sábado 23 de novembro de 2024

Em Agosto nos Vemos, de Gabriel García Márquez

Gabriel Garcia Márquez escreveu livros memoráveis, fonte de estudos para o estilo literário do realismo fantástico, uma vez que foi um de seus mais importantes expoentes, mesmo dizendo que sua obra é totalmente baseada na realidade
Reprodução

Por Solemar Oliveira, do Bula Revista

Eu li “Em Agosto nos Vemos”, a obra póstuma de Gabriel García Márquez e um dos livros mais esperados do ano. O prefácio parece avisar que o que virá pela frente não é tão bom quanto o restante da obra de Gabo, mas que precisa ser publicado. Afinal, é um texto do ganhador do Nobel de Literatura, autor de “Cem Anos de Solidão” e um dos maiores escritores de todos os tempos. O texto pediu para ser publicado, sussurrou para a prole do homem e venceu. No entanto, os filhos se consideram traidores do pedido do pai de que o livro permanecesse na gaveta, guardado pela eternidade, e esperam que os leitores os redimam de seu terrível pecado. Por aí, entendemos que a situação é bastante complicada.

Ana Magdalena Bach, personagem central do livro de Márquez, é uma mãe de dois filhos, casada há mais de vinte anos com um marido aparentemente perfeito, e tem uma vida feliz e realizada. No entanto, ao viajar para uma ilha onde sua mãe foi enterrada, em atendimento ao seu desejo, para depositar sistematicamente uma porção anual de gladíolos em seu túmulo, e ao permanecer por um dia sozinha em um lugar onde não é conhecida por ninguém, desperta um desejo que nunca sentiu: o de conhecer outro homem profundamente, uma vez que só amou o marido durante toda a sua vida.

Ana Magdalena tem 46 anos quando o livro começa, mas envelhece ao longo da narrativa, uma vez que suas aventuras acontecem apenas uma vez a cada ano, sempre em agosto, no dia 16, para ser mais preciso. Nas primeiras páginas do livro, buscamos Gabo, seu estilo único, sua criatividade magnífica, sua voz narrativa peculiar e as personagens incomuns. Mas não encontramos. Ana Magdalena carece de profundidade, e temos a impressão, a todo tempo, de que o livro tem a intenção de avançar. É uma promessa. Nada de fato acontece. Existem passagens eloquentes, com densidade lírica, mas não nos apaixonamos pela narrativa, e Ana não sobrevive em nosso imaginário. Dois minutos após a leitura completa do livro, não estamos mais interessados na protagonista. Ela evapora; simplesmente não nos cativou ou deixou sua marca. Ela não tem nada de, por exemplo, Valéria, do livro “Caderno Proibido”, de Alba de Céspedes, onde temos uma mulher como Ana Magdalena, que deseja algo, apesar de não ter cedido tanto aos desejos quanto a protagonista de “Em Agosto nos Vemos”, mas é tridimensional, densa, real e completamente empática. Um bom exemplo para confrontarmos protagonistas e reconhecermos como Ana deveria ser explorada.

Gabo flerta com cinema, música e literatura, citando filmes e diretores, músicas e compositores, escritores e livros, mas não há desenvolvimento do conceito; estaciona na citação. Ana Magdalena gosta e entende de música, também gosta de literatura e parece ser uma grande leitora. Ela poderia ter se dedicado à arte da escrita ou da crítica, mas não o fez, e não reconhecemos se essa é uma frustração sua. Ela tem a idade certa para se saber consolidada intelectualmente e resolvida na vida. Ela é uma personagem interessante, uma mulher que cultua uma tríade cultural crucial e, portanto, tem algo a dizer. Sua presença não deveria passar em branco. Mas passa.

Gabriel García Márquez
Em Agosto nos Vemos, de Gabriel García Márquez (Record, 132 páginas)

A frustração de Ana Magdalena se desenvolve num fiasco de história. Ela é confundida com uma prostituta pelo primeiro homem com quem faz amor. Para outro estilo de narrativa, um suspense ou um drama psicológico, essa premissa seria inusitada e terrivelmente interessante. Mas aqui, não entendemos para que serve. Talvez para que ela, além de perceber que envelhece, não seja amada como uma mulher que também deseja a liberdade como um direito seu, indiscutível, ou simplesmente deseja o prazer.

Certa vez, Gabo disse que teve um vislumbre de toda a história de “Cem Anos de Solidão”: “Naquele dia, ainda não havia dirigido por um longo percurso quando, ‘de lugar nenhum’, a primeira sentença de um romance lhe flutuou na mente. Por trás dela, invisível mas palpável, estava o romance inteiro, como se tivesse sido ditado — baixado — do além”. A cobrança sobre o autor de uma obra-prima é sempre maior do que sobre um escritor comum. Mas não é fácil repetir o feito. E, no caso de Gabo, por duas vezes ele escreveu um livro impecável. Por isso a exigência de que “Em Agosto nos Vemos” seja excelente. Mas o escritor sofre de alguns desvios estéticos e comete deslizes inesperados. Como no caso da escolha de adjetivos, em muitos momentos incoerentes ou ásperos e inconvenientes para o sentido do texto, ou ainda, escassos de harmonia e equilíbrio. É o caso de “coração ouriçado” ou “rosto de mãe outonal”, entre outros.

Há ainda algumas incursões intuitivas pouco exploradas que dariam sequência à história contada e poderiam ser interessantes. Elas são abandonadas, se é que existem de fato. Por exemplo, Ana não deixa o instinto materno depois do sexo proibido. Ela contempla seu parceiro enquanto Gabo narra: “O homem, dormindo de lado e com as pernas encolhidas, pareceu a ela um órfão enorme, o que a impediu de refrear uma rajada de compaixão”. Ou, em outro momento, uma mistura do grotesco e do sensual, quando Gabo relaciona as escapadas amorosas de Ana exatamente depois de visitar o túmulo de sua mãe morta, figura irrepreensível para a filha, que representa o exemplo moralista da mulher que não erra.

Gabriel Garcia Márquez escreveu livros memoráveis, fonte de estudos para o estilo literário do realismo fantástico, uma vez que foi um de seus mais importantes expoentes, mesmo dizendo que sua obra é totalmente baseada na realidade. Escreveu obras de tamanho imensurável como “O Amor nos Tempos do Cólera”, “Do Amor e Outros Demônios”, “Crônica de uma Morte Anunciada”, mas também escreveu essa novela, “Em Agosto nos Vemos”, preparada da mesma receita e massa de “Memória de Minhas Putas Tristes”, que é um livro menor. Ainda assim, pode-se declarar que os filhos estão perdoados pelos simples fatos de nos fazer, leitores que admiram a obra de Gabo, reviver sua destreza criativa e capacidade de contar histórias, mesmo que em menor intensidade ou em um conjunto mais distinto de momentos marcantes, nesse novo e último (acredito) livro. Se pudermos revisitar o velho mestre, que seja em agosto.


Livro: Em Agosto nos Vemos
Autor: Gabriel García Márquez
Tradução: Eric Nepomuceno
Páginas: 132 páginas
Editora: Record
Nota: 6,5/10

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