próximo a zero no quarto trimestre quando comparado ao trimestre imediatamente anterior (com ajuste sazonal). Caso se confirme tal prognóstico, a economia brasileira deverá crescer entre 4% a 4,5% em 2021 ante pronunciada queda de 3,9% em 2020.

Da perspectiva econômica de 2021, o que podemos esperar (especular) para 2022 e como os estados podem fazer a diferença?

Os sinais de enfraquecimento da demanda vão deixando cada vez mais claro o porquê da falta de dinamismo da economia brasileira e de seu recorrente voo de galinha. Ao voltar ao caráter pró-cíclico da política fiscal em 2021, diferentemente da política contra-cíclica adotada em 2020, quando o impulso fiscal positivo foi de 8% contra a perspectiva de contração em 2021 e 2022, a taxa de crescimento do consumo das famílias passa de 7,1% no terceiro trimestre de 2020 para 0,9% em igual período em 2021.

No caso dos gastos do governo e dos investimentos, as taxas passam de 3,1% e 11% para 0,8% e -0,1%, respectivamente. O mesmo ocorrendo com a absorção externa na qual exportações e importações apresentam taxas de -1,1% e – 8,6% para -9,8% e – 8,3%, respectivamente.

Esse conjunto de dados negativos refletem principalmente as altas taxas de inflação corroendo o poder de compra das famílias associado a níveis elevados da taxa de desemprego, que deve fechar o ano de 2021 no patamar de 12%.

Do ponto de vista do investimento, não há como desconsiderar os efeitos negativos do aumento da taxa livre de risco (selic) em uma economia com elevada incerteza, o que aumenta o custo de oportunidade de investimentos privados no setor real da economia. No cenário externo, aumentou a incerteza quanto aos efeitos econômicos das variantes Delta e Ômicron com potencial de impactar negativamente as economias desenvolvidas e, por tabela, as em desenvolvimento.

A combinação demanda débil com choques de oferta, por sua vez, tem reforçado a tendência de queda, na margem, no setor agropecuário, com retração de 8% (efeito seca), crescimento zero na indústria contra 14,1% em igual período no ano anterior (em função da interrupção do auxílio emergencial, dos gargalos no fornecimento de insumos nas cadeias de valor globais e da lenta retomada do setor de serviços). O setor de serviços, apesar de apresentar aumento de 1,1%, também desacelera quando comparado aos 6,2% do terceiro trimestre de 2020.

As expectativas para o crescimento da economia brasileira em 2022 têm sido persistentemente revistas para baixo com a mediana do mercado projetando taxa de 0,42%. Os mais otimistas estimam expansão de 1,8% e os mais pessimistas retração de 2,0%. O tamanho da dispersão das estimativas dá a dimensão da incerteza quanto ao comportamento da economia brasileira no próximo ano, seja no campo econômico seja no político. Em outras palavras, não dá para dizer ou cravar a priori qual será a taxa de crescimento, mas mesmo que seja próximo a 1%, como espera o Banco Central em seu último Relatório Trimestral de Inflação, não deixa de ser um cenário negativo em um contexto de estagnação econômica como vivido pelo Brasil há algum tempo.

No tocante à política monetária, a taxa de inflação (IPCA, no acumulado de doze meses) atingiu o patamar de 10,74% em novembro e aumentou o temor do Banco Central quanto ao risco de desancoragem das expectativas futuras de inflação. Ou seja, uma vez que a inflação de 2021 estourou o teto da meta de 5,25% e poderá ficar acima do definido para 2022 de 5%, o BCB quer assegurar que em 2023 e 2024 o IPCA mantenha-se no centro da meta: 3,25% e 3%, respectivamente. No último levantamento feito pela pesquisa FOCUS, 24/12/21, a mediana das expectativas do mercado financeiro projetava inflação na meta só em 2024, sinalizando que o choque de oferta combinado com mudanças nas regras de política fiscal avançava no processo de desancoragem das expectativas de inflação.

Na Ata da última reunião do Comitê de Política Monetária, o Banco Central deixa claro que em 2022 a taxa básica de juros ficará em um patamar acima de 11%: “quanto ao balanço de riscos, o Comitê ponderou que o risco de desancoragem das expectativas para prazos mais longos, derivado dos desenvolvimentos no cenário fiscal, indica que há viés altista para as projeções do seu cenário básico. Como consequência, o Copom avaliou que, considerado esse viés devido à assimetria de riscos, suas projeções se encontram acima da meta tanto para 2022 como para 2023.

Diante desse resultado, o Copom concluiu que o ciclo de aperto monetário deverá ser mais contracionista do que o utilizado no cenário básico por todo o horizonte relevante”. Isto significa que se a inflação em 2022 ficar em 5%, como hoje aposta grande parte do mercado, a taxa básica real de juros poderá atingir o patamar de 7%aa, praticamente o dobro da taxa neutra estimada atualmente por vários analistas.

A narrativa de que esse aperto da política monetária se deve ao risco fiscal não encontra respaldo do ponto de vista do déficit estrutural brasileiro. Segundo a FGV, tirando os efeitos dos cíclicos econômicos e das despesas e receitas não recorrentes, a situação fiscal brasileira é de relativo equilíbrio desde 2017, o que não justifica o nervosismo do mercado. Ademais, a inflação e o congelamento de despesas como salário do funcionalismo têm contribuído para reduzir a relação dívida/PIB. Todavia, pode-se argumentar que o risco eleitoral e a incerteza quanto à política macroeconômica a ser adotada no País a partir de 2023 têm deixado o mercado bastante apreensivo, contaminando as expectativas de inflação de longo prazo.

Ocorre que o aumento de juros não terá nenhuma eficácia quanto a este risco, como apontado por Volpon no Valor Econômico de 23/11/2021, podendo, inclusive, aumentá-lo em função dos seus efeitos negativos sobre o nível de atividade econômica e a dívida pública. O curioso é que o BCB sustenta em sua Ata que o risco fiscal tem puxado o balanço de riscos para cima, mas a sua política de juros tem sido um fator importante para o aumento do risco fiscal no tempo.

Por essa razão, forçar a mão na taxa de juros não parece ser a melhor estratégia para enfrentar os fatores que estão por trás da taxa de inflação corrente, que deve fechar 2021 próximo a 10%. Dado seu caráter temporário, a política monetária de juros altos parece pouco eficaz para fazer frente a choques dessa natureza.

Ademais, a expectativa para 2022 é de melhor desempenho do setor agropecuário e redução dos preços das commodities ambos puxando o preço dos alimentos para baixo, assim como de normalização da oferta de energia elétrica com a recomposição dos reservatórios, que foram os grandes vilões da inflação de 2021 junto com a taxa de câmbio. Em síntese, no balanço de riscos, o BCB deve ponderar que a política monetária fortemente restritiva adotada atualmente terá efeitos negativos sobre a dívida pública, assim como sobre o nível de atividade econômica em um cenário de tendência de queda da inflação propiciada pelo esgotamento dos choques de oferta.

Em meio a um contexto de tanta incerteza para 2022 gestado, como discutido acima, com a deterioração do quadro econômico em 2021, os estados podem fazer a diferença e atenuar os efeitos econômicos restritivos das políticas fiscal e monetária em nível nacional. De acordo com o Relatório Resumido de Execução Orçamentária (RREO) para o 5º bimestre de 2021, os estados brasileiros apresentam poupança corrente em relação à RCL positiva demonstrando autonomia para realizar investimentos com recursos próprios. No caso dos estados do Nordeste, os percentuais são: Alagoas de 34%, Bahia de 25%, Ceará de 24%, Paraíba de 23%, Pernambuco e Piauí de 22%, Maranhão de 19%, Rio Grande do Norte de 16% e Sergipe de 14%.

A canalização desses recursos para investimentos em infraestrutura física e social e políticas de preservação ambiental poderá, dado os efeitos multiplicadores destes gastos sobre a renda e o emprego, não só pavimentar estruturalmente a retomada das economias dos estados como contribuir para um cenário mais favorável em 2022. Para tanto, é preciso a percepção, nos diferentes níveis da federação, de que políticas de desenvolvimento sistemicamente bem desenhadas, a partir de alianças estratégicas entre os setores público e privado, são cruciais para fazer frente aos 17 Objetivos de Desenvolvimento Sustentável elencados pela ONU.

Mesmo ciente das dificuldades de concertação política para a implementação de tal agenda em nível estadual, em um contexto de políticas fiscais e monetárias restritivas praticadas pelo Ministério da Economia e Banco Central (até o momento de pouca eficácia no combate à inflação, mas bastante eficaz para levar a economia à estagnação), o espaço fiscal obtido pelas Unidades da Federação, se bem aproveitado, pode ser uma janela de oportunidade ante expectativas econômicas nada animadoras em nível nacional.

Ante a perspectiva de mares politicamente revoltos e epidemiologicamente desafiantes para 2022, deixo à reflexão o seguinte trecho do Poema “Tempo de Travessia” de Fernando Teixeira de Andrade: “É o tempo da travessia; e se não ousarmos fazê-la, teremos ficado, para sempre, à margem de nós mesmos”. Feliz Ano Novo!

Reynaldo Rubem Ferreira Jr é professor da Faculdade de Economia, Administração e Contabilidade – FEAC – da UFAL

A economia brasileira em tempos de Covid-19: o antes, o durante e o “depois” (XI)

6 de outubro de 2021 9:12 por Reynaldo Rubem Ferreira Jr

O entusiasmo do mercado quanto à dinâmica da economia brasileira em 2021 e 2022 parece ter se limitado a anualização do resultado do PIB, acima do esperado, no primeiro trimestre do ano. Como previsto em nosso último artigo neste espaço, o risco de “voo de galinha” começa a se configurar devolvendo nossa economia a sua trajetória de estagnação delineada antes da pandemia e pós recessão de 2014 a 2016. Isto ajuda a explicitar, como será mostrado adiante, a dificuldade estrutural encontrada pela região e estados do Nordeste de superar os níveis médios de produção a partir de 2014, não agravados pela Covid19 graças as políticas públicas de transferência de renda tão difamadas pelos economistas do mercado. Vamos aos dados.

No segundo trimestre de 2021, o PIB brasileiro apresentou taxa de variação negativa na margem (com ajuste sazonal) de 0,1%, abaixo da mediana do mercado que esperava crescimento de 0,4%. Estes dados revelam nítida desaceleração no nível de atividade econômica no Brasil e isto tem levado a revisões para baixo não só das expectativas de crescimento para 2021, hoje mais próxima de 5%aa (em parte devido a taxa de carregamento de 3,6%aa de 2020), como para 2022 que se aproxima de 1,56%aa e 2023 de 2,20%aa. No início do ano as estimativas eram de crescimento de 2,5%aa para os anos de 2022 e 2023.

O crescimento zero do consumo das famílias, que responde por 65% do PIB, no segundo trimestre na margem, reforça os sinais de desaceleração nos gastos puxados por taxa média de desemprego de 14,5%, queda de 11% no rendimento médio real de janeiro a julho de 2021 e taxas elevadas de endividamento em um quadro de juros crescentes. Os gastos do governo praticamente repuseram a queda de 0,8% no primeiro trimestre e os investimentos que já vinham em uma trajetória de desaceleração desde o quarto trimestre de 2020 amargaram retração de 3,6%. O menor ritmo de atividade interna associado a desvalorização do câmbio e aumento nos preços das commodities contribuiram para alavancar as exportações e reduzir as importações, com efeitos positivos sobre o saldo da balança de transações correntes.

Olhando da perspectiva da produção, o efeito seca afetou o setor agropecuário que na margem, dessazonalizado, caiu 2,8%. A indústria apresentou retração de 0,2% em virtude da falta de insumos e componentes, assim como da perda de dinamismo no setor de duráveis, comprometido pela queda do poder de compra das famílias e por seus elevados níveis de alavancagem financeira. O setor de serviço, por sua vez, cresceu 0,7% na mesma métrica impulsionado pelo avanço da vacinação e relaxamento das políticas de restrição social.

Reforçando o cenário de voo de galinha descrito nesses dados, na economia brasileira começa a se formar uma tempestade perfeita (expressão oriunda do inglês “perfect storm”) decorrente da combinação de vários fatores adversos:

1) Inflação em alta, basicamente choques de oferta pouco sensíveis a elevação dos juros. Isto coloca o Banco Central em uma posição delicada. Com a independência, o novo mandato estabelece como objetivo secundário que o BCB não pode desconsiderar a taxa de sacrifício imposta pelo nível de desemprego. Em outras palavras, no balanço de riscos o Comitê de Política Monetária (COPOM) tem que levar em consideração a taxa de inflação como também o nível de atividade econômica (emprego). O Banco Central tem reagido a tais choques de oferta sinalizando em suas Atas que irá puxar os juros para o patamar de restrição monetária buscando ancorar as expectativas no centro da meta para 2022. Alguns analistas estimam selic acima de 10% e desemprego de 14,5% no próximo ano, para que a meta de inflação de 3,5% seja cumprida pelo BCB;

2) Aumento do risco de racionamento de energia (crise hídrica) devido a maior seca dos últimos tempos com reflexos sobre a produção em geral e de alimentos;

3) Elevação dos preços das commodities, mas com possibilidade de um ciclo menor de alta em razão da desaceleração da economia chinesa;

4) Câmbio depreciado acima do seu nível estrutural, estimado pelos economistas abaixo de R$ 5,00;
5) Risco de repique na pandemia com a transmissão da variante Delta, minimizado pelo avanço da vacinação;

6) Níveis de desemprego elevados que somados ao contigente de desalentados atinge
aproximadamente vinte milhões de trabalhadores, associada à queda na renda média real;

7) Revisão para baixo do crescimento das economias desenvolvidas (China e Europa);

8) Risco de mudança da política monetária dos EUA, com reflexos negativos sobre as taxas de juros e câmbio no Brasil;

9) Risco de persistência da crise política e institucional no Brasil, gerando instabilidade econômica e social.

O mercado tem focado no risco fiscal, apesar da melhoria da relação dívida/PIB em função do aumento da inflação e do congelamento de despesas públicas (como salários dos servidores), mas tem desconsiderado os efeitos sobre o serviço da dívida da política monetária de juros altos pouco eficaz para fazer frente a choques de oferta. Todos estes fatores explicam em grande medida as expectativas de crescimento modesto para os próximos anos.

