quinta-feira 21 de novembro de 2024

O sacristão

A vida livre que levou caminhando pelas ruas e não ter conhecido hospitais psiquiátricos, certamente, lhe garantiu força física e saúde

26 de dezembro de 2023 3:44 por Geraldo de Majella

Não se cure além da conta. Gente curada demais é chata. Todo mundo tem um pouco de loucura.

Nise da Silveira

Por Geraldo de Majella*

Anadia despertava com as badaladas do sino da igreja de Nossa Senhora do Rosário, dois minutos de badaladas, três vezes ao dia. O sacristão era o tio Jonas, irmão de meu pai, ainda criança o que me chamava atenção era a pontualidade no exercício do seu oficio, a limitação intelectual e o vigor físico.

Foto: Freepik

A formação católica da família é secular, o seu pai, Salvador Elysio (Dodô), foi zelador e sacristão da igreja Matriz de Nossa Senhora da Piedade, padroeira da cidade. A igreja do Rosário é uma capela, construída nas bordas do sítio onde morava a família.

A cidade tem três igrejas centenárias: a Matriz e duas capelas, a do Rosário e de São Sebastião. De tanto ouvir o meu tio falar que a igreja era dele me convenci que a família tinha uma igreja. Essa fantasia infantil foi mudando na adolescente quando os meus pais falaram o que realmente havia acontecido.

O tio Jonas era um sujeito que discursava sobre qualquer coisa, de comunicação fácil e loquaz. Era um personagem que não podia faltar aos almoços solenes onde pronunciava discursos vibrantes.

Falava sobre assuntos que ouvia nas suas andanças diárias pelas ruas de Anadia, quando sentava e pitava o seu cachimbo ou cigarro, reproduzia as falas com gestos teatrais. As suas falas me encantaram durante a infância e adolescência, passados tantos anos continuo encantado com a diversidade de assuntos e a maneira eloquente como se comunicava.

O relato bíblico de que participara, tendo nascido na barriga de uma baleia na arca de Noé, é o supremo realismo fantástico em Anadia. E se esse fato não fosse suficiente havia casado seiscentas vezes. Essas lembranças são  inapagáveis da minha memória.

A cidade tinha outros doidos, cada um com suas particularidades e idiossincrasias. Mas, às vezes que era perguntado sobre um determinado personagem, a resposta era definitiva e peremptória:

– É um pobre coitado. É doido do juízo. É doido de nascença!

Logo enveredava para um outro assunto que dissertava como se fosse um mestre no exercício da cátedra. Era capaz de discorrer sobre um acontecimento histórico da cidade ou sobre a vida de uma pessoa da família aparentando conhecer o assunto profundamente.

A vida livre que levou caminhando pelas ruas e o fato de não ter conhecido hospitais psiquiátricos, certamente, lhe garantiu força física e saúde, foi o que de melhor lhe poderia tem acontecido, viveu a sua loucura placidamente. Tinha nas ruas o seu espaço social e o reconhecimento público numa pequena sociedade do interior onde recebia cuidados e afetos.

Jonas, viveu num mundo onde poucos eram são como ele, os demais, certamente, eram doidos. A loucura estava nas outras pessoas, ele era normal de longe e de perto.

*É historiador

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1 Comentário

  • Salve o sineiro Jonas! Com certeza mais são que essa gente toda vivendo que segue suas vidinhas pequenas, quase nada… coisa de doido mesmo estragar esse mundo de possibilidades na mesmice das nossas vidas pequenas.

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