sexta-feira 27 de dezembro de 2024

Usina de Eduardo Queiroz Monteiro, com histórico de calotes e trabalho escravo, despeja centenas de famílias em Messias

Com reintegração de posse concedida pelo Judiciário alagoano, Grupo EQM expulsou agricultores

16 de dezembro de 2024 11:43 por Da Redação

Escombros de casa demolida por reintegração de posse em benefício da Usina Utinga; ao fundo, plantação de milho de agricultor familiar que foi expulso. Foto: Wanessa Oliveira

Por Wanessa Oliveira, da Mídia Caeté

Desde o último 22 de outubro, parte da cidade de Messias tem sido transformada em escombros, enquanto centenas de famílias que vivem da agricultura familiar se veem perdendo tudo o que construíram ou plantaram ao longo da vida. Trabalhadores rurais, crianças e idosos foram despejados em uma  reintegração de posse em benefício da Usina Utinga, que segue buscando promover uma nova “remessa” de expulsos, agora de uma área que sequer pertence à Usina, mas ao DNIT. Optando por não participar do conflito, o órgão se limita a informar que não solicitou a reintegração – mas tampouco a impedirá.

Esta é apenas uma ilustração de uma série de benevolências dos órgãos públicos em prol de usinas, ainda que impliquem num prejuízo social flagrante.

Ao longo da história, a Usina Utinga foi socorrida recorrentemente com recursos públicos do Estado de Alagoas, chegando ao montante de R$ 1,5 bi. Desde 2008, pertence a Eduardo Queiroz Monteiro, dono do grupo EQM.  O Grupo possui, ainda, a Usina Cucaú, em Rio Formoso (PE), a Estivas (RN), além de destilarias. Na sequência, decidiu também ser proprietário de um portal de notícias, o site Folha de Pernambuco, e mais recentemente, numa parceria com o Portal Movimento Econômico, que tem abrangência no Nordeste, incluindo Alagoas. No expediente, Queiroz aparece como presidente do conselho editorial.

Mesmo investindo em mídia e marketing para endossar a imagem da empresa social e ambientalmente responsável, o que lhe rende abundantes divulgações no meio corporativo denotando seu sucesso, Eduardo Queiroz não conseguiu livrar seu nome do envolvimento em graves denúncias, entre elas, o fato do Grupo EQM ter sido encontrado com o maior número de trabalhadores em condição análoga à escravidão em todo o país.  Entre 2001 e 2009, 1.406 trabalhadores foram resgatados da Destilaria Araguaia – cujo nome anterior era Gameleira –  que integra o Grupo. No último resgate de 55 trabalhadores, entre eles alagoanos, a condição encontrada por auditores fiscais era de pessoas endividadas pela falta de salário, que não conseguiam retornar para a cidade natal e terminavam por trabalhar em troca de alimento e abrigo. Detalhes foram relatados por auditores fiscais do Trabalho ao Repórter Brasil . Leia aqui). 

Além do mais, Queiroz Monteiro foi condenado pela Justiça Federal, em Pernambuco, a nove anos de prisão pela prática de gestão fraudulenta, envolvendo uma série de crimes. Quando então diretor do Banco Mercantil, foi acusado de promover desvio e apropriação indevida de dinheiro, repasses de informações falsas ao Banco Central, além de aplicação de dinheiro de correntistas em CDBs mesmo sem o consentimento deles.

Com a Utinga desde 2008, EQM descumpriu direitos trabalhistas sucessivamente, sendo necessária intervenção do Ministério Público do Trabalho para a realização de acordos que produzissem algum comprometimento para que a empresa, de fato, pagasse verbas rescisórias  e salários atrasados que, somados, chegavam na ordem de R$ 7 milhões – isso após acordo facilitado pelo MPT. A Usina e dois de seus diretores também foram citados num episódio de escândalo de corrupção envolvendo um terreno da Usina em Rio Largo, que foi desapropriado pela Prefeitura por um valor de R$ 700 mil para servir de casas a vítimas da enchente de 2010. Entretanto, ao invés dos desabrigados, a terra foi vendida para particulares pelos mesmos R$ 700 mil, quando, segundo o Ministério Público Estadual, o valor real seria de mais de R$ 21 milhões.