Do ponto de vista da economia do Nordeste, não há como ignorar os reflexos da formação dessa tempestade perfeita em seu dinamismo econômico, apesar da narrativa de que com o relaxamento do isolamento tudo voltará ao normal. A velha cantilena liberal que os nossos problemas são só de natureza microeconômica (melhoria do ambiente de negócios , leia-se produtividade), desconsidera a insuficiência de demanda em função da incerteza que contamina as decisões de gastos das empresas e famílias e seus reflexos sobre os investimentos, renda e emprego. Tal mantra liberal não resiste às evidências de uma economia estagnada como é o caso da brasileira.

Os dados exibidos nos gráficos abaixo demonstram que os índices médios (dessazonalizados) de produção da indústria, varejo e serviços, no caso do Nordeste, continuam no período da Covid19 abaixo dos observados no período da recessão, com exceção do varejo do Maranhão. Outro aspecto a destacar é que nos três setores em nível de Nordeste, em média, há diminuição do volume de produção desde 2014 quando tem início o processo recessivo brasileiro. Esta tendência estagnante, que se agravou com a pandemia, tem efeitos estruturais e não poderá ser revertida sem a implementação de uma política de desenvolvimento regional que contemple investimentos em infraestrutura física, social e tecnológica assim como sustentabilidade ambiental e capacidade de concertação institucional (governança).

Os reflexos da pandemia que reforçam o quadro de estagnação da região Nordeste também podem ser sentidos nas taxas de desemprego divulgadas pelo IBGE dos estados nordestinos no 2º trimestre de 2021: Maranhão de 17,2%, Piauí de 14,9%, Ceará de 15%, Rio Grande do Norte de 16,4%, Paraíba de 15,3%, Pernambuco de 21,6%, Alagoas de 18,8%, Sergipe de 19,1% e Bahia de 19,7%. É muito complicado se falar de recuperação sustentada ante taxas tão elevadas de desemprego e em meio à formação de atmosfera tão tempestuosa em termos econômicos, políticos e socias. Hoje começa a se configurar, a persistir a atual política monetária que insiste no ciclo de alta da selic mesmo com o PIB abaixo de seu potencial em aproximadamente 3,9%, não o risco de voo de galinha, que nos parece evidente, mas de recessão em 2022.

Reynaldo Rubem Ferreira Jr (Professor da Faculdade de Economia, Administração e Contabilidade – FEAC – da UFAL)

A economia brasileira em tempos de Covid-19: o antes, o durante e o “depois” (X)

26 de junho de 2021 7:17 por Reynaldo Rubem Ferreira Jr

Diferentemente do que se esperava no início do ano, a taxa de crescimento do PIB do Brasil no primeiro trimestre de 1,2%, quando comparado ao quarto trimestre de 2020, com ajuste sazonal, veio acima do que esperavam o mercado e grande parte dos empresários. Apesar da surpresa positiva, é preciso analisar este dado com certa cautela em termos de tendência. No primeiro trimestre deste ano a nossa produção interna de riqueza encontrava-se 2,9% abaixo do PIB de igual período em 2014, quando o índice deste indicador atingiu seu maior valor antes da economia entrar em recessão, o que se prolongou até o último trimestre de 2016 segundo datação realizada pela FGV.

Outro aspecto importante a destacar é que o consumo das famílias e do governo, que juntos respondem por 85% do PIB, apresentaram resultados negativos quando comparados aos alcançados em igual período em 2020 e 2014, ou seja, -1,7% e -3,6% assim como -4,9% e -6,9%, respectivamente. As exportações, que dependem em boa medida do comportamento dos preços das commodities internacionais e da taxa de câmbio, registraram crescimento nos dois períodos de 0,8% e 20,1%. As importações, por sua vez, ainda se encontram abaixo do patamar obtido nos primeiros três meses de 2014 em -2,4%, mas cresceram 7,7% em relação a 2020.

Os investimentos em Formação Bruta de Capital Físico (FBCF), apesar de ainda se encontrarem 8,5% abaixo do seu nível no primeiro trimestre em 2014, tiveram forte crescimento de 17% na comparação com 2020. Dois fatores pesaram preponderantemente para este resultado: i) recomposição do nível de estoques, que nas Contas Nacionais é contabilizado como investimento; e ii) efeito contábil das importações de plataformas da Petrobras em função da mudança do registro aduaneiro Repetro. Quanto ao aumento dos estoques, este decorreu devido ao fato da demanda encontrar-se abaixo da oferta por bens e serviços e, neste sentido, é preciso ter cautela no tocante ao resultado do PIB no primeiro trimestre de 2021, uma vez que este movimento não será observado no segundo trimestre deste ano. Estimativas realizadas por pesquisadores (Valor Econômico) apontam que o PIB neste início de ano em relação ao quarto trimestre de 2020 seria de – 1,6%, caso não tivesse ocorrido o acúmulo de estoques.

Olhando o PIB pela ótica da oferta no primeiro trimestre de 2021, o setor de agronegócio registrou crescimento pronunciado, com aumento trimestral na margem de 5,7% e de 5,2% em relação a igual período do ano anterior. Quando comparado ao primeiro trimestre de 2014, o aumento foi de 28% mostrando a pujança do setor agropecuário em grande medida correlacionado com o aumento das exportações. No tocante ao total da indústria, esta ainda não retornou ao seu nível em 2014, encontra-se 10,2% abaixo, enquanto cresceu 3% em relação ao primeiro trimestre de 2020, mas a indústria de transformação recuou 0,4% na margem. O setor de serviços, que responde por 72% do PIB, encontra-se 2,6% abaixo do alcançado em igual período em 2014, recuou 0,8% quando comparado ao mesmo trimestre de 2020 e obteve discreto crescimento de 0,4% na margem.

O que é possível concluir desse balanço conjuntural do resultado do PIB brasileiro nos primeiros três meses de 2021? A economia brasileira, não obstante o resultado satisfatório do PIB do primeiro trimestre, ainda apresenta sinais preocupantes, seja com a demanda crescendo abaixo da produção invertendo a tendência observada em 2020 proporcionada pelo auxílio emergencial, seja com a indústria e serviços, que juntos representam 92% do PIB, ainda apresentando oscilações em suas taxas de crescimento. Ademais, o nível de desemprego que junto com o contigente de desalentados chega a mais de vinte milhões de trabalhadores, também tem posto em xeque a sustentabilidade do crescimento. Outro complicador diz respeito a taxa de inflação em ascensão corroendo o poder de compra das camadas de níveis de renda mais baixa, levando o Banco Central a sinalizar com taxa básica de juros (selic) de 6,5%aa no final de 2021 e aumento do custo do crédito na ponta. Além dos riscos econômicos elencados, há os de natureza epidemiológica, em virtude do ritmo lento de vacinação, de políticas descoordenadas de isolamento social e do surgimento de novas variantes do vírus.

Em síntese: o risco de vôo de galinha é alto e isto fica claro na mediana das expectativas do mercado para o crescimento do PIB do país em 2021 e 2022, ou seja, respectivamente, de 5% (importante salientar que em grande medida, esta é beneficiada pela taxa de carregamento estatística de 3,6% importada de 2020) e 2,1%, mas com tendência declinante.
Do ponto de vista dos estados da região Nordeste, exceto para o setor de agronegócio, o quadro que já era delicado antes da COVID19 continua bastante desafiador. Comparando-se os índices médios dessazonalizados de alguns indicadores e tomando-se 2014 como ponto de partida, é possível dividir este período de sete anos em três recortes: recessão (abr/14 a dez/16); estagnação (jan/17 a fev/20) e COVID19 (mar/20 a abr/21), sendo que este último ainda encontra-se em aberto enquanto durar a pandemia.

No caso da região Nordeste, o gráfico nº 1 exibe um quadro que aponta para a perda de dinamismo em nível macroeconômico da economia nordestina, acompanhando a tendência nacional. Em média, a proxy para o PIB do Nordeste medida pelo Banco Central do Brasil (IBCR-NE) tem registrado em tempos de COVID19 índices abaixo dos observados nos períodos de recessão e estagnação, da ordem de -3,2% e -0,7%. Comportamento semelhante pode ser verificado em nível nacional com taxas de -4,3% e -2,1%, respectivamente. Apesar do otimismo do mercado e dos que sonham com recuperação em V, estes dados configuram uma trajetória preocupante quando colocada em perspectiva.

Os dados setoriais exibidos no gráfico nº 2 para o Nordeste são ainda mais preocupantes do ponto de vista estrutural, mesmo que a agregação comprometa a percepção de possíveis mudanças intrassetoriais, uma vez que a indústria e os serviços são os que tem apresentado maior perda de dinamismo nos três recortes aqui analisados. No primeiro caso, encontra-se a -10,5% em relação ao índice médio da recessão e -7,5% do período de estagnação. Enquanto serviços e varejo apresentaram médias de -27,4%, -15,7%, -7,8% e -2%, respectivamente. É pouco razoável se supor a sustentabilidade de melhorias na margem da economia nordestina ignorando-se os efeitos estruturais da trajetória desses índices médios setoriais nos últimos sete anos, mesmo sendo a COVID19 um evento inesperado.

Em nível dos estados do Nordeste, os dois setores de maior peso no PIB e geração de empregos, que são o varejista e de serviços, têm registrado tendência declinante quando comparada ao índice médio setorial observado tanto no período de recessão como de estagnação, de acordo com os gráficos nº 3 e 4. A exceção é o Maranhão no caso do setor varejista, os demais estão rodando abaixo do seu desempenho nestes dois períodos, com os estados de maior participação no PIB da região apresentando quedas pronunciadas: Ceará -13,8% e -7,7%; e Bahia -13,3% e -3,5%. A mesma dinâmica pode ser observada no setor de serviços e o quadro torna-se mais agudo no cotejo entre o vale produzido pela COVID19 e a recessão econômica. No caso de Alagoas o buraco é de – 28,3%; Bahia de – 30,5%; Ceará de – 28,2%; Maranhão de – 20,2%; Paraíba de – 28,3%; Pernambuco de – 25,3%; Piauí de – 27,5%; Rio Grande do Norte de – 28,2% e Sergipe de – 32,6%. Tal herança dá uma dimensão do desafio colocado nos pós-COVID19 para a economia desses estados e da necessidade de cautela com melhorias conjunturais.

 

Em sintonia com a dinâmica exibida anteriormente tanto para a economia do Nordeste como para a dos estados da região, a partir dos seus principais setores, as taxas de desemprego médias trimestrais nos três períodos em análise é crescente para todos os estados nordestinos, como pode ser observado no gráfico nº 5. Apesar do impulso dado pela COVID19 em virtude das políticas de distanciamento social em tais taxas a partir de março de 2020, estas vinham subindo desde a recessão iniciada em 2014. Ademais, os efeitos de histerese (períodos prolongados com as pessoas sem ocupação) sobre o mercado de trabalho não podem ser desconsiderados ao impactar negativamente a produtividade da força de trabalho, assim como os efeitos colaterais sobre a saúde das pessoas deixados pela COVID19. Estes são aspectos estruturais que tornam o processo de retomada ainda mais desafiante, apesar do entusiasmo com melhorias pontuais.

 

O risco é que pode estar se delineando um novo normal, tanto na economia brasileira como na nordestina, caracterizado por um misto de estagnação econômica com taxas elevadas de desemprego, caso não haja a adoção de políticas de desenvolvimento que rompam com tal tendência desestruturante por meio de investimentos públicos e privados em infraestrutura física, tecnológica e social. Se apegar a melhorias conjunturais de taxas na margem e ignorar um longo período de resultados insatisfatórios com efeitos estruturais pode levar ao equívoco de não se perceber a emergência do enfrentamento de tais problemas. O vôo da galinha é um bom exemplo da miragem do crescimento na margem.

 

Reynaldo Rubem Ferreira Jr (Professor da Faculdade de Economia, Administração e Contabilidade – FEAC – da UFAL)

 

 

A economia brasileira em tempos de Covid-19: o antes, o durante e o “depois” (IX)

6 de março de 2021 9:10 por Reynaldo Rubem Ferreira Jr

Os sinais neste início de ano quanto ao comportamento da economia brasileira não são nada animadores e as expectativas já começam a ser revistas para baixo. Os mais otimistas continuam apostando em crescimento de 5%, mas cada vez mais analistas econômicos começam a estimar taxas abaixo de 3%, o que, na prática, significa retração uma vez que a taxa de carregamento estatístico (carry over) de 2020 para 2021 deve ficar próxima a 3,5%. Pode parecer irônico, mas se nos quatro trimestres de 2021 o PIB brasileiro mantiver o índice do quarto trimestre de 2020 este terá se expandido, na média, 3,5% em relação a 2020 e estagnado na margem e a taxa de desemprego poderá estar acima dos 14% atuais. E tem muita gente nos meios de comunicação dizendo que será um grande negócio alcançar os 3,5% de crescimento em 2021. Pasmem, puro ilusionismo estatístico!

Apostas em taxas abaixo de 3% se justificam tanto do lado da oferta como da demanda. No primeiro caso, o recrudescimento da pandemia (segunda onda com cepas mais contagiosas) associada ao ritmo lento de vacinação poderá levar a medidas de restrição e até lockdown, afetando diretamente a produção e o mercado de trabalho. Hoje a taxa de desemprego está na casa dos 14% e pode aumentar ainda mais, principalmente se não forem adotadas medidas de preservação de empregos. No tocante a demanda, há a incerteza quanto a retomada do auxílio emergencial, tanto em relação ao valor, como cobertura (número de beneficiários) e duração; possibilidade, ainda no primeiro semestre, de início do ciclo de alta da taxa básica de juros pelo Banco Central, podendo chegar a 4% até o final do ano; e perspectiva de medidas de ajuste fiscal da ordem de 7% do PIB. Ante tal contexto, aumenta a possibilidade de recessão técnica no primeiro semestre de 2021.
Apesar da pressão de custos no curto prazo sobre o IPCA, no médio prazo, segundo pesquisa do Banco Central do Brasil (FOCUS), as expectativas de inflação estão ancoradas no centro da meta, ou seja, 3,5% em 2022 e 3,25% em 2023 e 2024. A própria taxa de câmbio vem tendo suas projeções para 2021 e 2022 ajustadas para baixo desde o início do ano, para taxas de R$ 5,00 contra R$ 5,50 atualmente, em função das expectativas favoráveis no cenário externo (leia-se pacote Biden, estímulos fiscais na zona do Euro e recuperação da economia chinesa), com rebatimentos nas exportações de comodities brasileiras. Todos esses dados sinalizam para um cenário de expectativas benignas para a inflação no horizonte relevante da política monetária, ainda mais em um contexto de hiato produto de -6,7%, de acordo com estimativa do IBRE/FGV para o terceiro trimestre de 2020. Caso o BCB sancione as expectativas do mercado e inicie o ciclo de alta da selic, como parece ser o mais provável, poderá estar se precipitando, uma vez que juros mais altos piorarão o desequilíbrio fiscal brasileiro e aumentarão o custo na ponta do crédito ao consumidor e para as empresas, dificultando, ainda mais, o processo de recuperação.

