Por Bruno Nomura, do Diadorim
Ao entardecer de segunda a quinta-feira, em Teresina, Sheilla Souza de Jesus troca as tesouras do salão por chamativas luvas azuis para se dedicar à paixão de sua vida: o futebol. A baiana de Serrinha é considerada a primeira mulher transexual a jogar no futebol profissional brasileiro. Hoje, aos 31 anos, a goleira concilia a rotina de cabeleireira com treinos e partidas. Entretanto, diante do mais novo capítulo da discussão sobre a transexualidade no esporte, o futuro de Sheilla e outras mulheres trans atletas é nebuloso.
No fim de junho, a Federação Internacional de Natação (Fina) aprovou um documento que veda a participação de mulheres trans que passaram pela puberdade sem bloqueadores de hormônios masculinos. No Brasil, o bloqueio hormonal no início da puberdade sequer está disponível para todos os adolescentes, já que é realizado apenas em caráter experimental em protocolos de pesquisa, de acordo com resolução do Conselho Federal de Medicina (CFM).
O texto da Fina diz que buscou manter a “justiça competitiva” como objetivo primário nas competições da entidade. A medida, referendada por 71,5% de seus membros, vai na contramão do tom adotado pelo Comitê Olímpico Internacional (COI) — que, na visão de organizações de medicina do esporte, preferiu priorizar os direitos humanos.
Em novembro de 2021, o COI divulgou novas diretrizes para a elegibilidade de atletas trans baseadas em dez princípios básicos. Entre eles está a não presunção de que esses atletas teriam vantagens competitivas até que evidências científicas robustas provem o contrário. Com isso, o comitê abandonou um documento de 2015 que fixava níveis máximos de testosterona a serem mantidos pelas atletas. Agora, o temor é que a decisão da Fina abra caminho para medidas semelhantes, que criem barreiras permanentes para mulheres trans em outros esportes.
De fato, ainda não há consenso científico de que as atletas trans realmente têm vantagens reais sobre as cis. Ainda assim, é comum ouvir de críticos a queixa de que aquelas seriam mais altas e fortes, o que tornaria a competição injusta — sem considerar que, para além de não ser propriamente uma escolha, a transição de gênero não concede habilidades apenas desenvolvidas ao longo de anos de treinamento.
“Para uma equipe confiar em mim como goleira, eu tenho que ter habilidade, saber jogar. O que eu mais escuto é ‘vou virar trans, colocar seio, colocar mega hair para poder disputar no futebol feminino’. Só que eles não sabem que isso não é o suficiente. Não é só força física, tem que ter técnica”, critica Sheilla.
‘Virar homem’
Por ser “bem feminina” desde criança, os pais de Sheilla passaram a obrigá-la a jogar futebol por volta dos 10 anos. “Para eu virar homem, na cabeça deles”, recorda a goleira. Ironicamente, foi ao longo desse período nos gramados que ela passou a se descobrir enquanto jogadora e mulher trans.
A transição de gênero ocorreu a partir dos 21 anos. Ainda no futebol amador, Sheilla migrou dos times masculinos para os femininos, mas sentiu julgamentos preconceituosos na época: “Diziam que eu não podia jogar porque era homem, homem jogando no meio de mulher”. Foi só em 2017, quando conseguiu retificar seus prenome e gênero na certidão de nascimento, que a goleira passou a ser aceita nos campeonatos femininos. A nova documentação abriu portas para sua estreia pelo Desportiva Lusaca, de Camaçari (BA), em 2020. Hoje ela defende o Aliança Santa Fé, de Teresina.
De acordo com a atleta, a condição para sua permanência como federada é a estabelecida pelo COI em 2015: a manutenção dos níveis de testosterona abaixo de dez nanomols por litro de sangue nos últimos 12 meses. Contudo, o fato de ter transitado de gênero aos 21 anos a impediria de participar de competições oficiais, caso as novas regras da Fina também fossem aplicadas ao futebol.
Campo disputado
Para além do campo da ciência, a participação de atletas trans é um assunto disputado há anos no meio político. O caso mais emblemático é o da jogadora de vôlei Tifanny Abreu, a primeira — e única, até o momento — a participar da Superliga Feminina, principal competição do esporte no país. Apesar de ter recebido autorização da Federação Internacional de Vôlei para competir em times femininos, sua presença foi publicamente criticada por alguns colegas.
