A afirmação do presidente Lula de que não existem dois Brasis deve ser lida menos como análise da realidade do que como generoso e republicano projeto de reconstrução nacional ao qual dedicará seu governo, por cujo sucesso todos torcemos, porque desafiará sua conhecida capacidade conciliatória, e porá em xeque muitos dos apoios que contribuíram para a escalada eleitoral.
O fato objetivo é que estamos em face de uma sociedade dilacerada povoando diversos Brasis. A clivagem é política, tanto quanto econômica e ideológica, e a polarização que adjetiva o pleito presidencial é seu retrato presente, talvez o mais agudo, embora não encerre todo o drama. Essa clivagem, porém, não é fenômeno de nossos dias: ela apenas exacerba, pondo-os a nu, os vícios de nossa formação histórica e os crimes de nossa organização político-social, cujos sinais de esgarçamento, de velha data, nos recusamos a reconhecer. Para além dos aspectos mais clamorosos, presentes no Brasil de hoje, sua superação será obra de longo prazo na esteira da construção, coletiva, de um projeto nacional de sociedade democrática caminhando para a superação das desigualdades econômicas e sociais.
A questão imediata e crucial a considerar é a consolidação da extrema-direita, fenômeno que a todos parecia fora de cogitação. Derrotada eleitoralmente, ela sobrevive como projeto político. Agora todos parecem preocupados com os rumos da polarização, até a direita, que, associada à clássica inconsequência dos liberais, principalmente desde 2014 com a candidatura Aécio Neves, formou uma aliança com a extrema-direita tupiniquim na expectativa de destruir o projeto petista de centro-esquerda, assim repetindo o erro crasso e fatal da socialdemocracia italiana, quando apoiou Mussolini na suposição de que o fascismo impediria a emergência dos trabalhadores e dos comunistas. Quem não aprende com a História está fadado a repetir seus erros.
O que sucedeu é história sabida, como conhecidas entre nós são as consequências da pregação reacionária que desaguou na ditadura militar instaurada em 1º de abril de 1964, tanto quanto o desdobramento do antipetismo palmilhando o caminho do bolsonarismo, que pela primeira vez na história republicana possibilitou a conquista do poder pela extrema-direita calcada em processo eleitoral legítimo. A liquidificação da socialdemocracia paulista e do chamado centro, e o fiasco da “terceira via”, são consequências de um mesmo fenômeno.
O curso de um processo político-social que apontava para uma experiência protofascista já ensaiada foi interrompido com a dramática vitória de Lula, que, no entanto, pôs de manifesto a incômoda clivagem nacional, mais ampla e mais profunda que o conflito de classes. O que será a história no curto e médio prazo dependerá do que puder ser feito nos próximos anos. A conciliação, indefinida, é reclamada como conditio sine qua non para a reconstrução nacional (econômica, política e ética), mas pouco avançará se governo, partidos e a sociedade organizada não se empenharem no enfrentamento à extrema-direita.
Nesta polarização há algo mais profundo do que sua aparência sugere, e seu significado não se esgota nos números do segundo turno. O processo eleitoral, embora muito relevante, não é o fenômeno todo, e o mais ingente é identificar a trama social que o produziu. Temos, sim, um país dividido, mas há algo mais a considerar. Os dados do segundo turno (na contundência do seu quase-empate) revelam o que não poderíamos ignorar, tantos são os sinais recentes de desarranjo: somos um país agudamente dividido, que vê desabar os mitos da história oficial, aquela escrita pelos pensadores da classe dominante: o Brasil dito cordial, generoso, acolhedor, é também o país da violência social e individual; o Brasil da “democracia racial” se descobre também racista, machista, xenófobo e assim se revelou na votação do incumbente, pervadindo todo o país, superando diferenciações regionais e de classe.
A unidade nacional (social, política e principalmente ideológica) é solapada diante de “dois brasis”: um que anseia pela democracia, e outro que opta pela ditadura; um que clama pelo futuro, e outro que se cinge ao passado; um Brasil da aposta na civilização e outro do apego à barbárie.
Somos, pois, vários Brasis, sem constituir de fato uma nação, porque somos uma formação populacional querendo ser um povo, mas divididos entre uma maioria esmagadora de pobres e muito pobres, de um lado, e de outro poucos ricos que tudo podem, porque controlam a economia e a política. É essa minoria mínima, habitante de um Brasil à parte, próprio dela, que formula as leis, que constitui o poder judiciário e aciona as forças armadas do Estado para a “manutenção da ordem”, isto é, a sustentação da sociedade fundada na exploração de classe. Este Brasil falou forte no dia 30 de outubro; felizmente foi contido, mas não está morto e estará vivíssimo na contestação ao governo Lula, contestação tanto mais implacável quanto mais o governo represente os anseios das grandes massas que o elegeram.