Do ponto de vista da política fiscal, os economistas do mercado financeiro e do governo sustentam a necessidade de cortes de gastos públicos expressivos no curto prazo, mesmo em uma economia estagnada como é o caso da brasileira desde 2014, por duas razões básicas, segundo eles: i) independentemente da fase do ciclo econômico que a economia se encontra (expansão ou recessão), o valor dos multiplicadores fiscais é pouco relevante; e ii) déficits fiscais não só afetam negativamente os investimentos privados (efeito crowding out) como o risco-país ao impactar a confiança dos investidores quanto à solvência da dívida pública. Esta segunda hipótese está baseada na premissa da “contração fiscal expansionista” (batizada por Krugman de “fadinha da confiança”).
Apesar de ainda existirem divergências quanto aos valores desses multiplicadores entre os economistas, este debate já evoluiu bastante fora do Brasil e há um relativo consenso que consolidação fiscal em economias com insuficiência de demanda provocam recessão no curto prazo e dúvidas quanto aos seus efeitos de médio e longo prazos, a depender da taxa de juros, ritmo de crescimento do PIB e progressividade tributária. No pós crise de 2008, o próprio FMI passou a sustentar a importância das políticas fiscais contracíclicas em razão da relevância dos multiplicadores de gastos públicos, recomendação que o Teto dos Gastos, instituído no Brasil em 2016, ignorou solenemente ao congelar estes gastos, em termos reais, por vinte anos.

A dissertação de mestrado defendida recentemente na Universidade de São Paulo (USP) por Marina da Silva Sanches (2020), orientanda da professora Laura Carvalho, faz uma ampla discussão quanto ao estado da arte no tocante ao papel da política fiscal e quanto a importância dos multiplicadores fiscais. No estudo, a autora avalia os efeitos da política fiscal no Brasil, a partir de um modelo econométrico para o período de 1997 a 2017, e apresenta os seguintes resultados: na amostra que inclui a crise a partir de 2014-2016, os multiplicadores tanto dos investimentos públicos como dos benefícios sociais são maiores, com significância estatística de 95%, em relação ao período que antecede a crise. Ou seja, 3,6 e 2,9 contra 1,42 e 1,9 (multiplicador acumulado de 15 ou 25 meses a depender da persistência). E mais, os efeitos sobre PIB da redução dos impostos são bem menos pronunciados do que os dos aumentos dos gastos públicos. Destaca também que o investimento público é complementar e não concorrente ao privado, principalmente se houver distribuição de renda que aumenta a propensão a consumir, o que estimula o investimento privado. A seguinte passagem resume bem os resultados alcançados:

“Nas estimações para toda a amostra, nossos resultados sugerem que os componentes de investimento público e de benefícios sociais possuem multiplicadores de magnitude mais elevada e com maior persistência, enquanto que pessoal, demais despesas e subsídios tem multiplicador de impacto positivo e estatisticamente significante para amostra inteira, mas não no longo prazo, captado pela função impulso-resposta acumulada(…) As funções impulso-resposta e os multiplicadores acumulados para o caso dos investimentos públicos e benefícios sociais na amostra inteira são bastante diferentes – são maiores e mais persistentes – que na amostra pré-crise”.

O nosso objetivo neste artigo não é aprofundar esta discussão, mas mostrar que a poupança acumulada pelos estados do Nordeste em 2020, como será mostrado abaixo, se canalizada para investimentos públicos e benefícios sociais poderá contribuir para a recuperação da região, dada a relevância de seus multiplicadores como estimados no estudo acima citado. As estimativas do ETENE/BNB para o crescimento do PIB do Nordeste em 2021 estão em 2,9% e contração de -7,3% em 2020. Dado que de 2014 a 2019 as economias brasileira e nordestina mantiveram-se praticamente estagnadas e sofreram retrações expressivas em 2020, em função da Covid19, é muito provável que a magnitude dos multiplicadores dos investimentos públicos e benefícios sociais tenha aumentado neste período. A própria Sanches (2020, pg.54) sugere isto ao dizer: “note-se que esses multiplicadores durante a crise podem ser ainda maiores, dado que estamos apenas considerando a diferença entre a amostra pré-crise e amostra completa”.

Os dados exibidos no gráfico nº 1 registram em percentuais as perdas das receitas consolidadas dos estados na região Nordeste, tanto real como nominal, que são significativas e poderiam ser bem mais pronunciadas não fosse a injeção de recursos do Auxílio Emergencial (AE) da ordem de R$ 95,7 bi na região (CGU), o que impactou favoravelmente nas vendas do varejo e nas receitas estaduais. Mesmo com o AE, em valores deflacionados, a retração foi de R$ 844,2 mi no Maranhão; R$ 552,4 mi no Piauí; R$ 1.734,1 mi no Ceará; R$ 540,8 mi na Paraíba; R$ 1.770,3 mi em Pernambuco; R$ 478,6 mi em Alagoas; R$ 654,2 mi em Sergipe e R$ 2.909,2 mi na Bahia.

Como explicar, a partir de resultados tão negativos, o aumento da poupança dos estados da região Nordeste, registrado no gráfico nº 2, em relação à Receita Corrente Líquida (RCL) de 2019 para 2020?

 

Em 2020, o Governo Federal transferiu R$ 78,3 bi à guisa de Auxílio Financeiro aos Estados, Municípios e Distrito Federal para compensar a perda de arrecadação destas unidades da federação provocada pela Covid19. O Nordeste, de acordo com os dados do gráfico nº 3, recebeu R$ 11,4 bi (este valor está subestimado pela falta dos dados do Rio Grande do Norte), o que permitiu um saldo positivo para todos os estados e explica, em grande medida, a poupança estadual acima referida.

Ao longo de 2020, segundo o Tesouro Nacional, a diferença entre as taxas de crescimento das receitas e despesas correntes para os estados do NE é de 3% no Maranhão; de 26% no Piauí; de 4% no Ceará; de 6% na Paraíba; de 2% em Pernambuco; de 6% em Alagoas; de 8% em Sergipe e de 5% na Bahia. O aumento da poupança pública é um indicador da autonomia para realizar investimentos com recursos próprios, segundo o Tesouro Nacional, o que representa uma janela de oportunidades para os estados contribuírem estruturalmente para a superação da crise. No último artigo sustentei que o Consórcio Nordeste pode ter um papel crucial para a implementação de uma política de desenvolvimento capaz de construir um ambiente sistemicamente competitivo para as empresas, assim como de melhoria do bem estar social.

A partir da relevância dos multiplicadores dos gastos públicos no Brasil estimados em Sanches (2020), é possível dimensionar o impacto acumulado (com persistência de 15 a 25 meses) sobre a renda, caso seja possível usar o saldo das receitas gerado em 2020 pelos estados e região Nordeste e aplicá-lo em investimentos públicos e/ou em benefícios sociais. Como as receitas reais cresceram acima das despesas, acreditamos ser razoável realizar tal exercício ao menos para explicitar a significância de seu impacto. Os resultados estão nos dados exibidos no gráfico nº 4, para o caso de todo recurso ser gasto em investimentos públicos ou em benefícios sociais. É importante destacar a dimensão relativa desses valores para os estados com menor participação no PIB da região Nordeste, em ambos os investimentos, quando comparados a Bahia, Pernambuco e Ceará.

Em síntese, em momentos de crise aguda como a que estamos vivendo atualmente no Brasil, que combina problemas de natureza sanitária com estagnação econômica, os resultados acima deixam claro que é crucial a priorização dos gastos públicos em áreas com maior poder de impactar positivamente a renda das famílias como alavancar setorialmente investimentos privados. Como tenho enfatizado, a percepção da relevância da complementaridade estratégica entre investimentos públicos e privados pode viabilizar a implementação de uma política de desenvolvimento para o Nordeste, com inclusão social e sustentabilidade ambiental.

Reynaldo Rubem Ferreira Jr (Professor da Faculdade de Economia, Administração e Contabilidade – FEAC – da UFAL)

A economia brasileira em tempos de Covid-19: o antes, o durante e o “depois” (VIII)

3 de janeiro de 2021 8:11 por Reynaldo Rubem Ferreira Jr

Após um ano que ficará marcado na história da humanidade, chegou a hora de fazer um balanço dos efeitos da Covid19 na economia nordestina e o velho exercício, praticado todos os anos pelos economistas e simpatizantes das artes adivinhatórias, como os quiromancistas, de prever o que nos espera 2021. Para os que estão chocados com a comparação que faço entre os praticantes da “ciência triste” e os exotéricos, convido-os a comparar as previsões quanto ao crescimento da economia brasileira que são realizadas todo final de ano pela elite dos economistas do mercado financeiro, capitadas pela pesquisa semanal FOCUS-BCB, e os resultados registrados pelo IBGE um ano depois. Posso lhes assegurar que a mediana das estimativas do mercado tem errado na maioria dos casos nos últimos vinte anos. E mais, o erro é de superestimação, o que nos coloca com as barbas de molho em termos de expectativas.

A desculpa para o fracasso preditivo é que as profecias só seriam realizadas se todas as reformas fossem implementadas. Neste caso a culpa seria dos populistas e não dos “isentos” economistas de mercado. Até quando esta narrativa resistirá aos fatos é outra previsão difícil de ser feita, mesmo para o mais versados nas ciências ocultas.

No nosso balanço da economia nordestina, começarei explorando o fato de que ainda não chegamos no pós-pandemia, não só por questões de natureza sanitária como uma possível segunda onda e planejamento precário do processo de imunização da população, mas porque os resultados conjunturais animadores em alguns setores são típicos de uma economia anestesiada, seja por um volume expressivo de recursos públicos, seja por uma política de compensação de empregos que não se manterão no próximo ano quando voltaremos ao cobertor da austeridade fiscal (Teto dos Gastos). Do ponto de vista estrutural, mostraremos que o fosso persiste e ainda há uma longa caminhada para se retornar a superfície nada animadora dos anos de recessão de 2014 a 2016. Por fim, como não poderia deixar de ser, consultarei a minha bola de cristal e darei os meus palpites para 2021.

Conjunturalmente falando, o varejo foi o setor que rapidamente conseguiu se recuperar das perdas no volume de vendas provocadas pelo isolamento social imposto pela Covid19, seja em nível regional, seja dos estados do Nordeste. Os dados dos gráficos nº 1 e 2 são eloquentes em mostrar a recuperação deste setor, não só em relação a fevereiro de 2020, mês que antecede o início da quarentena, como quando comparado a igual período do ano anterior. Nos dois períodos em análise, a indústria nordestina apresentou, respectivamente, retração de 3% e discreta recuperação de 0,5%. Como já era esperado, os serviços foram os que sofreram o maior impacto negativo, conforme gráficos nº 1 e 3, apesar de em junho os governos em nível estadual terem iniciado um processo de relaxamento das políticas de distanciamento social.

A reação do varejo, pedra cantada ao longo dos últimos meses, está diretamente associada aos efeitos de anestesiamento da crise promovidos pelo Auxílio Emergencial (AE). De acordo com o Portal da Transparência, de janeiro a novembro de 2020 foram injetados na economia do Nordeste em benefícios sociais R$ 97,6 bilhões, dos quais as transferências do AE respondem por 66%. A partir de janeiro de 2021, em tese, este será o percentual de recursos transferidos à população carente que deixará de circular diretamente na economia nordestina.

O segundo pilar anestesiador que deixará de existir no mesmo período é o que dá sustentação ao emprego, como o programa de Benefício Emergencial de Preservação do Emprego e da Renda (BEM). Em novembro, antes da suspensão do BEM, segundo o IBGE, a taxa de desocupação dos estados do Nordeste era de 21,7% no Maranhão; de 10,9% no Piauí; de 14,7% no Ceará; 16,8% no Rio Grande do Norte; 15,9% na Paraíba; 17,9% em Pernambuco; 15,9% em Alagoas; 18,9% em Sergipe e 19,8% na Bahia. Ante este quadro, não há nenhum exagero em se supor que sem a política de compensação do emprego e da renda as taxas de desemprego tenderão a aumentar, uma vez que a procura por emprego aumentará enquanto a demanda por bens e serviços estará se contraindo. Ademais, a aceleração da taxa de inflação ao consumidor (IPCA), observada a partir de junho, afetará negativamente, mesmo que temporariamente, o poder de compra especialmente da população de baixa renda.

É muito provável que, sem o anestesiamento conjuntural, os sintomas de nossos problemas estruturais voltem a ser sentidos com consequências negativas para a aparente retomada do varejo e agravamento das crises dos setores da indústria e serviços, principalmente no cenário de lenta imunização da população até o final de 2021. Os que sustentam que a partir do meio do próximo ano o contexto econômico nordestino irá melhorar não explicam como isto é possível, se os suportes que vinham sustentando a economia até o final de 2020 vão ser retirados. Talvez porque acreditem que é uma questão de fé.

 

Quando comparamos a variação dos índices médios dessazonalizados da produção industrial e dos volumes de vendas do varejo e serviços do Nordeste, nos períodos de janeiro a outubro de 2016, 2019 e 2020 com igual período em 2014, é possível observar que a fenda é muito grande, o que relativiza a ideia de melhoria no curto e médio prazos. Os dados do gráfico nº 4 evidenciam que, nos três setores de maior peso no produto regional, persistem a perda de dinamismo desde 2014 e em 2020 a situação se agrava, não obstante toda a injeção de recursos públicos especialmente nos casos da indústria e serviços.

O quadro em nível dos estados da região é ainda mais desafiador, como pode ser visto nos gráficos nº 5 e 6 para o mesmo período. A partir destes dados fica difícil se fazer prognósticos de recuperação da economia desses estados em 2021. Na melhor das hipóteses, a melhoria esperada seria conjuntural em relação a 2020 e não no tocante a 2014. Em outras palavras, não é possível desconsiderar os efeitos

estruturais da recessão e da Covid19 na construção de cenários para os próximos anos na economia nordestina. Qualquer análise isenta tem que refletir sobre quais são os entraves que dificultam um retorno mais célere aos índices nada animadores de 2014. Uma boa pista destas dificuldades está nos cortes de gastos em investimentos públicos em infraestrutura logística, social e tecnológica nos últimos anos no Brasil.

