17 de março de 2024 10:35 por Da Redação
Por Raíssa França, do Diálogo Chino
Em 1976, uma sombra se erguia na paradisíaca costa de Maceió, em Alagoas: a chegada de uma fábrica para produzir PVC, material usado na fabricação de produtos plásticos.
Aberta pela Salgema Indústria Química S/A, a fábrica construída no bairro do Pontal da Barra — um trecho entre a laguna Mundaú e o mar — era estratégico, devido à abundância em seu subsolo de sal-gema, mineral fundamental para a produção do PVC.
Porém, quase cinco décadas depois, a área se tornaria palco de uma das maiores tragédias socioambientais do Brasil: a extração de sal-gema causou o afundamento do solo em áreas residenciais, provocando o deslocamento de 60 mil pessoas de cinco bairros pelo risco de desabamento de imóveis a partir de 2018. Em dezembro de 2023, o rompimento da Mina 18, às margens da laguna, trouxe ainda mais impactos às suas águas e entorno.
Agora, o caso volta a ter destaque com os trabalhos de uma comissão parlamentar de inquérito para investigar os danos ambientais da região e as possíveis falhas e omissões do governo e da companhia na extração de sal-gema. Ao mesmo tempo, as vítimas buscam justiça levando a empresa e suas subsidiárias internacionais a um tribunal na Holanda.
Para além dos impactos humanos, a área de restinga e manguezais, outrora uma paisagem idílica, foi transformada pelo avanço da indústria. “Era um verdadeiro paraíso ecológico”, disse ao Diálogo Chino o professor e ecologista aposentado José Geraldo Wanderley Marques, um dos mais longevos e firmes ativistas contrários ao empreendimento.
Nos manguezais, aves costeiras como garças, maçaricos e colhereiros, encontravam habitat. Além disso, caranguejos, siris e peixes dependiam desse ecossistema para se alimentar e reproduzir. Com a instalação da fábrica, a região tornou-se hostil para todas essas formas de vida.
“O que sobrou do que tinha antes? Nada”, completou Marques.
Negligência da empresa
A Salgema surgiu em 1970 de uma parceria do Banco Nacional do Desenvolvimento, o BNDES, com um empresário baiano e a Dupont, gigante química norte-americana. Mais tarde, a Petroquisa, subsidiária da estatal de petróleo Petrobras, assumiria a maior parte das ações.
Em meio à ditadura militar no Brasil, marcada pela propaganda do “milagre econômico”, a instalação da fábrica era promovida como um incentivo à economia local, lembra Marques, que na época ocupava um cargo na área ambiental do governo de Alagoas.
Além das reservas minerais, o local gerou interesse comercial pela facilidade de exportar sua produção a partir da infraestrutura portuária de Maceió e de acesso à água para uso no processo industrial.
O projeto ignorou potenciais riscos ambientais, segundo Marques, e ergueu-se antes que autoridades locais, como ele, pudessem tomar providências. O licenciamento ambiental no Brasil só começou a ser exigido a partir de 1981, com a Política Nacional do Meio Ambiente.
Em 2002, após uma fusão de empresas do setor, a fábrica foi incorporada à recém-criada Braskem, petroquímica hoje controlada pela Petrobras e a empreiteira Novonor, ex-Odebrecht, cujo passado remete a um dos maiores escândalos de corrupção da história no Brasil e na América Latina.
A própria Braskem foi mencionada nas investigações da Odebrecht. Segundo consta de um acordo de leniência da Braskem, assinado em novembro de 2016 com o Ministério Público Federal (MPF), ela usava caixa dois para pagar propina a políticos que pudessem celebrar contratos com a Petrobras — não relacionados à mineração de Maceió.
Impactos visíveis da mineração
Com o afundamento do solo já visível em 2018, a Braskem encerrou a extração de sal-gema no ano seguinte. Em 2020, ela assinou dois acordos com os ministérios públicos federal e estadual, comprometendo-se a reparar, mitigar e compensar potenciais danos socioambientais e urbanísticos de suas atividades.
Como resultado dos acordos, a empresa contratou uma consultoria para avaliar os impactos da extração de sal-gema. No documento, foram constatadas a perda de vegetação e a redução da população de animais, assoreamento da laguna e salinização de aquíferos.
Verônica Antunes, professora da Universidade Federal de Alagoas que acompanha o processo de mineração de sal-gema na região, afirma que 15 hectares de manguezais e restingas foram destruídos.
Antunes diz que a Braskem desconsiderou o impacto na área construída e em seu entorno e que as medidas de reparação propostas pela empresa não foram suficientes para recuperar a região. “Por mais que o agente causador [Braskem] tente repará-lo, a indenização não será suficiente para restabelecer a qualidade e as condições anteriores”, disse.