Além disso, Tifanny motivou a apresentação de uma série de projetos de lei na Câmara dos Deputados e em Assembleias Legislativas que tentam estabelecer o sexo biológico como o único critério definidor do gênero nas competidores. Em São Paulo, os deputados estaduais chegaram a aprovar a tramitação da pauta na casa em regime de urgência. A votação do projeto, no entanto, vem sendo adiada desde 2020.
Se as tentativas de cercear a participação das atletas trans são motivo de preocupação por um lado, por outro algumas delas já estão, na prática, impedidas de competir diante da exigência constante de exames e da necessidade de acompanhamento médico. É o caso da jogadora de vôlei Mabelly Gonçalo de Souza, de 32 anos, moradora de Pinhais (PR). Ela estrearia na última temporada da Superliga, mas só soube no aeroporto, a caminho do jogo, que não poderia disputar, depois de semanas de treino pesado.
À época, a Confederação Brasileira de Voleibol (CBV) afirmou que Mabelly não apresentou os 12 testes realizados em meses consecutivos para provar que seus níveis de testosterona estavam dentro do limite. A jogadora diz que avisou previamente o Curitiba Vôlei que não dispunha de todos os exames, mas o clube teria garantido que toda a documentação estava em ordem. “Eu chorava todos os dias. Deu vontade de parar, desistir. Mas é o que eu quero, é o que eu sei fazer, jogar vôlei”, pontua.
Foi por volta dos 15 anos que Mabelly passou a treinar em um time amador de sua cidade, a convite de um professor de educação física. Iniciou transição de gênero tempos depois, aos 20, despertando olhares de estranhamento enquanto ainda jogava entre homens: “Eu já estava transformada e não me sentia bem. O povo olhava e falava: ‘Nossa, uma mulher jogando com os meninos’. Era estranho.”
Diante da negativa da CBV, a paranaense continua inapta para disputar competições oficiais por times femininos — situação que não deve mudar por enquanto, já que ela precisa bancar sozinha todo o custo do processo. “Sei que é meu sonho, que eu tenho que correr atrás, mas às vezes não tenho dinheiro para fazer os exames e nem para comprar o remédio. E se não faço um mês de exame, eu zero, tenho que voltar desde o começo”, diz a jogadora, que vai assim postergando, à força, seus planos de viver do vôlei.
Fair play?
Buscar a igualdade de competição é importante, mas a questão que tem sido usada para excluir atletas trans parte de uma premissa fracassada, analisa o jurista Vinícius Calixto, autor do livro “Lex Sportiva e Direitos Humanos”. “Essa visão de equidade ainda considera que todos são exatamente iguais no seu ponto de partida. O que, se a gente fizer uma análise crítica e investigativa, sempre foi falso”, avalia. Ele cita inúmeros fatores biológicos como peso, altura, gênero e raça que são naturalmente diferentes: “Cada atleta tem suas próprias condições e isso faz com que tenham vantagens, desvantagens.”
Com isso, a própria divisão binária entre homens e mulheres tende a ser cada vez mais questionada, diz o jurista. “A gente tem um grande espectro de gêneros na sociedade. O COI já percebeu que não pode ficar alicerçado nessa base binária para sempre. O esporte não está à margem da sociedade, a sociedade caminha e o esporte tem que caminhar também”, argumenta.
Calixto reforça que o COI encoraja as federações internacionais a se regularem, compreendendo que cada esporte tem suas particularidades e pode demandar atuações diferentes. Porém, no caso das atletas trans, as tentativas de barrá-las produzem efeitos para além do esporte. “Quem tem poder de regulação tem poder de influência, de passar uma mensagem. E as novas regras da Fina passam um recado de segregação para a sociedade. Isso só reforça a vulnerabilidade de um grupo que já é extremamente vulnerável”, pondera.
Diante dessa complexa equação entre inclusão e igualdade de competição, a goleira Sheilla diz que é otimista e que gostaria que as federações olhassem com “mais carinho” para o tema que, um dia, pode impedi-la de jogar. Futuramente, ela projeta ser treinadora de novas goleiras. “O esporte me fortalece, é meu porto seguro. Hoje, o futebol para mim é vida”, assegura.
Assim como Sheilla, Mabelly também não poderia participar de competições oficiais se as restrições da Fina fossem adotadas no vôlei. Para o futuro, ela sonha apenas com um mundo em que a deixem jogar: “A gente sofre muito preconceito. Penso em um futuro de inclusão, de empatia, porque a gente ainda precisa muito disso.”