Ignorar os efeitos negativos da histerese sobre a estrutura produtiva do Nordeste que estes cortes implicam, é, no mínimo, subestimar o tamanho do desafio que temos pela frente em termos de políticas de desenvolvimento regional com inclusão produtiva e social. Em outras palavras, é o mesmo que desconsiderar os efeitos perniciosos sobre a produtividade da força de trabalho (que geralmente é baixa em economias intensivas em serviços de menor valor agregado, como é o caso da nordestina), como também no tocante a demanda por bens e serviços resultantes da concentração de renda e índices elevados de pobreza.

Em síntese, são tantos desafios a embaçar a minha bola de cristal que não está fácil enxergar as perspectivas econômicas para o Nordeste em 2021. O cenário menos arriscado é dizer que a partir do segundo semestre as coisas vão melhorar na margem, mesmo que este seja mais um exercício de pura especulação, principalmente em um ambiente de tanta incerteza econômica e sanitária.

Mas vou arriscar dois palpites.

O primeiro, pessimista, aposta no provável retorno a lógica puramente fiscalista por parte do Governo Federal, com cortes lineares nas transferências às famílias, às empresas e aos governos, consolidando um cenário de estagnação para a economia nordestina, uma vez que as unidades da federação tem restrições fiscais e dependem das transferências e do aval da União para investir. Os custos deste cenário em termos econômicos e sociais, inclusive no tocante as receitas públicas, não podem ser minimizados em virtude do efeito multiplicador dos gastos públicos sobre a renda.

O segundo cenário, reflete a minha esperança que a crise da Covid19 possa ter despertado nos gestores públicos e na sociedade a importância da parceria estratégica entre os setores público e privado. O Consórcio Nordeste parece indicar nesta direção e pode ser crucial para a implementação de uma política de desenvolvimento capaz de construir um ambiente sistemicamente competitivo para as empresas, assim como de melhoria do bem estar social. Esta possível mudança de visão quanto ao papel dos investimentos públicos para alavancar a iniciativa privada pode viabilizar politicamente a realização de uma reforma tributária progressiva no país capaz de mudar a distribuição da carga de tributos. Ou seja, passar a tributar mais a renda, o patrimônio e a riqueza e menos a produção e consumo de bens e serviços essenciais.

Em qual dos dois cenários você apostaria? Oxalá que possamos ter um Ano Novo esperançoso!

A economia brasileira em tempos de Covid-19: o antes, o durante e o “depois” (VII)

24 de outubro de 2020 1:21 por Reynaldo Rubem Ferreira Jr

O pós-pandemia será muito desafiador porque o pré-pandemia já o era em termos de crescimento e desenvolvimento da economia do Nordeste. São problemas estruturais, que os auxílios às famílias e aos governos só fizeram conjunturalmente atenuar, mas estão longe de serem resolvidos. Neste artigo, exploraremos o comportamento de alguns indicadores da economia de nossa região, assim como da dos estados, em uma perspectiva cíclica, tomando o ano de 2014 como ponto de partida. O nosso objetivo é apontar defasagens setoriais que podem comprometer o processo de recuperação da economia do Nordeste, contudo, não temos o propósito de discutir os seus determinantes estruturais.

De acordo com a datação realizada pela Fundação Getúlio Vargas (FGV), a recessão brasileira tem início no segundo trimestre de 2014 e vai até o último trimestre de 2016. Tomando este recorte da FGV como referência, adotaremos a seguinte periodização. O primeiro período é o recessivo, em razão das taxas de crescimento negativas; o segundo de estagnação econômica, dado que as taxas de crescimento não foram suficientes para que os indicadores retornassem aos índices anteriores a recessão; e, por fim, o que diz respeito ao choque provocado pela Covid19. Nos três períodos, no caso do Nordeste, são comparadas as médias dos índices de produção industrial, volume de vendas no varejo e serviços, nos meses de março a agosto de 2015 a 2020, com igual período em 2014. No tocante aos estados nordestinos, apenas dois indicadores foram usados, uma vez que os índices de produção industrial não tem para todos os estados na pesquisa do IBGE. Deste modo, os índices médios do volume de vendas do varejo e serviços, para os meses acima citados nos anos de 2016, 2019 e 2020, foram comparados ao mesmo período de 2014. Como a variação do nível de atividades dos setores de um ano para outro se dá a partir da comparação de seus índices médios, justifica-se o fato de se usar esta métrica na comparação dos dados.

É importante chamar atenção, antes da apresentação dos dados nos gráficos nº 1, 2 e 3, para o expressivo volume de recursos transferidos do orçamento da União à região Nordeste e seus respectivos estados. No caso da primeira, de abril a agosto, segundo o Portal da Transparência (CGU) e IBGE, só o Auxílio Emergencial injetou R$ 64,7bi e, na média da região, cerca de 60% das famílias foram beneficiadas. Em nível estadual, Maranhão recebeu R$ 8,2bi e 65,5% das famílias foram contempladas; Piauí R$ 3,9bi e 61,8%; Ceará R$ 10,2bi e 58,6%; Rio Grande do Norte R$ 3,7bi e 56,3%; Paraíba R$ 4,5bi e 56%; Pernambuco R$ 10,8bi e 56,4%; Alagoas R$ 3,7bi e 63,5%; Sergipe R$ 2,6bi e 57,8%; e Bahia R$ 17,0bi e 58,8%. Ademais, neste mesmo período, o Nordeste recebeu auxílio financeiro do Tesouro decorrente da Lei 173/20, que estabelece o Programa Federativo de Enfrentamento ao Coronavírus SARS-CoV-2 (Covid-19), de aproximadamente R$ 8,8bi, o que tem compensado, em grande medida, a perda de arrecadação provocada pela crise.

A entrada de todo este recurso na economia da região permitiu uma retomada mais rápida, principalmente da indústria e varejo, a partir de maio. Em agosto do corrente ano, a produção industrial (dessazonalizada) encontrava-se -5,5% em relação a fevereiro, enquanto em abril, fundo do poço, era de -33,6%. O varejo, por sua vez, apresentou um resultado surpreendente com 10,6% de crescimento em relação ao mesmo período, quando no momento crítico da crise havia retraído -24%. O setor de serviços continua encontrando dificuldade para se recuperar, apresentando taxas de -19,3% e -26%, no período especificado, em virtude das restrições sanitárias e receio da própria população, tendo em vista que não há uma vacina.

Apesar da importância das transferências para atenuar o significativo impacto do Covid19 na economia dos estados e da região Nordeste, dois aspectos merecem ser enfatizados. O primeiro, de natureza conjuntural, é que o auxílio tem data marcada para acabar (dezembro de 2020) e desde setembro está, em média, 50% menor e atingindo um contingente também menor de pessoas. Qual impacto isto terá na economia é algo que tem desafiado a mente de muitos economistas e não dá para antecipar. O segundo, que tem um caráter estrutural, nos alerta que o problema da retomada no pós-Covid19 pode ser muito maior do que a análise dos resultados conjunturais nos permite vislumbrar. Vamos aos dados.
Os dados apresentados no gráfico nº 1 não são nada animadores, principalmente porque mostram que nossos problemas antecedem a crise desencadeada pela Covid19 que, a meu ver, só fez piorar uma situação de estagnação econômica pós-recessão. Quando comparados a média dos índices de março a agosto de 2014, os resultados da indústria, varejo e serviços do Nordeste confirmam esta hipótese. No caso da indústria, no mesmo período em 2016, esta se encontrava 4,8% abaixo, em 2019 ampliou a queda para 9,1% e chega em 2020 com 20% abaixo do nível de produção que tinha no início da recessão. O varejo, no mesmo período, apresenta uma nítida dinâmica de queda na recessão, atinge -15% em 2016, cresce um pouco e mantém-se estável no período de 2017 a 2019, por isso continua 14% abaixo do patamar de 2014 em 2019. Com o choque da pandemia, abre-se um buraco de -20%, mesmo com todo o auxílio emergencial. O setor de serviços, por sua vez, tem dinâmica semelhante ao varejo com -11,5% e – 20% em 2016 e 2019, sendo bem mais expressivo o tombo provocado pelo Covid19, equivalendo a um fosso de -37%. Dois aspectos merecem ser destacados a partir desses resultados: a dinâmica econômica endógena do Nordeste se assemelha, com algumas defasagens, a observada em nível nacional; e, mesmo sendo uma das regiões mais beneficiadas com as políticas emergenciais de transferência de renda (sendo a outra o Norte do país), continua bem abaixo do patamar obtido no início da recessão nos dois setores que mais geram empregos: comércio e serviços.

Os gráficos nº 2 e 3 abaixo, dão a dimensão destas defasagens em nível de estados da região no período em análise. Tanto no varejo como no setor de serviços, os dados são preocupantes. No primeiro caso, com exceção do estado do Maranhão, no período de março a agosto de 2020, o que configura um ponto fora da curva, o índice médio do volume de vendas do varejo se mantém abaixo do observado em igual período em 2014, e a queda se acentua com o choque da Covid19, mesmo com a alta cobertura do auxílio emergencial. No tocante aos dados de serviços, uma diferença importante é observada quando comparados aos do varejo. Ou seja, em todos os estados, nos três períodos, os seus respectivos índices médios apresentam reduções em escala crescente em relação aos obtidos no início da recessão em 2014. Isto sinaliza, em outras palavras, que a pandemia só colocou água na fervura nos problemas estruturais deste setor.

Estes resultados nos permitem concluir que a economia nordestina estava em uma trajetória de estagnação pós-recessão, em sintonia com o observado em termos de dinâmica econômica em nível nacional, antes de sermos atingidos pelo cometa Covid19, o que só fez aprofundar o platô de defasagem com o período recessivo. Assim os resultados conjunturais positivos obtidos com o programa de auxílio emergencial de caráter provisório, principalmente na indústria e comércio, como mostrado acima, dificilmente se sustentarão se insistirmos no atual modelo econômico que vem mantendo a economia estagnada. Costuma-se atribuir a Mario Henrique Simonsen, dentre as suas celebres tiradas, que jogar a economia na estagnação é como puxar um barril com uma corda, tirá-la é colocar o barril no lugar empurrando-o com a mesma corda. Para tirar nossa economia do atoleiro vamos ter que repensar os nossos mecanismos de tração, já que a corda tem se mostrado insuficiente.

A economia brasileira em tempos de Covid-19: o antes, o durante e o “depois” (VI)

8 de setembro de 2020 11:08 por Redação

Em sua Teoria Geral do Emprego, do Juro e da Moeda, o economista inglês John Maynard Keynes dá os fundamentos teóricos que alicerçam os pilares para a explicação do relevante papel do Estado na estabilização das economias de mercado e para o pleno emprego dos recursos produtivos.
Keynes explicitou a incapacidade da teoria clássica de explicar a natureza endogenamente instável dessas economias e, consequentemente, as razões do porquê as taxas de desemprego involuntário podem ser tão elevadas.

A pandemia – apesar de sua natureza sanitária fugir a dinâmica das crises econômicas cíclicas, cujos choques simultâneos na oferta e demanda são provocados pelo isolamento social – e seus impactos na estrutura econômica brasileira demonstraram, mais uma vez, a relevância dos insights de Keynes.

Neste artigo vamos abordar como o Governo Federal, a partir do orçamento de guerra aprovado pelo Congresso, está tendo um papel crucial para minimizar os efeitos negativos da Covid19 sobre as receitas públicas dos estados do Nordeste. Em outras palavras, como a União passou a ser a provedora em última instância das Unidades da Federação (UFs), contrariando a narrativa dos economistas liberais do “Estado mínimo”, associada a pouco evidente hipótese da “contração fiscal expansionista”, batizada pelo economista Paul Krugman de “a fadinha da confiança”. Mas, vamos aos fatos.

Antes do tratamento dos dados é importante esclarecer alguns aspectos metodológicos. A escolha do período em análise de março a julho de 2020 contra igual período do ano anterior deve-se ao foco ser os impactos da pandemia nas receitas públicas dos estados da região Nordeste. Para o cálculo real de tais reflexos, colocamos os valores arrecadados a preço de julho de 2020 (deflacionado pelo IPCA). Por fim, para levantar o auxílio às UFs, usou-se os dados do Tesouro Nacional do Apoio Financeiro aos Estados (AFE), que tem um caráter esporádico para suprir dificuldades financeiras em momentos excepcionais como os vividos atualmente, e da Lei Complementar nº 173/2020. Esta, por sua vez, também institui provisoriamente um regime fiscal objetivando o reequilíbrio das contas públicas, por meio de auxílio financeiro da União para o combate à doença, suspensão do pagamento da dívida pública e limitação do crescimento de despesas relacionadas a folha de pagamento dos servidores públicos até 31 de dezembro de 2021. De acordo com a Art 5º, o auxílio financeiro às Unidades da Federação no valor de R$ 60,0Bi será pago em quatro parcelas.

A partir dos dados do CONFAZ e do Tesouro Nacional (TN), calculamos o impacto da Covid19 sobre as finanças públicas, como pode ser visto nos gráficos nº 1 e 2 para o Nordeste e os estados da região, respectivamente. Nas três fontes de receita (ou seja, CONFAZ, FPE e Outras receitas ) houve queda expressiva tanto na região como em nível de estados. Do ponto de vista da primeira, Ceará foi o que apresentou a maior perda real de -25,1% e Alagoas a menor -8,8%. Em relação ao FPE, este último estado passa a liderar as perdas com -15,7% e Paraíba apresenta a menor retração com -14,4%. No tocante a Outras receitas, o Rio Grande do Norte passa a liderar o ranking com -22,3% e Maranhão fica na última posição com -12,4%. Das três fontes de receitas, as maiores contrações reais, com exceção de Alagoas onde a maior perda foi no FPE da ordem de -R$ 0,21 bi, foram às oriundas do CONFAZ: Maranhão de -R$ 0,38bi; Piauí de -R$ 0,34bi; Ceará de -R$ 1,61bi; Rio Grande do Norte de -R$ 0,36bi; Paraíba -R$ 0,32bi; Pernambuco de -R$ 1,07bi; Alagoas de -R$ 0,17bi; Sergipe de -R$ 0,19bi; Bahia de -R$ 1,76bi; e Nordeste de -R$ 6,19bi.