A polarização centro-esquerda + direita versus extrema-direita, nos termos em que se deu, redesenha o quadro político, mas não encerra, embora a magnifique, a divisão do país.
O pleito revelou a polarização eleitoral e esta deu os contornos dos diversos brasis e suas perigosas clivagens: o Brasil do Norte-Nordeste, majoritariamente pobre mas politicamente progressista, corrigindo a vontade reacionária do Sul industrializado e desenvolvido; um Brasil de camponeses sem terra e um Brasil do agronegócio exportador de commodities; o Brasil que se dilacera nas periferias, nas favelas, e no desemprego e na insegurança alimentar, e o Brasil endinheirado da Faria Lima. Um Brasil que desmata e um Brasil que planta alimentos, um Brasil que trabalha e produz e um Brasil que acumula lucros na especulação financeira. O Brasil das populações indígenas e o Brasil dos grileiros e dos garimpeiros clandestinos.
Afastou-se a ameaça imediata, representada pela possibilidade de reeleição do meliante; abriram-se as condições para a transição para um futuro governo de centro-esquerda, e o processo democrático tende a consolidar-se, se soubermos enfrentar os desafios postos. A “conciliação nacional”, cujos limites devem ser discutidos com a sociedade, não pode, uma vez mais, compreender a impunidade de criminosos. Não há “página a ser virada”, e toda iniciativa nesse sentido será recebida como uma desfeita às grandes massas que asseguraram a eleição de Lula, massas mobilizadas que serão, para além dos entendimentos de cúpula, fundamentais para a sustentação política do governo.
A história mostra, à saciedade, as consequências nefastas da conciliação como regra pétrea. O lamentável quadro da partidarização das forças armadas do Estado brasileiro, a partir da qual foi possível o projeto Bolsonaro, é resultado da conivência da República com o crime político. A própria sobrevivência do capitão como militar e político é exemplo contundente. A impunidade dos militares golpistas – que depuseram Vargas, que tentaram impedir a posse de Juscelino Kubitschek e de João Goulart e afinal nos impuseram 21 anos de uma ditadura, com um rol incontável de torturados e assassinados – é a matéria-prima a alimentar o bolsonarismo, que pede a “intervenção militar” contra a democracia.
Cabe insistir: a periculosidade da extrema-direita nativa não pode ser negligenciada. Conectada internacionalmente (com os neofascistas europeus e estadunidenses, em ascensão), ela conserva seu poder de mobilização, e sua insanidade continua sendo ouvida pela caserna; mantém bases populares e conta com o apoio majoritário e quase fanático das seitas neopentecostais; mantém-se influente no aparelho repressor em geral (polícia rodoviária, polícia federal, polícias civis e militares, milícias etc.), junto a atores do agronegócio, empresários do setor de serviços e setores da classe-média que se consideram “empreendedores”. E permanece unificada em torno de uma liderança carismática e insensata. Governa, entre outros, os maiores Estados da Federação e fez a maioria do Congresso Nacional. É adversário que não pode ser negligenciado e travará contra o governo Lula uma oposição tanto radical quanto irresponsável, porquanto não conhece limites políticos ou éticos.
De outra parte, a direita que se aliou a Lula no segundo turno já cobra seu preço, tentando impor-lhe o programa de uma “terceira via” derrotada no processo eleitoral, assim ameaçando o governo com os riscos da frustração de seu eleitorado. A Faria Lima, que já se assegurou da continuidade do presidente do Banco Central, quer mais: exige ser consultada sobre os gestores da política econômica. Na contramão dessas pressões, o governo terá que ter lado, e sua opção histórica é pelos pobres e pela soberania nacional, o que vai requerer de Lula a paciente e cuidadosa construção de uma nova frente em condições de enfrentar o quadro emergencial e ao mesmo tempo apontar para os eixos centrais da nova política, o que pode implicar alterações na arca de apoios.
A sustentação do governo dependerá em muito das articulações, campo no qual Lula tem revelado sua conhecida proficiência. Mas o presidente precisará fazer mais do que nos mandatos anteriores, muito em função do caráter de sua atual base de apoio político, desafiadoramente heterogênea. Carecerá de amplo e permanente apoio popular, dependente de sua gestão, dependente de seu diálogo com as massas e do que lhe puderem oferecer os partidos do campo progressista, desafiados a retomar o trabalho de base e a militância política, incompatível com a burocracia pública, em momento de grave recesso do movimento sindical e de crise das estruturas partidárias.
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Insolência – A mensagem do ainda ministro da defesa, redigida no péssimo vernáculo castrense, seria só um flato, se não fosse insolência pura. Quem atribuiu aos milicos o papel de fiscais da democracia brasileira? Fosse outro o TSE, a provocação teria sido devolvida