Em nota ao Diálogo Chino, a Braskem informou que foi concluído 70% do plano de fechamento das minas e que o trabalho será finalizado até meados de 2025. Em seu site, a empresa também listou medidas compensatórias que foram adotadas ou estão em andamento, como a criação de uma rede de monitoramento do uso sustentável da água e investimentos em projetos de plantio de mangue para a proteção de espécies locais.
Mas apesar das ações, pescadores e marisqueiras reclamam principalmente da falta do molusco sururu na região. Segundo a professora da Universidade Federal de Alagoas, Natallya Levino, o sururu é crucial para a subsistência dos moradores da laguna Mundaú, além de ajudar a purificar a água e, por isso, servir como um indicador da saúde do ecossistema aquático.
“Essa redução pode afetar toda a comunidade, já que aqueles que dependem do sururu têm vulnerabilidade financeira”, ressaltou Levino, que estuda os impactos do desastre ambiental em Maceió.
Neirevane Nunes é bióloga e membro do Movimento Unificado de Vítimas da Braskem. Ela morou por 40 anos em Bebedouro, um dos bairros de Maceió afetados pelas rachaduras, até ser retirada do local em 2021: “Recebemos uma indenização irrisória da Braskem depois de três anos lutando com o MPF por uma avaliação justa”.
Além de vítima do acidente, a bióloga também monitora a saúde ambiental da laguna. Embora faltem dados conclusivos, ela diz que o aumento da salinidade provocado pelo colapso da mina pode levar à desidratação do sururu, comprometendo sua sobrevivência.
“Além desse estresse fisiológico para o sururu conseguir se adaptar às alterações de salinidade, ele tem que enfrentar outros desafios como a poluição e contaminação histórica da laguna Mundaú”, acrescenta ela.
Suas margens também sofreram com a ocupação urbana, às vezes irregular, com a falta de saneamento e outras atividades econômicas, como o cultivo de cana-de-açúcar e a operação de frigoríficos.
Além disso, o ácido clorídrico, um subproduto no processo de produção de PVC, e várias outras substâncias, acabaram despejadas em suas águas ao longo de anos, segundo José Geraldo Marques. No entanto, ele e outros especialistas dizem faltar estudos dos danos dessa contaminação.
Em resposta ao Diálogo Chino, a Braskem garantiu que atende a todos os requisitos de licenciamento desde a sua instalação, mas ignorou perguntas sobre a contaminação, incluindo se a empresa despejou resíduos nas águas.
Pescar ou ‘morrer de barriga vazia’
Mauro Pedro dos Santos, de 53 anos, cresceu ajudando seu pai na pesca desde os 3 anos de idade e hoje é presidente da Colônia dos Pescadores do Bebedouro, localizada às margens da laguna — uma área hoje desocupada. Ele lembra com saudade os dias em que a região era adornada por manguezais imponentes. “Tinha uma espécie de mangue, conhecido como siriba, que chegava a 30 metros de altura”, conta.
Naquela época, uma variedade de espécies de caranguejos e peixes, incluindo a moreia, abundavam na região. “Quando chovia, os caranguejos saíam dos buracos, e nós os pegávamos. Uns vendiam, outros comiam”, conta Santos.
Apesar de reconhecer que diversos fatores contribuíram para o declínio de espécies, o pescador não isenta a Braskem de responsabilidade. Nos últimos 15 anos, os impactos tornaram-se mais evidentes, com os manguezais diminuindo e o solo cedendo pela mineração de sal-gema.
“Chegou ao ponto em que locais onde costumávamos colher caranguejos e caminhar entre os manguezais agora têm cinco a seis metros de profundidade. O manguezal praticamente desapareceu”, lamenta.
Enquanto aguardam a indenização prometida pela empresa, numa única parcela de apenas três salários mínimos — ou R$ 4.236 —, muitos pescadores desrespeitam a proibição de pesca e navegação próxima à mina 18, ao lado de Bebedouro, que colapsou em dezembro.
“As contas foram chegando, o dinheiro não entrava, e os pescadores preferiam ir pescar e garantir o sustento do que morrer de barriga vazia”, disse Santos.
Em 22 de fevereiro, autoridades locais reduziram a área proibida à pesca na laguna, declarando que o risco de um novo desastre havia sido controlado. Mas o pescador está cético com a nova diretriz, uma vez que os impactos ao local foram por décadas ignorados.
Segundo ele, a regra vai de encontro com a estratégia da Braskem, que defende que apenas uma área seja interditada, como forma de reduzir a compensação aos pescadores. Pelos cálculos de Santos, 1,8 mil pescadores deveriam ser indenizados por perderem sua fonte de sustento. A Braskem não comentou a situação dos pescadores.
“Eles apenas diminuíram a área afetada para dar a impressão de que não há riscos para os pescadores”, disse Santos. “Se houver mais afundamentos e pessoas morrerem, será mais barato para a empresa indenizar as famílias de cinco ou seis pessoas do que compensar todos os pescadores que perderam sua fonte de sustento”.