Alguns aspectos merecem ser destacados a partir desses dados. Sendo a base da arrecadação do CONFAZ o ICMs (86,45%), acredita-se que a injeção de R$ 40,0bi de auxílio emergencial (AE) na economia da região, no período de abril a julho de 2020, contribuiu para amortizar os efeitos da pandemia sobre a arrecadação, em virtude dos impactos positivos na margem sobre as vendas do varejo e em menor proporção sobre os serviços. Vale salientar, ainda, não obstante estes efeitos benignos, Ceará, Pernambuco e Bahia, que respondem por mais de 50% do AE liberado, registraram perdas pronunciadas na arrecadação real do ICMs, como mostrado no parágrafo anterior.

Para se ter uma ideia do real impacto do Covid19 sobre as finanças dos estados da região a partir da consolidação das três fontes de receitas, as perdas monetárias são: Maranhão de -R$ 0,79bi; Piauí de -R$ 0,65bi; Ceará de -R$ 2,09bi; Rio Grande do Norte de -R$ 0,67bi; Paraíba -R$ 0,61bi; Pernambuco de -R$ 1,56bi; Alagoas de -R$ 0,42bi; Sergipe de -R$ 0,44bi; Bahia de -R$ 2,42bi; e Nordeste de -R$ 9,65bi. São resultados financeiros preocupantes em se tratando de uma região que concentra boa parte da pobreza do país e cuja população é muito dependente dos serviços públicos, de saúde, educação e segurança.

A partir desses dados, duas questões vêm à tona: o auxílio do Governo Federal será suficiente para compensar os impactos negativos do Covid19 nas finanças dos estados nordestinos?; e quais as possíveis consequências de sua suspensão?

No tocante a primeira questão, os dados dos gráficos nº 3 e 4 nos permitem ter uma ideia, até julho do corrente, dos efeitos da liberação de duas parcelas dos recursos da LC 173/20 mais o AFE, tanto em nível regional como para os estados, sobre a receita real pública. No caso do Nordeste, a perda de recursos foi reduzida a 1/3 do que seria sem o auxílio, ou seja, passa de -R$ 9,65bi para -R$ 2,94bi. Logo, mesmo que a arrecadação consolidada nos meses de agosto e setembro se mantenha em recuperação, mas não muito abaixo, em termos reais, da obtida em igual período do ano anterior, é muito provável que haja compensação em nível regional.

Em nível dos estados do Nordeste é possível identificar, até o momento, três grupos no que tange ao impacto das duas parcelas do auxílio às finanças das UFs: i) os que já recuperaram as suas receitas ; ii) os em vias de compensação das perdas; e iii) os de recuperação mais lenta. Como pode ser visto no gráfico nº 4, no primeiro estão Alagoas e Maranhão, com saldos positivos de R$ 0,82bi e R$ 0,52bi. O segundo grupo é composto pelos estados de Sergipe e Paraíba, que deverão registrar resultado positivo a partir da liberação da terceira parcela nos valores de R$ 0,128bi e R$ 0,162bi, respectivamente. No último grupo estão os estados que apresentaram as maiores perdas de receitas, mesmo com o auxílio, que são Ceará, Bahia, Pernambuco, Piauí e Rio Grande do Norte. No caso destes, estima-se que só com o pagamento da quarta parcela haverá a recuperação das receitas em relação a igual período do ano anterior.

Diferentemente da resposta à primeira questão, o grau de especulação aumenta consideravelmente em se tratando da segunda. Até julho, sem o auxílio, a receita real consolidada dos estados do NE em relação a igual período do ano anterior, com exceção de Alagoas que cresceu 4,3%, registrou queda: Maranhão de -1,5%; Piauí de -14%; Ceará de -9,6%; Rio Grande do Norte de -10,4%; Paraíba de -4,9%; Pernambuco de -4,2%; Sergipe de -5,6% e Bahia de -4,7%. Como irão se comportar as finanças públicas a partir de outubro, quando acaba a ajuda financeira aos estados, dependerá da retomada da atividade econômica cujas perspectivas ainda são bastante incertas. O fato é que, pelos dados apresentados nos gráficos acima, sem AFE + LC 173/20 o tombo nas finanças estaduais teria sido significativo, o que demonstra a relevância do papel do Estado para a estabilização da economia em momentos críticos.

À guisa de conclusão, é importante observar que, historicamente, com o surgimento das economias de mercado, instituição criada pelo Estado como nos ensina Karl Polanyi em seu clássico a Grande Transformação, o satanizado gasto público só tem alguma virtude nos momentos de crise, quando é preciso lançar botes salva-vidas em mares revoltos, para resgatar os credores dos dogmas econômicos aparentemente virtuosos, como são exemplos as crises de 1930 e 2008, às custas do sacrifício da maioria da população. Passada a tempestade, os templos dos profetas do mercado e de seus asseclas retomam, imediatamente, sua pregação: é preciso, em nome da “pureza de espírito” só alcançada com a purgação dos “pecados” (austeridade), exorcizar os “demônios” que impregnam os governos com os vícios da gastança (opulência). Até que, então, uma nova crise exige que o estado obeso e ineficiente seja desacorrentado para, mais uma vez, salvar os investidores em pânico no “paraíso” da livre iniciativa.
Talvez o caminho menos instável esteja em uma aliança que, ao não permitir a subjugação do primeiro pelo segundo, assegure as bases para o desenvolvimento, abrindo a todos as portas do céu (pleno emprego). Keynes na Teoria Geral (cap.24) dá uma pista importante nesta direção, ao escrever: “concebo pois que uma socialização abrangente do investimento será o único meio de assegurar uma situação aproximada de pleno emprego, embora isso não implique que se excluam todo tipo de compromissos e dispositivos pelos quais o Estado possa cooperar com a iniciativa privada. Mas, além disso, não se vê argumento que justifique um socialismo de Estado que abranja a maior parte da vida econômica da comunidade”.

 

Reynaldo Rubem Ferreira Jr (Professor da Faculdade de Economia, Administração e Contabilidade – FEAC – da UFAL)

A economia brasileira em tempos de Covid-19: o antes, o durante e o “depois” (V)

17 de agosto de 2020 2:49 por Reynaldo Rubem Ferreira Jr

A variação dos índices registrados pelo IBGE para indústria, comércio varejista e serviços no Brasil, para os meses de maio e junho, em relação ao mês imediatamente anterior, com ajuste sazonal, sinaliza que o pior momento da pandemia pode ter ficado para trás. No caso do Nordeste, esses três setores configuram dinâmicas de recuperação semelhantes às observadas em nível nacional. Em mais este artigo da série dos efeitos econômicos do Covid19, o nosso foco estará nos impactos do Auxílio Emergencial (AE) sobre os setores de comércio varejista e serviços nos estados da região Nordeste. Mostraremos que tal política não tem sido suficiente para recuperar os estragos sobre o nível de atividade desses dois setores nos meses de março a junho, quando comparado a igual período do ano anterior. E mais, que essa aparente recuperação poderá ter fôlego curto se não houver, em termos sanitários, contínua redução da curva de reprodução do vírus. Por sua vez, do ponto de vista econômico, se faz necessária a manutenção das políticas fiscais de sustentação, tanto da renda das famílias quanto de compensação às perdas de arrecadação aos estados e municípios, sendo esta última política objeto do nosso próximo artigo. Como é sabido, a primeira, se não for renovada, acabará em agosto e a segunda a partir de outubro.

De abril a junho, o Governo Federal injetou na economia nordestina, de acordo com o portal da transparência da CGU, cerca de 37,7 bilhões de reais por meio da política de Auxílio Emergencial (AE), com a seguinte distribuição entre as Unidades da Federação: 9,9bi na Bahia; 6,25bi em Pernambuco; 5,97bi no Ceará; 4,84bi no Maranhão; 2,64bi na Paraíba; 2,28bi no Piauí; 2,16bi em Alagoas; 2,14bi no Rio Grande do Norte; e 1,51bi em Sergipe. Grande parte desses recursos foram usados nas compras de alimentos, cerca de 53% de acordo com pesquisa da FSP, como já era esperado pela maioria dos economistas em função da elevada propensão a consumir das famílias de níveis de renda mais baixa.

A questão importante a ser analisada é qual o impacto desse volume substancial de recursos nos setores varejista e de serviços, que respondem por grande parte da riqueza gerada no Nordeste e no Brasil, vis a vis aos efeitos negativos da pandemia? É possível antecipar em resposta a esta indagação, a partir dos dados que serão analisados a seguir, que, apesar de os recursos mencionados serem necessários, até o momento eles não tem sido suficientes para compensar as perdas. Ou seja, o quadro que começa a assumir ares de normalização em função dos resultados positivos mais recentes continua, em sua essência estrutural, bastante anormal.

Os dados dos gráficos nº 1 e 2, que tratam do comportamento dos índices do volume de vendas no varejo e no comércio ampliado, tanto na margem como em relação a igual mês no ano anterior, sinalizam que é preciso sermos cautelosos quanto aos efeitos do AE sobre o setor varejista. Ou seja, após 3/5 dos recursos distribuídos, houve crescimento em relação a maio em todos os estados nas duas categorias do varejo, porém, exceto nos casos do Maranhão e Piauí, todos se mantiveram abaixo do patamar alcançado em junho de 2019. No entanto, alguns se mantiveram com taxas bastante pronunciadas, acima de dois dígitos, como foram os casos do Rio Grande do Norte, Alagoas e Bahia e deste último estado no comércio ampliado. É sempre bom lembrar que 2019 foi um ano de crescimento modesto não só para o Brasil, mas também para a economia do Nordeste que deve ter crescido, a partir dos dados do IBCR-NE do BCB (com ajuste sazonal), cerca de 1%.

Quando comparamos o índice médio do volume de vendas do comércio varejista no quadrimestre de março a junho de 2020 com igual período no ano anterior, fica claro, com base nos dados do gráfico nº 3, que mesmo com 3/5 dos recursos do AE já liberados, ainda temos uma boa escalada para voltar aos níveis do ano anterior que, como dito acima, não foi nada animador. Outro aspecto importante, ainda quanto a esta métrica, diz respeito ao fato que os estados da Bahia, Ceará e Pernambuco, que respondem por 59% do AE transferido, serem os que apresentaram os patamares negativos mais elevados, com destaque para os dois primeiros com -17,1% e -22,5%, respectivamente. Dos estados com menor peso no PIB regional, Alagoas foi o que registrou a maior contração, com -16,2%. Ainda com base nos dados do IBGE, mesmo na comparação com fevereiro de 2020, mês que antecede o início das medidas de isolamento social, só Maranhão e Ceará conseguiram se recuperar, ficando 15% e 2,4% acima daquele patamar. Os demais ainda se mantiveram abaixo, ou seja, -0,6% no caso do Piauí; -9,9% no do Rio Grande do Norte; -11,5% na Paraíba; -2,3% em Pernambuco; -13,6% em Alagoas; -6,1% em Sergipe e -9,9% na Bahia.

Parte da explicação para dados tão diferenciados entre os estados, como os registrados nos gráficos nº 1, 2 e 3, pode estar no nível de rigor da quarentena no início da pandemia e na gestão do processo de relaxamento. Talvez isto explique por que o Maranhão e Piauí obtiveram crescimento em relação a junho de 2019 e menores retrações na comparação quadrimestral. Todavia, o fato de todos registrarem taxas negativas nesta última métrica, a nosso ver, como colocado anteriormente, está na insuficiência do AE para compensar o tamanho do estrago provocado pela pandemia, mesmo no setor varejista.

Como já esperado, seja porque o setor de serviços foi o mais afetado pela pandemia, seja porque, por envolver na maioria das vezes aglomerações, só está sendo contemplado nas fazes mais avançadas de relaxamento social, suas taxas de recuperação na margem tem sido menos expressivas quando comparadas as do setor varejista, enquanto que na comparação com o ano anterior são significativamente piores, como pode ser observado no gráfico nº 4. Isto reforça a tese que o AE tem tido impacto mais pronunciado no comércio, o que, em grande medida, atenua os seus efeitos na geração de emprego e renda. As taxas de desemprego no mês de junho para os estados do Nordeste, mesmo com os efeitos positivos do AE sobre o comércio varejista, continuam exibindo níveis bastante elevados: 15,3% em Alagoas; 14,9% na Bahia; 14,1% no Maranhão; 13,8% no Rio Grande do Norte; 12,6% em Pernambuco; 12,2% no Ceará; 11,3% na Paraíba; 9,4% em Sergipe e 9,1% no Piauí.

Todo esse conjunto de dados nos permite concluir que o impacto da pandemia sobre a estrutura econômica dos dois setores mais importantes da economia do Nordeste, comércio e serviços, está se configurando significativo. Por esta razão, as famílias carentes e as Unidades da Federação não poderão prescindir da continuidade da disponibilização dos recursos públicos, tanto durante as fases de estabilização e desaceleração da propagação do vírus como no pós-pandemia, quando os investimentos públicos em infraestrutura social serão cruciais para sustentar a retomada por meio da alavancagem dos empreendimentos privados. O Governo tem sinalizado que vai prorrogar o AE até o final do ano, só que com um valor mais baixo. Qual será o impacto do novo auxílio no varejo e serviços? Bem, à primeira vista, continuará sendo positivo ao contribuir para atenuar os efeitos da recessão, mas, a depender do valor, poderá continuar limitado, principalmente se as taxas de desemprego continuarem em níveis elevados, o que é provável devido à baixa tração da retomada dos serviços, tendendo a levar os consumidores a assumirem posturas mais cautelosas, o que restringe ainda mais o multiplicador da renda.

Reynaldo Rubem Ferreira Jr (Professor da Faculdade de Economia, Administração e Contabilidade – FEAC – da UFAL)

A economia brasileira em tempos de Covid-19: o antes, o durante e o “depois” (IV)

13 de julho de 2020 9:34 por Redação

Na sabedoria popular há um velho adágio que diz “cautela e canja de galinha não fazem mal a ninguém”. Após período prolongado de isolamento social, mesmo que moderado em muitos casos, é natural que surja nas pessoas o sentimento de esperança de que a realidade se comporte de acordo com seus desejos. Nas últimas semanas, temos assistido no noticiário que o pior da crise já passou e, pelos indicadores da produção industrial, volume de vendas no varejo e nos serviços, mesmo que este tenha vindo abaixo do esperado em maio, a recuperação da economia dar-se-á em um ritmo mais rápido do que o estimado anteriormente pelos economistas e mercado financeiro. Neste artigo, mostraremos que um olhar mais atento sobre os dados para os estados do Nordeste exige que sejamos mais cautelosos na formação de nossas expectativas. Caso contrário,  poderemos estar esquecendo uma outra lição bastante popular: “as aparências enganam”.

