sexta-feira 22 de novembro de 2024

Beatles forever

A noite estava linda e sem qualquer ameaça de chuva. O que por um segundo me fez pensar, egoisticamente: poxa, bem que a lona poderia ter furos, só para que eu pudesse usufruir uma visão romântica das estrelas.

10 de setembro de 2021 10:33 por Mácleim Carneiro

 

Quebrei o meu retiro espiritual-etílico, dei um tempo na leitura de 1822, e fui ao circo. Só para melhor contextualizar este lero. Devo dizer que estava eu de férias no reino do King Sauaçuhy, o qual fica em um ponto equidistante entre o próprio reino e o resto do planeta. Mais ao norte do reino, localiza-se o que alguns chamam carinhosamente de Parispueira. A título de informação, esta pequenina cidade, no litoral norte de Alagoas, segundo alguns paripueirenses, agora está maravilhosa. Mas, o que será que aconteceu? Simplesmente, afirmam eles, o atual prefeito tem feito a coleta do lixo regularmente. Parece, e de fato é, muito pouco para tanta euforia. Quando a obrigação ganha ares de virtude, algo está errado!

Mas, voltemos ao espetáculo, ou melhor, ao circo. Ele, o Circo África do Sul, por sua vez, encontrava-se em um ponto equidistante entre o reino de Sauaçuhy (o único lugar onde ainda existe Mesbla) e a agora asseada Paripueira. De tão pequenino e escondido num rebentão, as margens da BR 101 Norte, descobri-o por acaso. Armaram-no tão inclinado que, por mais forte que seja a chuva, o declive da lona (diga-se de passagem, sem furos), portanto, de todo o circo, não possibilitaria cair um pingo sequer dentro do mesmo. Isso, me impressionou.

A noite estava linda e sem qualquer ameaça de chuva. O que por um segundo me fez pensar, egoisticamente: poxa, bem que a lona poderia ter furos, só para que eu pudesse usufruir uma visão romântica das estrelas sob a lona de um circo pra lá de mambembe. E lá fui eu, após previamente ter sido informado que o espetáculo começaria às 20 horas. Fui pontual, mas o espetáculo não! Dentro do circo rolava um som daquele forró-de-plástico, nos píncaros dos decibéis, que nem o Cícero Almeida aguentaria, fazendo jus à proporcionalidade – alagoanamente comprovada – música ruim, volume elevado. Pois bem, baseando-me em minha pontualidade, imaginei que não haveria espetáculo àquela noite, pois o circo estava às moscas. Daí, perguntei a um rapaz (que descobri depois ser o “domador” do bode) se o espetáculo aconteceria, mesmo se eu fosse o único espectador. Ele disse que sim e que começaria entre 20h30min e 21 horas, mas que era assim mesmo e logo logo a plateia começaria a chegar. Perguntou se eu queria entrar e esperar lá dentro. Informou, também, que depois eu pagaria a entrada, como algumas pessoas que já haviam entrado para esperar sentadas. Agradeci a gentileza e, de imediato, refleti: se aquela música lá dentro já estava quase me fazendo desistir, imagine então a tortura que seria mais próximo dela. Quem me conhece sabe que música ruim me torna vítima da pior sinestesia.

Procurei um lugar mais confortável no meio-fio e resignei-me. Na melhor das hipóteses eu esperaria de trinta minutos a uma hora. Aproveitei para observar as pessoas – crianças e pré-adolescentes, na grande maioria – que, aos poucos, cumpriam a profecia do domador do bode. Enquanto eu esperava, perdi a conta de quantas vezes um rapaz (que vim saber depois ser o “Garotinho Aroldo”, o equilibrista) subia no poste da rede elétrica, para cutucar uma gambiarra que insistia em provocar blecautes no circo inteiro. Quando dei por mim, o meio-fio estava lotado e eu ouvindo diálogos, tipo: “Por que você chamou meu irmão de filho da puta? A mãe dele é a mesma minha…”, disse, com jeito furioso, uma menina gordinha encarando um moleque que tinha a cabeça desenhada como a do Neymar, à época, jogador do Santos.