Com a segunda maior dívida ao Estado, de R$ 177 milhões, em 2019, a Usina teve sua fazenda em Rio Largo levada a leilão com lance inicial de lance inicial de R$ 71,6 milhões, porém, não houve compradores. Na segunda tentativa, o primeiro lance foi então reduzido para R$ 35.846 mi, o que corresponde a menos de 21% da dívida com o Estado.

Mesmo com toda essa conduta, as benesses estatais seguem aumentando em favor da empresa de Queiroz Monteiro. Sob a égide da garantia de empregos, o Governo de Alagoas assinou decretos ao setor sucroalcooleiro que favorecem mais benefícios no ICMS, sendo o último em setembro deste ano, assinado pelo Decreto de nº 99084, que você pode visualizar na íntegra clicando aqui, ou acessando o Diário Oficial do Estado de 3 de setembro de 2024.

Em Pernambuco, o Grupo EQM anunciou, por meio do site Movimento Econômico,  receber R$ 65,1 milhões da dinamarquesa European Energy, para produzir CO2 verde  para a produção de e-metanol na região no porto de Suape – que, de acordo com o portal, terá um investimento de R$ 2 bi para a planta instalada no local. Aliás, a reportagem especial SUAPE PELO AVESSO, da Marco Zero Conteúdo , traz detalhes sobre o complexo portuário, seu histórico vínculo com lideranças da indústria canavieira, além da imposição de uma narrativa de pretenso desenvolvimento econômico pautada, materialmente, na exploração de trabalho escravagista, na produção e reprodução de desigualdade social, e, finalmente, a partir de ações do governo estadual, na expulsão de comunidades tradicionais.

Benefícios para Usina, expulsão para famílias agricultoras

Longe de ser exceção, a relação das usinas com Estado – e a contrapartida nada amistosa com população rural – percorre uma longa história em Alagoas também. Mesmo recebendo benefícios fiscais, perdurando dívidas de recursos públicos, e até mesmo – volta e meia – funcionando sem pagar os trabalhadores, a Usina Utinga também alcança ainda mais uma vitória junto ao Estado – desta vez, ao Poder Judiciário.  Sob a reivindicação de que as terras lhe pertenciam, a empresa de Eduardo Queiroz Monteiro buscou a expulsão de centenas de moradores.

O processo judicial avançou até uma recente decisão de retomada de posse, para o dia 22 de novembro, executada de forma dramática contra mais de 200  famílias, nos povoados Lajêiro e Esperança. Grande parte  da população foi surpreendida no meio da noite com o aviso de que suas casas seriam demolidas.

O agricultor Ezequias de Lima, que residia em Esperança, relata sua experiência no último 22 de novembro. “A gente vivia aqui com a esperança de viver a vida inteira. Aí chegou um mandado na porta, de repente. De uma hora pra outra ‘sai, sai’ e é despejado. E eu ‘peraí, minha gente, deixa eu tirar pelo menos os cacos que eu tenho dentro de casa’. E ele disse, ‘você quer que a gente derrube a casa com você dentro?”, relata. “E até hoje minha esposa está acamada, não tem mais saúde, eu não tenho mais palavras.”

No processo judicial, e em alguns veículos da imprensa, o grupo do empresário  chegou a declarar que a área não estava ocupada por trabalhadores rurais, mas por “movimentos sociais que venderam e construíram ‘chácaras luxuosas’ na localidade”.

A Mídia Caeté procurou Eduardo Queiroz Monteiro e conseguiu contactar a assessoria de comunicação da Usina Utinga, que instruiu a visualizar a nota de esclarecimento abaixo:

Reprodução

Mesmo com relativa facilidade de ser desmentida, a alegação foi acolhida integralmente pelo juiz José Afrânio dos Santos Oliveira. O magistrado – que já foi penalizado pelo CNJ com remoção compulsória por uma movimentação imprudente – também proibiu, numa decisão controversa, que vítimas da mineração realizassem manifestações em frente à sede da Braskem, em Maceió.