Nos gráficos nº 1 e 2, a partir dos dados do IBGE,  os efeitos da pandemia nos índices de volume dos setores varejista e de serviços dos estados do Nordeste estão registrados em seus percentuais de variação, quando comparados a igual período do ano anterior. É preciso destacar de início, que o ano de 2019 foi o que apresentou a menor taxa de crescimento da economia brasileira pós-recessão de 2014 a 2016, 1,1%,  e, mesmo assim, a pandemia, e o consequente isolamento social, levou os índices de volume tanto do varejo como de serviços nos estados do Nordeste a ficarem significativamente abaixo dos observados nos meses de março a maio de 2019 . As exceções são a Paraíba que registrou um zero a zero na variação do índice do volume de vendas quando comparado a março de 2019, e Maranhão com volume de serviços 3,8% acima do registrado naquele período, talvez por ter retardado o início da quarentena para o final de março.

No caso do varejo, conforme gráfico nº 1, o mês de abril de 2020 parece representar o fundo do poço, uma vez que em maio do corrente ano os índices de vendas passaram a apresentar um fosso menor em relação ao nível de maio de 2019. Apesar desta aparente melhora, comparando-se os índices de volumes médios trimestrais de março a maio de 2020 com igual trimestre em 2019, o buraco no varejo continua bastante expressivo, ou seja,    Maranhão está -12,3%, Piauí -15,6%, Ceará -27,1%, Rio Grande do Norte -13,4%, Paraíba -7,9%, Pernambuco -15,1%, Alagoas -18,2%, Sergipe -17,3% e Bahia -18,6%. Isto significa que há ainda uma boa subida na jornada para sair do buraco, o que exige um olhar mais cauteloso sobre a realidade e menos o tão desejável “agora vai”.

Diferentemente do varejo, a variação do índice de volume do setor de serviços para os estados do Nordeste registrou continuidade do mergulho em maio, exceto Paraíba e Bahia, de acordo com o gráfico nº 2. É provável que o relaxamento da quarentena a partir de junho em vários estados da região contribua para o início do processo de subida neste setor, cuja sustentabilidade continua uma questão em aberto como será abordado a seguir. O fato concreto é que o retorno a superfície exigirá um esforço ainda maior quando comparado ao varejo, principalmente na superação de obstáculos de natureza psicológica, desde que enquanto não houver uma vacina as pessoas serão mais cautelosas ao frequentar ambientes fechados e exigirão maior segurança sanitária.

Dado que comércio e serviços respondem por mais de 70% do PIB dos estados do Nordeste, é preciso se refletir e especular sobre as seguintes questões: qual a sustentabilidade da recuperação destes setores supondo-se que maio, no primeiro caso, e junho, no segundo, representem o fundo do poço? Quais os possíveis efeitos estruturais, mais especificamente sobre as MPEs, do tombo sofrido por estes dois setores no trimestre de março a maio de 2020?

Antes de partimos para o exercício de especular quanto a essas questões, é preciso pontuar que o quadro seria muito pior se não fosse o Auxílio Emergencial (AE) que, a despeito dos problemas em sua implementação, está tendo um peso considerável na sustentação da renda dos mais vulneráveis no Nordeste.  Estimativas realizadas pelo IPEA apontam que, em maio, da massa de rendimentos do trabalho efetiva do Maranhão o AE respondeu por 50,6%,  no Piauí por 39,7%, Ceará 36,8%, Rio Grande do Norte 29%, Paraíba 33%, Pernambuco 32%, Alagoas 44,3%, Sergipe 34% e Bahia 40%. Estudos, por sua vez, continuam atestando o importante efeito multiplicador sobre os gastos e a renda da economia do AE, CEDEPLAR e UFRRJ, principalmente no setor varejista da região Nordeste, mas o caráter temporário desta política assistencial enseja certa cautela quanto a sustentação dos seus atuais resultados satisfatórios de minimização da crise.

A resposta ao questionamento que trata do impacto setorial da crise passa pelo controle da epidemia, não só o achatamento como a redução de sua taxa efetiva de reprodução (Rt), no momento da escrita deste artigo, 12/07/20, de acordo com o site Covid-19 Analytics, a exceção da Paraíba com (Rt=1),  os demais estados do NE tem Rt>1, o que exige cautela na política de relaxamento da quarentena sob pena de ter que voltar a endurecer mais à frente. Mas, além da eficácia das políticas públicas de coordenação sanitária, a sustentação de uma possível retomada da economia também dependerá da continuidade das políticas macroeconômicas  de auxilio às famílias, empresas e Unidades da Federação (que serão em breve abordadas em outro artigo neste espaço), não só na fase crítica (políticas de mitigação) como no pós-pandemia (políticas contracíclicas). A falta de consenso quanto a natureza dessas políticas poderá ser uma pedra na escalada da recuperação e mais um fator a exigir cautela nos nossos prognósticos e expectativas futuras.

Quanto a questão estrutural, à que trata da segunda questão mencionada, não dá ainda para se saber o número de MPEs que sobreviverão a pandemia, mas podemos especular que o seu impacto poderá surpreender negativamente, a partir de alguns indícios. De acordo com o Sebrae, o maior contingente de MPEs vulneráveis encontra-se nos setores de comércio e serviços,  85% na média dos estados do Nordeste. Como mostrado acima, o impacto do Covid-19 nestes dois setores foi expressivo, mesmo com a região sendo a maior beneficiada pela política AE. Ou seja, a demanda não foi suficiente para evitar o tombo. E que tombo! Associada a isto, continua crítico o acesso das MPEs às linhas de crédito para a preservação da capacidade destas empresas de ofertar bens e serviços.  Pesquisa recente do Sebrae (G1) mostra que em maio quase 50% dos pequenos e microempresários solicitaram crédito aos bancos, mas só 18% tiveram sucesso. Mais uma razão para sermos cautelosos quanto ao “agora vai”. O legado de destruição na estrutura produtiva que poderá ser deixado pela pandemia, em um ambiente onde os canais de crédito continuam bastante obstruídos para as MPEs, não só comprometerá a recuperação, na medida que estas empresas geram 30% da riqueza do país, como terá implicações importantes na geração de emprego, uma vez que os pequenos negócios respondem por mais de 50% do emprego.

O pior pode até já ter passado, todavia não há como negar que o seguinte  paradoxo persiste: o fato da melhoria estar associada ao relaxamento da quarentena , em ambientes onde o vírus continua se propagando em escala ascendente, poderá exigir  em algum momento medidas mais duras de isolamento social, com frustração das expectativas da sociedade. A insegurança provocada pela possível intermitência da quarentena, e a incerteza engendrada pela mesma, poderá desencadear um processo de comportamento precaucional, devido ao medo do que reserva o futuro, por parte das famílias e empresas, com consequente aumento das reservas de dinheiro (sob a forma de poupança ou moeda). O Banco Central vem detectando aumento significativo dos depósitos líquidos de poupança desde março, o que pode ser um indicador da cautela das famílias.  Assim, a despeito  da renda emergencial contribuir, temporariamente, para minimizar os efeitos de retração dos níveis de emprego e renda, principalmente no Nordeste, o comportamento defensivo das empresas e famílias poderá enfraquecer ainda mais a retomada da economia, uma vez que diminui a magnitude da parcela dos gastos na economia, até mesmo os das famílias de rendas mais baixas. As MPEs, por sua vez, teriam que enfrentar simultaneamente as dificuldades de acesso a crédito associada a menor demanda por bens e serviços, o que diminuiria as suas chances de sobrevivência, hoje já consideradas críticas para um contingente significativo delas, diminuindo ainda mais as oportunidades de emprego.

Ante tudo isso, a “aparente melhora” poderá ser o prenúncio de dificuldades reais mais à frente, se continuarmos insistindo na falta de cautela na análise das informações e negando as nossas reais limitações para o enfrentamento da pandemia.  Afinal, como escreveu Ariano Suassuna no alto de sua sabedoria e irreverência: “O otimista é um tolo. O pessimista, um chato. Bom mesmo é ser um realista esperançoso”.

Reynaldo Rubem Ferreira Jr (Professor da Faculdade de Economia, Administração e Contabilidade – FEAC – da UFAL)

A economia brasileira em tempos de Covid-19: o antes, o durante e o “depois”  (III)

10 de julho de 2020 8:21 por Redação

No artigo anterior discutimos que a interrupção dos circuitos de produção e comercialização na maioria dos setores da economia brasileira a partir da segunda quinzena de março do corrente ano resultou em pronunciados efeitos negativos na geração de emprego e renda. Estimativas recentes realizadas por instituições internacionais como Banco Mundial, FMI e OCDE confirmam as perspectivas nada animadoras quanto ao tombo do nosso PIB em 2020.  A primeira instituição mencionada estima retração 8%, a segunda de 9,1%  enquanto a terceira de 7,4%, podendo chegar, no caso de um rebote da onda do Covid19, a  9,1%.  Ainda segundo a OCDE, no caso da economia global as retrações poderão chegar a 6%aa e 7,6%aa, respectivamente. Nesta coluna trataremos dos efeitos do COVID19 nas receitas estaduais, mais especificamente nos casos dos estados da região Nordeste, e da falta de agilidade na adoção das medidas aprovadas pelo Congresso Nacional para minimizar as perdas de arrecadação.

Antes da análise dos dados consolidados da arrecadação tributária estadual (CONFAZ) e das transferências do Fundo de Participação dos Estados da União (FPE-STN)  para as Unidades da Federação (UFs), nos meses de março a maio de 2020 e 2019, é importante esclarecer dois aspectos. A escolha dos dois períodos em análise tem a ver com a tentativa de aferir os efeitos do distanciamento social sobre as receitas nominais (sem deflacionar) das UFs, mesmo considerando que grande parte do impacto negativo se concentrou nos meses de abril e maio. O fato dos valores serem nominais não compromete a análise, uma vez que houve diminuição na receita consolidada e a taxa de inflação entre os dois períodos foi positiva, reforçando a queda na arrecadação real.

Outro aspecto relevante diz respeito as restrições financeiras das UFs comparadas às do Governo Federal. Diferentemente deste último,  os estados e municípios, assim como nos casos das famílias, não tem como financiar seus gastos por meio da emissão de moeda (dívida que não paga juros) e/ou de títulos públicos (dívida que paga juros). As suas receitas, em larga medida, vêm dos impostos e transferências institucionais. A geração destes recursos orçamentários por sua vez tem uma natureza pró-cíclica, ou seja, dependem dos níveis de produção e circulação de mercadorias e serviços. Isto significa dizer que quando a economia está crescendo aumentam as receitas das UFs e quando a economia entra em recessão estas colapsam, como será mostrado a seguir, levando ao aumento dos déficits primários e nominais (que incluem o passivo financeiro). Daí o papel  crucial a ser exercido pelo Governo Federal, que não possui restrição financeira na moeda do país, apesar de esta ser uma tese polêmica entre economistas ortodoxos e heterodoxos, na transferência de recursos emergenciais para estados e municípios. O Congresso Nacional tem se mostrado sensível aos problemas de financiamento dos gastos dos estados e municípios impostos pela pandemia, mas, assim como para os casos das famílias e do setor produtivo privado (principalmente as MPEs), a falta de agilidade na transferência dos recursos poderá agravar ainda mais as crises sanitária, econômica e social.

Mas qual foi o impacto até maio de 2020 do Covid-19 sobre as receitas dos estados do Nordeste?

Os dados exibidos nos gráficos nº 1 e 2 são preocupantes e dão uma dimensão dos reflexos da crise nas UFs. No tocante ao valor da receita de tributos consolidada no período em análise, com base nas informações do CONFAZ, o Nordeste registrou queda de 16,4%. Percentual acima do observado para o Brasil com retração de 11,6% e em relação aos das regiões Norte, da ordem de 3,5%, Centro Oeste de 2,7%, Sudeste de 12,6% e Sul de 12,2%. As duas regiões com maior redução de receitas abrigam 69% da população do país e das demandas por serviços públicos, principalmente os de saúde em tempos de pandemia, o que dá uma ideia do tamanho do problema a ser criado com a falta de agilidade nas transferências dos recursos emergenciais. No caso dos estados do Nordeste a situação é ainda mais delicada, ao abrigarem o maior contingente de pobres da nação e registrarem encolhimento de suas receitas da ordem de 15%, em média,  com destaque para os estados do Ceará e Piauí com 30,3% e 19,5%, respectivamente

Quanto ao valor consolidado das transferências do FPE da União para os estados da região Nordeste, no período em análise, as quedas registradas também são pronunciadas e reforçam a perda de receitas das UFs. Na média, os recursos do FPE transferidos caem acima de 12% e os estados menores, como Alagoas e Sergipe, são os mais afetados. Somando-se os valores dos tributos estaduais com os das transferências, quando comparado a receita acumulada de março a maio de 2019, o Nordeste obteve uma queda de receita de R$ 5,31 bi, enquanto  Maranhão perdeu R$ 370 mi, Piauí R$ 350 mi, Ceará R$ 1,36 bi, Rio Grande do Norte de R$ 260 mi, Paraíba de R$ 330 mi, Pernambuco R$ 810 mi, Alagoas R$ 270 mi, Sergipe R$ 220 mi e Bahia R$ 1,34 bi.

É de se supor que a erosão das finanças estaduais teria sido ainda maior caso o  Nordeste não tivesse recebido nos meses de abril e maio, com base nos dados do Instituto Fiscal Independente (IFI), uma injeção de R$ 15, 3 bi do auxílio emergencial para as pessoas registradas no bolsa família e cadastro único. Estes recursos, que beneficiaram cerca de 9,94 mi de nordestinos, bombearam para as economias dos estados aproximadamente R$ 4 bi na Bahia, R$ 2,5 bi em Pernambuco, R$ 2,4 bi no Ceará, R$ 2,11 bi no Maranhão, R$ 1,12 bi para a Paraíba, R$ 980 mi para o Piauí, R$ 878 mi para Alagoas, R$ 796 mi para o Rio Grande do Norte e R$ 604 mi para Sergipe.

