26 de março de 2024 11:18 por Mácleim Carneiro
Qual a grande diferença da música instrumental em relação, digamos assim, à convencional, à música com letra e cantada? Sob determinado ponto de vista, aparentemente, seria o paradoxo da naturalidade objetiva, pois a música instrumental não precisa da intermediação das palavras, nem para o bem nem para o mal. Então, por que, na maioria das vezes, ela parece ser tão incompreensível ao gosto do ouvinte leigo aos meandros de uma música mais elaborada?
A audição do álbum instrumental, ‘Circular’, do baterista alagoano Carlos Ezequiel, nos permite espargir uma luz conveniente e aprazível na direção de uma melhor compreensão dessas questões interrogativas. Sabemos que o maior e mais receptivo mercado para a música instrumental ainda é o dos Estados Unidos, mas o músico brasileiro, na hora de produzir e gravar os seus trabalhos, nunca deu muita bola para essa realidade mercadológica. Vai em frente e realiza, mesmo que ainda seja para poucos e bons apreciadores do refinamento musical em texturas e climas sensoriais.
Lampejos Apolíneos
Circulando com Carlos Ezequiel neste trabalho, estão músicos que dialogam na mesma sintonia, embora com sotaques linguísticos e musicais diferentes. Aliás, dialogar na mesma sintonia é uma característica da música instrumental, sobremaneira. Não há colóquio musical sem afinação na interação dos protagonistas, o que os coloca no mesmo patamar e evita abismos e diferenças intransponíveis. Por isso, ‘Circular’ conta com o talento de músicos como o norueguês Lage Lund (guitarra), o americano David Binney (sax), e os brasileiros Gui Duvignau (contrabaixo acústico) e Gustavo Bugni (piano). Eles gravaram todas as faixas do álbum em duas sessões ao vivo, sem overdub, sem emendas. Todos eles na mesma sala, de uma só vez, como recomenda os melhores manuais jazzísticos, tipo: um, dois, três; valendo! Essa atmosfera está presente em cada faixa e é perceptível em nuances e dinâmicas, deslocamentos e métricas, conceitos e polirritmias próprias ao espírito criativo, onde a individualidade acontece a serviço do todo e o todo se rende ao prazer da individualidade improvisatória nos lampejos apolíneos.
O baterista alagoano, desde cedo, quando em 1996 foi estudar na Berkeley College, já estava decidido a interagir com outras possibilidades musicais e assumir uma carreira como compositor, tendo em vista a perspectiva de atuar não apenas como sideman. Ele sabia, por exemplo, que Charles Parker, na década de quarenta, já gravava com grupos cubanos. Que o Vitor Assis Brasil tocava elementos jazzísticos em música brasileira e ninguém podia dizer que aquilo não era música brasileira. Ou ainda, que o Villa-Lobos fez Bachianas Brasileiras, e não tem nada mais mesclado do que juntar Bach com a cultura nacional. Carlos Ezequiel, ou simplesmente Carlinhos, como é carinhosamente conhecido, foi em busca do que acreditava. Ele viu, vivenciou e hoje consegue se expressar por esse viés. ‘Circular’ tem muito dessa linguagem, de um hibridismo universal proposital e consciente!
Polirritmia Circular
A faixa quatro, ‘Circular’ (Carlos Ezequiel), que não por acaso dá título ao álbum, é perfeita como exemplo prático da riqueza de detalhes híbridos, implícitos a ela. O tema é um velho e bom baião em 2/4, porém, o groove se desloca circularmente. Daí o título do baião e do álbum! Com isso, como acontece na música africana, abaixo do Saara, o tema vai trocando o ponto de partida nos três tempos do baião, do primeiro ataque para o segundo e depois para o terceiro. Daí volta tudo, criando um deslocamento, uma polirritmia circular. Sem dúvida, isso a torna um tanto complexa, não por uma questão de dificuldade técnica na execução, mas porque altera a maneira de organizar a música, o que obriga aos músicos saírem da zona de conforto a que estão acostumados.
Das oito faixas de Circular, cinco são de Carlos Ezequiel e três do pianista Gustavo Bugni. Fica evidente que o cerne dos temas, de um e de outro, são distintos, mas preservam uma identidade lógica, que os aproxima em prol da unidade do álbum; o que leva a supor que ambos têm a noção de perspectiva. Ou seja, àquela noção de saber de onde viemos e de saber que caminhos escolher, se soubermos àqueles que os outros trilharam. Circular é um antídoto fortíssimo, uma vacina para este país musical, que a cada dia se torna um país mais surdo, porque as pessoas parecem ouvir mais a mesma música, e assim ouvem menos música na verdade.
No +, MÚSICABOAEMSUAVIDA!!!
Serviço
Circular, Carlos Ezequiel
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