Por Jean Albuquerque, do site Alma Preta
“Eu acredito que a literatura infantil faz uma coisa incrível, que é se conectar com o futuro”, diz o escritor Renato Cafuzo, o qual é cria do Morro do Timbau, da Favela da Maré, localizada na Zona Norte do Rio de Janeiro. O autor está prestes a lançar presencialmente o segundo livro “Morro do Dragão”, escrito e ilustrada por ele.
A obra traz um universo cheio de significados e, ao mesmo tempo, ajuda os pequenos na conexão com a cultura e a ancestralidade. Além de buscar unir elementos mágicos ao contexto da favela, partindo da busca por “dragões reais” em histórias de diversas culturas.
É pelas histórias escritas, como as de Cafuzo, que as crianças negras podem explorar a si mesmas e o mundo ao seu redor. A literatura infantil negra oferece uma janela de possibilidades, desempenhando um papel essencial na construção de uma autoestima positiva e na afirmação da identidade racial.
“O livro infantil chega antes na vida das pessoas e tem o poder de nutrir eticamente, moral e emocionalmente as próximas gerações nos momentos mais vulneráveis das vidas delas. Logo, se a gente pensa a luta contra o racismo como uma construção, a literatura infantil negra e periférica é central nesse plano”, defende.
O escritor espera que as crianças negras que leem seus livros se reconheçam e se identifiquem em sua criatividade e no afeto com seus familiares, “e que se encantem com a própria história, do seu território e com histórias do mundo todo. O encanto é uma forma de aprendizado e se encantar ao se reconhecer é melhor ainda.”
Representatividade negra na literatura infantil
O escritor paulista, designer gráfico, ilustrador e pesquisador afrofuturista Henrique André, que tem nove livros publicados, entre obras destinadas ao público adulto e livros infantis, conta que trabalhar com personagens negros em sua escrita é o que lhe move.
“O universo que crio está mais próximo do cotidiano, do dia a dia, ou os mais fantásticos e mais sonhadores, eu sempre penso em universos para pessoas pretas, para corpos pretos, situações pretas vivenciadas por personagens pretos que me atravessam, que atravessam os meus, ou que, se não me atravessaram”, detalha.
Henrique André acrescenta que como um homem preto, escreve o que lhe atravessa a partir das pesquisas que desenvolve e das demandas que sua “criança interior” pede. “Quero retratar que em lares pretos existe afeto entre corpos pretos e que não é só a dor que nos atravessa. A dor existe, o racismo é inegável, mas a gente pode subverter essa realidade sonhando e realizando sonhos”.
O escritor afirma que a motivação para escrever livros infantis com a temática afro-brasileira apareceu a partir do seu contato com o afrofuturismo, movimento cultural, estético e político que vem ganhando destaque em áreas como literatura, cinema, música, arte e moda, a partir da perspectiva negra.
O autor destaca ainda os desafios de promover a “bibliodiversidade” em um mercado dominado por grandes editoras, enfatizando a importância de alcançar leitores periféricos e fornecer aos professores materiais que promovam a diversidade. “O maior desafio é romper essas bolhas e fazer com que o que a gente escreve chegue para os principais leitores que a gente almeja.”
Já a professora doutora, escritora, palestrante e sócia idealizadora da Escola Afro-Brasileira Maria Felipa, em Salvador (BA), Bárbara Carine, avalia que a representatividade negra na literatura infantil brasileira tem crescido significativamente.
Ela relembra que, na década de 1980, a representação dos negros era majoritariamente negativa, com personagens animalizados ou retratados como escravos em situações contemporâneas. À época, a literatura sobre negros era escrita por brancos, perpetuando estigmas.
Hoje, a professora celebra com entusiasmo o crescente número de autores e autoras negras que, por meio de suas obras, contribuem ativamente para o empoderamento, a valorização da cultura e identidade de sua comunidade.
E ainda argumenta que a falta de representatividade negra na literatura afeta o desenvolvimento das crianças e impacta na construção subjetiva do psiquismo da criança, “porque onde a gente não se vê, a gente não se projeta, a gente não se pensa”.
“Muitos espaços de poder não têm essa projeção de crianças negras, de jovens negros, justamente porque não acessamos históricos de pessoas negras que estão ocupando esses espaços”, explica.
Para a educadora, é necessário pensar nesses lugares com a perspectiva Sankofa, de olhar para um passado potente e se potencializar no tempo presente, além de pensar em estratégias coletivas de emancipação no futuro.
Desconstrução de estereótipos na primeira infância
A especialista defende que a literatura infantil pode auxiliar na desconstrução de estereótipos e preconceitos, que estão relacionados à população negra desde a primeira infância. Com isso, desconstruindo mitos de histórias únicas contadas pelo europeu, a exemplo da ideia de supremacia branca, de que eles são belos, tem uma religião que é aceita, produzem conhecimento científico, tecnológico, filosófico, literatura, e são desbravadores.
Para Bárbara Carine, é importante “contar as nossas próprias narrativas a partir de outros marcadores de potencialização dessas crianças. Então, trazer elementos de positivação da nossa ancestralidade, das nossas memórias, eu acho que essa é uma via potente de trabalho da literatura infantil nesse processo de desconstrução de estereótipos negros.”
A professora também pontua que a representatividade negra vai muito além da inclusão de personagens pretos. A professora diz ainda que já viu na literatura negra personagens descalços, em terrenos baldios, mal vestidos, pobres, tristes, e em alguns casos, com uma história de superação.
“A gente quer construir no imaginário coletivo social infantil outra perspectiva, uma identidade de potência, de positivação, de altivez. Então, eu acredito que a gente precisa representar pessoas negras na literatura infantil em um lugar de poder, de ocupar os espaços de poder da nossa sociedade”, fundamenta.
Este conteúdo faz parte de uma parceria com a Fundação Maria Cecilia Souto Vidigal para a produção de reportagens sobre a primeira infância.