O mais preocupante é que ante este quadro de deterioração das finanças estaduais os recursos emergenciais aprovados pelo Congresso Nacional não estão sendo celeremente transferidos pela União para as UFs.  De acordo com reportagem do Valor Econômico de 17/06/20, a partir dos dados da IFI, dos R$ 12,5 bi aprovados para saúde só 28,3% foram efetivamente gastos até o momento, dos R$ 16 bi para compensar as perdas dos fundos de participação, apenas 12,3% havia sido liberado, e dos R$ 60,19 bi do auxílio financeiro aos demais entes relacionados ao Programa Federativo de Enfrentamento da Covid-19 nenhum centavo havia sido gasto. Em síntese, do total de R$ 403,87 bi de recursos orçamentários o Governo Federal só havia realizado 33,6%.

As consequências sanitárias e econômicas para o país da falta de agilidade na transferência de recursos às UFs são imprevisíveis. Mas pode-se afirmar com certo grau de segurança que poderá levar, a continuar neste ritmo,  em breve ao comprometimento dos serviços públicos de saúde, obrigando estados e municípios a retomar medidas de distanciamento social mais severas, como também nas áreas de segurança, uma vez que a capacidade de pagamento dos servidores públicos poderá estar seriamente comprometida. Do ponto de vista econômico, a intermitência da quarentena dificultará ainda mais a retomada gradual do circuito de produção e circulação de bens e serviços, com implicações negativas sobre as gerações de emprego, renda e receitas tributárias como também para a sobrevivência de milhares de MPEs.

A grande lição dessa pandemia, a meu ver, é que não podemos usar da mesma forma os instrumentos de políticas fiscal e monetária como nas crises econômicas convencionais.   Como chamei atenção no artigo de 24/04/20 neste blog, “a segunda implicação da natureza dessa crise é que ao longo do surto viral as políticas macroeconômicas de mitigação da crise não terão um caráter keynesiano contracíclico, de estímulo à atividade econômica, tipicamente adotadas nas crises econômicas globais, mas de preservação da vida das pessoas e da estrutura econômica e social.  Em outras palavras, as políticas públicas terão que  evitar tanto a paralisia do sistema de saúde, como os efeitos negativos do lockdown sobre as famílias, empresas e bancos. Da eficácia ou não da intervenção do Estado na economia basicamente dependerá a capacidade de retomada da economia no pós-Covid-19”. Infelizmente enquanto esta ficha não cair não só estaremos perdendo a guerra para o vírus, com a morte de milhares de pessoas, como plantando as bases para anos de estagnação  econômica e social no nosso país.

Reynaldo Rubem Ferreira Jr (Professor da Faculdade de Economia, Administração e Contabilidade – FEAC – da UFAL)

Todas as postagens são de inteira responsabilidade do blogueiro.

A economia brasileira em tempos de Covid-19: o antes, o durante e o “depois”  (II)

10 de julho de 2020 8:22 por Redação

Tudo indica que a retração da economia brasileira provocada pelos efeitos da Covid-19 será bem mais pronunciada do que se estimava em março desse ano. Os dados, dessazonalizados, publicados pelo IBGE para o primeiro trimestre de 2020 em comparação com o último de 2019, registraram queda de -1,5% do PIB devido principalmente à diminuição do consumo das famílias, que caiu -2% e responde por 65% do PIB. Os gastos do governo, que representam 20% da produção de riqueza do país, tiveram crescimento discreto de 0,2%. Os investimentos, por sua vez, responsáveis por aproximadamente 15%, cresceram 3,1%, em grande parte  devido à contabilização das importações líquidas no setor de petróleo e gás. No setor externo as exportações contraíram 0,9%, em função da queda da demanda externa, e as importações cresceram 2,8% com a importação de máquinas e equipamentos. Do ponto de vista setorial, da oferta da economia, os setores de serviços e indústria, que respondem por cerca de 74% e 20% do PIB,  registraram retrações de -1,6% e -1,4%, respectivamente. Diferentemente destes dois setores, o agropecuário cresceu 0,6% no período em análise, mas, além de produzir alimentos, foi o setor menos afetado pelas políticas de distanciamento social adotadas a partir da segunda quinzena de março.

O que mais chama atenção nos dados do IBGE é que o impacto da pandemia na economia só ocorreu em menos de 1/6 do primeiro trimestre, mas especificamente a partir de 20 de março. A primeira conclusão que se pode tirar é que a economia não estava decolando, ou seja, a crise sanitária nos atingiu em um momento de estagnação econômica, como demonstramos no artigo anterior de 07/05/20. A segunda e mais preocupante é que o tombo da economia brasileira em 2020 não terá precedente em nossa história. Além dos dados do PIB apresentados no parágrafo acima, alguns indícios do tamanho da crise estão nos dados de desemprego do Cadastro Geral de Empregados e Desempregados (Caged) e da Pnad Contínua, do IBGE. A soma do saldo (admissão – demissões) do Caged nos meses de março e abril do corrente totalizou 1,1 mi de desempregados, sendo 66% no comércio e serviços, 21% na indústria, 7,5% na construção civil e 0,1% na agricultura.  Ademais, o estoque de emprego formal no Brasil para o mês de abril de 2020 é o mais baixo desde 2011. Já os dados da Pnad contabilizaram perda de 4,9 milhões de ocupações no trimestre de fevereiro a abril, sendo 3,7 milhões informais, 76% do total.

Mas, afinal, qual será o tamanho do tombo na economia brasileira em 2020 legado pelo Covid-19?

John Kenneth Galbraith costumava dizer que “a única função das previsões econômicas é fazer com que a astrologia pareça respeitável”. Em tempos de pandemia realizar projeções para o impacto do Covid-19 sobre a economia brasileira é como atirar em um alvo móvel. De um lado, porque dependerá tanto da gestão coordenada das políticas de distanciamento social por parte dos governos federal, estaduais e municipais   (achatamento da curva para se evitar o colapso do sistema de saúde), inclusive da suspensão gradual deste distanciamento, e, de outro lado, da agilidade e eficácia das ações emergenciais do governo federal na preservação dos empregos e das empresas dos segmentos mais vulneráveis, assim como da transferência de recursos para compensar a perda de arrecadação de estados e municípios. E é justamente por conta das falhas de coordenação das ações sanitárias nas três esferas de governo e da baixa celeridade e insuficiência das medidas, como será mostrado à frente, que a situação está ficando dramática, com perdas de vidas humanas e custos econômicos e sociais imprevisíveis.

As estimativas de várias instituições para a variação do PIB exibidas no gráfico nº 1 abaixo, caso se confirmem, não só implicarão em retrações sem precedentes no país, como apontam também para uma década econômica perdida no período de 2011 a 2020, com PIB em média crescendo próximo a zero, em contraste com a taxa média observada  na primeira década do século XXI da ordem de 3,9%aa, e PIB per capita caindo, segundo algumas estimativas, mais de 9%.

No final de abril, quando a maioria das instituições internacionais projetavam queda acima de 5% do PIB no Brasil em 2020, a mediana das expectativas do mercado levantadas na pesquisa FOCUS/BCB estimava -3,5%. No último levantamento em 29/05/20, a queda esperada pelo mercado financeiro brasileiro já era de -6,25%, maior que a média internacional. Do ponto de vista setorial, o mercado estima retração de – 4,5% na produção industrial e de – 4,7% no caso de serviços. Só o setor agropecuário, em função das demandas internas e externas de commodities, cresceria 2,1%. Todavia, já há fortes indícios de que estas projeções podem estar subestimando os efeitos da pandemia na economia brasileira e os cenários base de vários bancos, empresas de consultoria e instituições de pesquisa  começam a transitar para o patamar de retração do PIB de – 7%, o que, em um cenário mais pessimista apesar de menos provável, pode chegar a dois dígitos.

Três fatores estariam pesando para a piora das estimativas do PIB do Brasil em 2020: falhas de coordenação das medidas de distanciamento social em níveis federal, estadual e municipal, levando à quarentena moderada na maior parte do país; baixa celeridade das políticas públicas de mitigação econômica junto aos segmentos mais vulneráveis, como os informais e as micro e pequenas empresas; e demora na transferência de recursos para estados e municípios, que vem sofrendo perdas de arrecadação de receitas consideráveis em função da crise. Este último fator será objeto do próximo artigo que tratará do impacto da crise nos estados, com destaque para a região Nordeste onde reside grande parte dos pobres do Brasil.

Na área de saúde há um relativo consenso que apesar do Brasil já se encontrar em isolamento social há bastante tempo, na maioria dos casos, a quarentena tem sido moderada e isto tem contribuído para protelar o achatamento das curvas de contágio dos estados e do país. O índice de monitoramento de isolamento social do jornal Estado de São Paulo (Estadão) mostrava, em 01/06/20, que a média do país se encontrava próxima a 40%, quando o mínimo recomendado é de 55% e o ideal de 70%.   Mesmo estados onde o sistema de saúde está operando no limite como Amazonas, Maranhão, Ceará, Pernambuco, Rio de Janeiro e São Paulo, os índices são 43,8%, 40,7%, 44,2%, 44,2%, 42,9% e 40,6%, respectivamente. As perspectivas que estes indicadores colocam é que levará mais tempo para se atingir o pico da pandemia no Brasil, alguns estados terão que adotar medidas mais rigorosas de isolamento (lockdown), sob pena do sistema de saúde entrar em colapso, o relaxamento gradual tenderá a ter uma intermitência maior, e, o mais grave, mais vidas serão sacrificadas com consequências econômicas e sociais.

Na base da quarentena moderada estão as falhas de coordenação e de planejamento das ações emergenciais de enfrentamento do vírus mencionadas, em grande medida devido à falta de compreensão por parte do Governo Federal de que a crise econômica é provocada pelo vírus e não pelas medidas de isolamento social, como se houvesse um trade-off entre emprego e saúde, aumentando o ruído entre os governadores e o Presidente e a gravidade das crises sanitária e econômica.

As medidas aprovadas pelo Congresso, como a Lei 13.982/2020 que institui quais são os beneficiários da renda básica de emergência de R$ 600,00 por três meses,  apesar de importantes para  mitigar os efeitos econômicos adversos da pandemia nos setores informais e vulneráveis da população, tem padecido de pouca agilidade na sua implementação. De acordo com a Nota Técnica nº 42 do Instituto Fiscal Independente (IFI) do Senado,   no início de maio foram pagos R$ 35,5 bilhões a 50 milhões de pessoas, enquanto 13,7 milhões continuavam em avaliação e 1 milhão de cadastros não haviam sido processados pela Dataprev. Pelo cenário base do IFI, em três meses (abril, maio e junho) o governo federal deverá gastar R$ 154,4 bilhões com a renda emergencial e beneficiar aproximadamente 80 milhões de pessoas. Com base  nestas estimativas, cerca de 30 milhões de pessoas ainda não haviam recebido a primeira parcela do auxílio no início de junho. É importante chamar atenção de que, em relação aos beneficiários do bolsa família,  o auxílio emergencial representou aumento de 200%, enquanto que, no caso do setor informal no Brasil, com renda média de RS 1.700,00, a renda básica significou redução de 65,5% para os que foram afetados pelo distanciamento social.  Em suma, todos estes fatores, ou seja, entraves operacionais no acesso ao auxílio e perda de renda, tem forçado as famílias carentes a saírem do isolamento social, acentuando as crises sanitária e econômica.

Outro setor vulnerável e extremamente estratégico em função de sua capacidade de geração de emprego e renda são as micro e pequenas empresas. De acordo com pesquisa realizada pelo SEBRAE, de 30 de abril a 5 de maio,  mais de 88%  das micro (ME) e pequenas (EPP) empresas responderam que tiveram queda de faturamento provocada pela pandemia.  Das ME e EPP, 52% consideraram que neste momento de crise o governo deveria aumentar as linhas de crédito, 63% que estes empréstimos deveriam ser sem juros e 68,1% que as empresas precisariam destes recursos para manter seus negócios e evitar demissões.  Ainda segundo a pesquisa, desde o começo da crise, 37% dessas empresas buscaram empréstimos, mas 22% não conseguiram, 10% os processos encontram-se em avaliação pela instituição financeira e 5% obtiveram sucesso. Ou seja, dos 17 milhões de pequenos negócios do Brasil,  quase 7 milhões  procuraram crédito no período e só 980 mil conseguiram o empréstimo.

A pesquisa do Sebrae também registrou que a menor taxa de sucesso das solicitações de crédito é a dos bancos públicos com 9,5%, contra 11,8% dos bancos privados e 30,6% das Cooperativas de Crédito. Não há dúvida que esta dificuldade de acesso a crédito em um momento de agravamento da crise sanitária e econômica colocará em risco a sobrevivência da maioria das ME e EPP do país, acarretando um elevado custo econômico e social.

O mais crítico de tudo isso é que não faz o menor sentido as ME e EPP estarem correndo risco de sobrevivência, uma vez que o Banco Central pode comprar a carteira de crédito dos bancos comerciais ou instituir um fundo garantidor que assuma 100% do risco das operações bancárias com essas empresas. Tais medidas permitiriam a transferência do risco de crédito para o BC, aumentando a oferta de crédito às MPEs. As taxas de juros seriam subsidiadas com prazo mínimo de carência de um ano, uma vez que o processo de recuperação será lento e as empresas precisarão recuperar o seu faturamento. Esta política de subsídio para assegurar a manutenção dos pequenos negócios e empregos vem sendo adotada em vários países e o Brasil dispõe de recursos para tanto, na medida que pode se endividar internamente e emitir moeda, desde que haja autorização do Congresso.

É importante salientar, ainda, que no debate das medidas econômicas para mitigar os efeitos da pandemia sobre os setores mais vulneráveis, com todas as limitações acima apontadas, que podem agravar as crises sanitária e econômica, é desconsiderado pela maioria dos analistas o efeito multiplicador dessas políticas sobre o emprego e a renda da economia. Geralmente o foco é na despesa e pouco se considera a receita gerada pelo gasto. Estudo recente realizado pelo CEDEPLAR,   ao avaliar os impactos econômicos positivos da política de renda básica emergencial, chegou à seguinte conclusão:

“As projeções realizadas nesse estudo contribuem para o debate público ao realçar os impactos econômicos positivos desse tipo de medida, que devem ser considerados na decisão da possível extensão da medida, principalmente quanto ao tempo do benefício. Muitas vezes a ótica meramente contábil desconsidera esses impactos, tomando decisões puramente baseadas no custo da política e seu impacto fiscal no déficit público, esquecendo-se que o gasto do governo tem potencial de gerar impacto na própria receita de impostos e em amplos segmentos da economia. Manter a renda de famílias vulneráveis diante da pandemia de Covid19 e seus impactos, que tendem a se prolongar, é evitar quedas ainda mais proeminentes na atividade econômica e maior deterioração das contas públicas. Portanto, consideramos que existem evidências econômicas a favor da manutenção do benefício de renda ao longo do ano de 2020, mesmo implicando aumento do endividamento no ano corrente, ou mesmo que seja financiado por emissão de moeda”.