Juiz José Afrânio, que acolheu integralmente alegações de usina, já se envolveu em polêmicas por coibir protesto contra a Braskem e por punição do CNJ (Foto: Agência CNJ Notícias)

A despeito das informações contidas no processo judicial, a realidade de centenas de pessoas alojadas em uma escola do município, e que viviam nas localidades há mais de 15 anos, demonstram que as famílias em Messias não se limitavam a militantes de movimentos sociais – o que não lhes retiraria qualquer direito, ainda que fossem- mas tampouco haviam vendido sua área por “chácaras de luxo”.

Cícera dos Santos conta que, quando chegou no Lajeiro com sua família, há 15 anos, encontrou um cenário onde tudo era, literalmente, mato.

Dona Cícera acolhida por sua filha, durante reunião das famílias agricultoras que tiveram as casas demolidas e estavam alojadas em uma escola da cidade. Foto: Wanessa Oliveira

“Está com uns 15 anos que fazemos essa plantação. Temos bastante pé de jaca, pé de açaí, de manga, laranja. Tudo botando. Nós pegamos a terra bruta, só com mato. Nossa casa, casa boa, passamos anos e anos para construir uma casa. e depois vir.. e derrubar”, lamenta, enumerando ainda mais plantações que esperava colher. “Era meu sonho da minha vida. A gente planta esperando colher. O sofrimento é grande”.

Nos povoados de Lajeiro, Esperança, Baixa Funda, foi possível ver os destroços das casas. Mesmo templos religiosos, como terreiros, capelas e espaços de culto, foram destruídos.

Militante do Comitê de Apoio aos trabalhadores de Messias, da Liga dos Camponeses Pobres, mostra uma santa que foi destruída, em terreiro demolido por reintegração de posse. Foto: Wanessa Oliveira

Desde 2010 morando na casa, Marcos Soares criava ovelhas. Desde que expulso da casa, teve que encontrar uma solução para seguir alimentando as ovelhas. Improvisou um espaço para dormir com a esposa e relata que, todos os dias, precisa fazer uma longa com pasto até o local onde os animais foram instalados provisoriamente.

Marcos Soares, aos 60, conta não saber mais como serão os dias seguintes. Foto: Wanessa Oliveira

“São três quilômetros com  capim na cabeça para que elas não morram de fome. Tenho 60 anos de idade, não tenho como arrumar outra fonte para sobreviver, pedir emprego em que?  Vou depender dessas ovelhas, para dar filhote e a gente poder vender no tempo certo, mas agora estamos sem rumo nenhum. Sem ter noção do que vai acontecer amanhã porque não tenho para onde ir”, conta.

Local onde Marcos Soares e sua esposa passaram a dormir, desde a demolição da casa. Foto: Wanessa Oliveira

Em 24 de outubro, chegaram com nova ordem de despejo, desta vez às margens da rodovia de Messias. Desde então, os moradores seguem apreensivos. “A gente aqui come da terra, cria peixe, vendemos macaxeira, coco. A gente vive da tera. agora está dizendo que é para a gente desocupar sair daqui e a gente não sabe o que fazer”, contou uma moradora.

Apesar disso, a área em questão sequer pertence à Usina, mas ao Departamento Nacional de Infraestrutura e Transportes (DNIT). Na reintegração de posse desta nova área, a Usina sequer se deu ao trabalho de tentar defender a tese de que a área era sua, resumindo-se a afirmar que a região se trata de área de acesso à Fazenda Estreito que – segundo a Usina – é de sua propriedade.  Ainda assim, o juiz Afrânio dos Santos concedeu à usina a ordem de despejo contra os moradores.

Apenas após intervenção dos advogados Diógenes Tenório Júnior e Marcia Regina, através de um mandado de segurança preventivo em favor dos moradores, em regime de plantão, o presidente do Tribunal de Justiça de Alagoas, desembargador Fernando Tourinho, sustou o ato de reintegração.

Os moradores, entretanto, seguem apreensivos de que a usina conquiste de volta alguma decisão favorável à demolição.

A Mídia Caeté procurou o DNIT e foi informada, através de assessoria, que o órgão não participa e nem solicitou qualquer reintegração de posse.

 

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