A bilheteria abriu e as pessoas começaram a comprar os ingressos. Depois que quase todo mundo já havia entrado (eu resistia bravamente a um contato mais próximo com aquela música que, na proporção inversa ao volume, baixava cada vez mais de qualidade), fui comprar o meu bilhete, que custou dois reais e dava direito a uma cartela de bingo. Evidentemente, o meu ingresso era para o “poleiro” (arquibancada), pois as cadeiras custavam três reais e eu havia observado que estavam posicionadas ao lado do picadeiro – que nada mais era do que um pedaço de lona de caminhão estirada no meio da ladeira. Como o terreno era agudamente inclinado, as cadeiras tinham inclinação lateral, percebe? Aliás, fui informado, pelo próprio artista que fazia a boneca maluca (aquela desengonçada, que é jogada de qualquer jeito no chão) e que por ora atuava como vendedor de maçãs do amor e pipoca de isopor, que devido à inclinação do terreno e os calombos e tocos sob a lona do picadeiro, por motivo de segurança, sua apresentação estava suspensa naquela temporada.

Finalmente, adentrei ao África do Sul e procurei um lugarzinho no poleiro, que me pareceu mais seguro. Explico: é que as tábuas que faziam a arquibancada, de tão finas e maleáveis, pareciam elásticas, com a molecada pulando de tábua em tábua, para cima ou para baixo. Escolhi um cantinho que me proporcionasse uma fuga segura, no segundo degrau, bem próximo à saída. Como previ, ninguém se ariscou a comprar ingressos para as cadeiras. E nada do espetáculo começar. O poleiro já estava lotado. E nada do espetáculo começar. Nisso, acontece uma cena bem representativa de onde estávamos e do quanto a cidadania do povo brasileiro ainda está por ser construída. A menina gordinha, aquela que encarou o generiquinho do Neymar, foi comprar uma maçã caramelada. No momento em que o atual vendedor de guloseimas, o boneca maluca em estand by, lhe entregava o pedido, num vacilo, a maçã foi ao chão de terra e, claro, rolou obedecendo à lei da gravidade. Resultado, ficou parecendo uma maçã à milanesa. Daí, numa rápida negociação, o que parecia um problema virou solução para ambos. Ele, reduziu o preço e se livrou da “maçã quente e empanada”, ao invés de oferecer outra. Ela, com uma delicadeza tal, que eu não havia percebido momentos antes, lá no meio-fio, aceitou prontamente a negociata e tentava limpar a maçã sem perder o caramelo.

“Senhoras e senhores, vai começar o espetáculo! O circo África do Sul, uma organização Mário Nelson, apresenta nossa primeira atração. O Garotinho Aroldo! Sucesso! No perigoso número da corda bamba.” Aliás, durante as apresentações o apresentador falava o tempo todo, a palavra sucesso! Até para o bode Beatles. Sim, esse é o nome do único animal do África do Sul, embora o sugestivo nome do circo nos remeta às savanas e seus leões e afins. “Esse é o sonho das organizações Mário Nelson, um circo com grandes animais. Mas, até agora, só temos o bode Beatles”, me confidenciou o boneca maluca. Na sequência, pois o espetáculo não pode parar, o apresentador pergunta: “Vocês gostam de mulher? Tá fraco, mais alto!” E anuncia Luana, uma moreninha magrinha, de bunda empinada, que se esforçava para piorar o que os baianos inventaram, numa coreografia repetitiva onde a bunda sem Luana faria o mesmo efeito. Já Luana sem a bunda, não. Quando começou a apresentação do palhaço Jurubeba, com suas rimas chulas e déjà vu, passei o meu talão de bingo para uma menina que estava do meu lado, disse adeus, e fui embora de volta a 1822, convicto de que, ao que parece, o povo brasileiro precisa de muito mais do que pão e circo.

No +, MÚSICABOAEMSUAVIDA!!

 

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