Em síntese, durante a pandemia o impacto sobre o PIB e o emprego no Brasil pode atingir patamares sem precedentes, em função dos problemas de coordenação da política de isolamento social como também pela insuficiência e falta de agilidade das políticas de mitigação econômica,  e, o mais grave, tais problemas não são causados por restrições técnicas (fiscais), mas sim por falta de decisão política e de desapego a velhos dogmas..

Reynaldo Rubem Ferreira Jr (Professor da Faculdade de Economia, Administração e Contabilidade – FEAC – da UFAL)

Todas as postagens são de inteira responsabilidade do blogueiro.

A economia brasileira em tempos de Covid-19: o antes, o durante e o “depois” (I)

10 de julho de 2020 8:22 por Redação

Na tentativa de se construir uma linha do tempo para avaliar os possíveis efeitos do Covid-19 na economia brasileira, tendo a consciência dos riscos que tal exercício envolve já que há muita incerteza quanto ao que ocorrerá no curto prazo (durante) e, principalmente, no médio e longo prazos (“depois”), é preciso que seja feita uma análise sucinta de como se encontrava nossa economia antes de sermos afetados pela pandemia. Neste primeiro artigo, trataremos do antes da crise. No segundo, de como a crise está se desdobrando e quais as políticas de mitigação que estão sendo adotadas pelo governo federal. Por fim, discutirei os desafios do pós-crise a serem enfrentados pelas políticas de recuperação econômica.

Antes da crise do Covid-19 havia a expectativa por parte do mercado que cresceríamos cerca de 2,0% em 2020. Para melhor entender o que isto representa do ponto de vista cíclico é preciso tomar como marco de referência o período recessivo que vai, segundo a marcação cíclica da Fundação Getúlio Vargas, do segundo trimestre de 2014 ao último trimestre de 2016. Como pode ser observado no gráfico nº 1, neste interregno, o PIB do país acumulou queda de -7,0%. Desde 2017, contudo, a economia vem crescendo à taxa média de 1,2%, o que tem contribuído para a manutenção do hiato produto negativo em quase – 5,0. Caso o Brasil crescesse 2,0% em 2020, a taxa média de crescimento anual passaria de 1,2% para 1,4%aa. Estes dados deixam claro que antes do Covid-19 a economia brasileira encontrava-se em um ritmo lento de recuperação.

O índice médio da produção da indústria de transformação em 2019 encontrava-se 12,0% abaixo do registrado em 2014 e o seu nível de utilização da capacidade instalada, calculado pela FGV, estava em 75,0% contra 81,0% em 2014. O índice do volume de vendas no varejo, no mesmo período de comparação, era 5,0% menor. De acordo com estes dados, é possível perceber que os dois principais setores da economia ainda não haviam se recuperado completamente dos efeitos da recessão de 2014 a 2016, sendo o setor industrial o mais atingido.

Ao longo do período recessivo, a taxa de desemprego chegou a mais de 13% no final de 2016 e iniciou um processo lento de redução, desde então, alcançando no final de 2019 patamar acima de 11,0%, como pode ser visto no gráfico nº 2. Neste mesmo período, o índice de emprego formal manteve-se abaixo do nível atingido no início da recessão e a taxa de  informalidade chegou a quase 40,0% da força de trabalho. Outro dado importante a salientar diz respeito ao PIB per capita que em 2019 encontrava-se 4,5% abaixo do valor alcançado em 2011. Não é sem razão que a segundo decênio do século XXI está sendo considerada como a década perdida.

Do ponto de vista da política monetária, apesar da redução expressiva dos juros básicos realizada pelo Banco Central do Brasil, de 14,25% em 2015 para abaixo de 4% no início de 2020, os juros na ponta cobrados às empresas, principalmente as pequenas e médias, como também às famílias continuavam bastante elevados. Em termos de política fiscal, este período foi caracterizado pela austeridade fiscal, ancorada na polêmica hipótese da “contração fiscal expansionista”, com a instituição do teto dos gastos que praticamente anulou o caráter contracíclico dos gastos públicos por um período de vinte anos. Como os investimentos do governo são gastos discricionários, segundo os dados do Observatório de Política Fiscal do IBRE-FGV, houve diminuição pronunciada no período em análise passando de 3,95% do PIB em 2014 para 2,26% em 2019. A taxa de investimento privado também foi fortemente impactada saindo do patamar de 19,87% do PIB para 15,36%, respectivamente.

No cerne da crítica feita pelos economistas heterodoxos à estagnação da economia brasileira, observada no período pós-recessivo, está a política econômica liberal do governo, adotada a partir de 2015. Para estes economistas, a política de flexibilização do mercado de trabalho tem contribuído para precarizar as relações trabalhistas assim como para aumentar a informalidade (uberização) do emprego, com implicações negativas para as receitas da previdência. Por sua vez, a política de austeridade fiscal, como apontado acima, vem solapando os investimentos públicos em infraestrutura e as transferências sociais, com cortes nas áreas de saúde e educação, enquanto o sistema tributário continua fortemente regressivo.

A resposta dos economistas liberais é que o governo não dispõe de recursos, em função do elevado déficit público, para financiar as políticas sociais e os investimentos públicos em infraestrutura, saneamento e C&T. Ademais, a redução significativa dos gastos públicos por meio das reformas estruturais permitiria a diminuição do risco país com implicações positivas sobre as taxas de juros de longo prazo e, consequentemente, sobre as expectativas dos investidores e “animal spirits” dos empresários.

Nos últimos anos esta visão mais ortodoxa tem sofrido críticas importantes dentro do próprio mainstream macroeconômico. Lara Resende, um economista liberal brasileiro, tem sido bastante duro em sua crítica à política econômica adotada nos últimos anos no Brasil, assim como em relação às restrições fiscais apontadas pela equipe econômica do governo frente aos desafios colocados pelo Covid-19. Em artigo recentemente publicado no Valor Econômico de 27/03/2020, ele escreveu:

A questão das fontes de recursos para as despesas do governo é um falso problema. É resultado de um arcabouço teórico equivocado e anacrônico que foi erigido em dogma dos economistas hegemônicos nos últimos anos. A tese de que o governo não pode gastar se não dispuser de fontes fiscais, de que é sempre preciso equilibrar o orçamento para evitar a expansão da dívida pública interna, não tem qualquer validade lógica ou empírica. É um mito com pretensão científica. Um mito transformado em dogma para restringir a ação do Estado. Trata-se de um mito com altos custos em tempos normais, mas que em situações extraordinárias, como a atual pandemia, ao impedir a adoção de políticas públicas indispensáveis para minorar a crise e o sofrimento, é desastroso.

A visão do poder soberano que tem o país de emitir sua própria moeda de conta (fiduciária), usada pelas empresas e pessoas para liquidar suas obrigações tributárias e realizar seus contratos, põe em xeque a tese das restrições no financiamento dos gastos públicos. Tal crítica à suposta restrição, apesar de não ser nova, tem estado atualmente em voga com a Teoria Monetária Moderna (TMM).  A controvérsia suscitada pela TMM parece encontrar, momentaneamente, abrigo nas hostes liberais na medida que passam a defender a necessária adoção de pacotes de salvamento trilionários demonstrando a total ausência da propalada restrição financeira do Estado.

Em síntese, a partir dos dados discutidos acima, fica claro que a economia brasileira apresentava sinais de estagnação econômica antes da pandemia e que isto não poderá ser desconsiderado, tanto na análise dos impactos do Covid-19 na economia brasileira como no esforço de mitigação por parte da políticas macroeconômicas para a preservação de vidas humanas e da estrutura econômica. Este, como colocado no início, será o tema do nosso próximo artigo.

Reynaldo Rubem Ferreira Jr (Professor da Faculdade de Economia, Administração e Contabilidade – FEAC – da UFAL)

Todas as postagens são de inteira responsabilidade do blogueiro.

A macroeconomia do Covid-19

10 de julho de 2020 8:22 por Redação

Caro leitor, o título deste artigo pode lhe parecer meio estranho, mas, de fato, existem algumas especificidades na crise desencadeada pelo Covid-19 que configuram uma dinâmica macroeconômica bastante peculiar, com relação a observada nas crises globais anteriores como a de 2008 e de 1930.

A primeira especificidade é a velocidade com que impactou na economia global. O Covid-19 tem rapidamente se difundido pelo mundo e gerado choques econômicos com ritmo e intensidade acima dos observados na crise de 2008 e na grande depressão dos anos de 1930. Como chama atenção Nouriel Roubini (2020, p.1), em artigo publicado no Project Syndicate, “[…] nesses dois episódios anteriores, os mercados de ações caíram 50% ou mais, os mercados de crédito congelaram, as falências em massa seguiram- se, as taxas de desemprego subiram acima de 10%, e o PIB contraiu a uma taxa anualizada de 10% ou mais. Mas tudo isso levou cerca de três anos para acontecer. Na crise atual, resultados macroeconômicos e financeiros igualmente terríveis se materializaram em três semanas”. Não é sem razão que o Fundo Monetário Internacional (FMI), uma instituição bastante conservadora em suas projeções, estima em seu último World Economic Outlook queda no PIB mundial da ordem de -3,0%, em 2020.

O caráter sem precedentes dessa crise, que em termos de impacto econômico global está se configurando ser de dimensão maior que a gripe espanhola de 1918 (a qual ocorreu em meio a primeira Guerra Mundial), também está comprometendo a capacidade de se modelar com maior acurácia os desdobramentos econômicos e sociais do processo de propagação da doença. No início da crise, quando apenas a China havia sido atingida, a maioria dos analistas trabalhava com recuperação em V, queda acentuada e rápida retomada. Hoje já se fala em U, alguma demora para retomar, e alguns arriscam um L, crise com um período prolongado de estagnação econômica. Os mais pessimistas falam da possibilidade de um I, ou seja, queda por um bom tempo em função da crise financeira. O grande complicador e que explica esse amplo espectro de possibilidades é que o fator indutor da crise é um vírus em mutação, o qual tem se propagado em uma velocidade muito grande pelo mundo, impondo uma dinâmica macroeconômica bastante peculiar.

A pandemia provocada pelo Covid-19, também de maneira inédita, deixou as pessoas totalmente impotentes. Ou seja, não se pode transferir ao indivíduo, ante um problema de saúde pública, a decisão de ficar em casa e morrer de fome ou sair para trabalhar e correr o risco de ser  infectado pelo vírus. Principalmente quando se sabe que não há trade-off entre isolamento social (quarentena) e emprego. Em outras palavras, mesmo que a  população esteja disposta a correr risco de vida e decida trabalhar, o colapso do sistema de saúde poderá ter pronunciadas implicações econômicas e sociais. Aliás, as lições tiradas de países como EUA, Itália, Espanha, Reino Unido, são as de que a demora na adoção de medidas de isolamento social tem levado a um maior número de mortos e consequências econômicas muito mais severas. Para estes países, o FMI projeta retrações de -5,9%, -9,1%, -8,0% e -6,5%, respectivamente, em 2020.

Penso que a principal especificidade da crise está em sua natureza. Diferentemente da crise de 2008, uma crise financeira que se transformou em uma crise nos setores produtivos, a singularidade dessa crise em relação às demais está em seu gatilho. Não foi desencadeada por um choque de oferta decorrente de problemas na capacidade produtiva da economia, como sempre ocorre em economias atingidas por guerras, ou por razões de estouros de bolhas financeiras, como foi o caso da de 2008.  Os choques simultâneos, praticamente sem precedentes em escala global na oferta e demanda agregadas das economias, foram determinados, como já assinalado, pela estratégia de isolamento social (quarentena) adotada pelos governos para mitigar o contágio do Covid-19 na população, evitar o colapso do sistema de saúde e, deste modo, minimizar o número de mortos. Logo, a natureza desta crise é de saúde pública, com reflexos econômicos e sociais bastante perversos.

Tal natureza, por sua vez, traz duas implicações importantes. A primeira é que o isolamento social impõe uma dinâmica macroeconômica praticamente inédita na medida que  atinge tanto as cadeias de produção, uma vez que setores onde há maior aglomeração na prestação de serviços são paralisados, como também a demanda por bens e serviços já que as pessoas ficam confinadas em suas casas (vale ressaltar que é bem verdade que os setores não são atingidos na mesma proporção, uma vez que os reflexos sobre a oferta dependerão dos níveis de automação e de digitalização – home office – ou da maior interação homem-máquina, proeminentes nos setores industrial e do agronegócio e de menor relevância, principalmente no setor de serviços nas economias em desenvolvimento).

A segunda implicação da natureza dessa crise é que ao longo do surto viral as políticas macroeconômicas de mitigação da crise não terão um caráter keynesiano contracíclico, de estímulo à atividade econômica, tipicamente adotadas nas crises econômicas globais, mas de preservação da vida das pessoas e da estrutura econômica e social.  Em outras palavras, as políticas públicas terão que  evitar tanto a paralisia do sistema de saúde, como os efeitos negativos do lockdown sobre as famílias, empresas e bancos. Da eficácia ou não da intervenção do Estado na economia basicamente dependerá a capacidade de retomada da economia no pós-Covid-19. No caso de sucesso, sobreviveremos à tempestade, mas restará o dia seguinte que também exigirá um conjunto de medidas de estímulo à demanda, agora sim de caráter contracíclico, uma vez que o problema não será de oferta, dado que a capacidade produtiva da economia terá sido preservada.

Em artigo recente em parceria com a professora Luciana Santa Rita (https://portalseer.ufba.br/index.php/nit/article/view/36183 ) concluímos que a macroeconomia do Covid-19 deixou, mais uma vez, explícito que a redução expressiva da participação do Estado nos investimentos e políticas sociais não se sustenta em momentos de crise como o vivido atualmente. Nestes momentos, “somos todos keynesianos!”. Isso reforça a visão dos que sustentam o modelo empreendedor, como é o nosso caso, no qual há combinação virtuosa entre o Estado empreendedor, os empreendimentos privados e o bem-estar social. Essa é uma lição extremamente relevante que precisa estar no centro do debate que inexoravelmente surgirá no mundo pós-Covid-19.

Reynaldo Rubem Ferreira Jr (Professor da Faculdade de Economia, Administração e Contabilidade – FEAC – da UFAL)

Todas as postagens são de inteira responsabilidade do blogueiro.