A primeira pessoa a me falar sobre o Claudevan Melo foi o compositor Ibys Maceioh, em tom reverente, qualificando-o como o maior conhecedor do universo musical alagoano e dono de um fabuloso e organizado arquivo de discos. Porém foi o forrozeiro-carnavalesco José Lessa Gama quem o levou à livraria Dialética, no bairro histórico de Jaraguá, onde eu cumpria as funções de livreiro. Sujeito simples, mas firme e determinado, de sangue no olho, tacou-me logo um bocado de nomes de compositores alagoanos para testar a minha douta ignorância. Eu conhecia a maioria dos nomes citados como Fon-Fon, Jararaca, Hekel Tavares, Peterpan, Airton Amorim, Antonio Paurilio, Reinaldo Costa e Juvenal Lopes e ficamos amigos.
Claudevan Melo não é um mero acumulador de discos, como alguns indivíduos que eu conheci ao longo da vida, mas um estudioso orgânico da música popular brasileira, na sutil acepção do termo, um pesquisador sóbrio, que leva o seu trabalho às últimas consequências. Como colecionador temático — e o seu tema central é a música popular alagoana (também a erudita, sendo um ativo divulgador de Misael Domingues e Hekel Tavares, entre outros) — ele possui literalmente tudo que foi produzido por nossos artistas, seja compositor, instrumentista, arranjador, maestro ou intérprete: uma paixão que lhe consumiu mais de 45 anos de penosas pesquisas. Daria um trabalhão dos diachos fazer um levantamento completo de toda a pequena fortuna investida nesta missão quase sagrada, de guardar tudo, proteger tudo, possuir todas as peças musicais dos diversos autores alagoanos, e ele possui relíquias de causar inveja aos colecionadores mais exigentes e extremados.
Se você conhece cinco músicas de Peterpan (é raríssima tal possibilidade), o Claudevan lhe mostrará, em frações de segundos, cento e trinta discos de 78 rotações com obras deste autor. Ele simplesmente quebra a banca do jogo. O catálogo de seu acervo reúne mais de 5 mil discos 78 RPM e muito mais de 3000 LPS, além de uns 2000 CDS. Não satisfeito em reunir O letrista de músicas Sadi Cabral 8 este portentoso espólio, ele possui cerca de duas mil partituras, cinco mil recortes de jornais, milhares de fotografias, mais de 50 acetatos de 78 RPM, uma variedade notável de revistas, mais de 300 livros sobre música popular e erudita, teatro e cinema e até objetos pessoais de artistas como Jararaca e Hekel Tavares, para ficarmos só nestes dois. Enfim um tesouro vivo, resgatando a alma sonora alagoana, em seus pormenores mais líricos e profundos. Agora, definitivamente de volta à Maceió, desde janeiro de 2022, com o seu vasto acervo trazido num caminhão tipo baú, após mais de cinquenta anos, vivendo em São Paulo – e ele regressou para rever a mãe D. Elza, já idosa e a sua família —o irrequieto pesquisador já pretende publicar um livro foto bio musical sobre o letrista, ator e autor alagoano Sadi Cabral, o que faz com sábia argúcia e erudito esmero, embasado num inesgotável banco de dados. Ele simplesmente liquida o assunto.
Sadi Sousa Leite Cabral (Maceió, AL, 10/9/1906-São Paulo, SP, 23/11/1986) ainda criança seguiu com a família para o Rio de Janeiro, e aos cinco anos um tio o levou ao teatro e a mosca azul da arte o picou para sempre, deixando-se seduzir pelo palco, até projetar-se nacionalmente como um dos maiores atores deste país. Em 1936 participou do filme “Bonequinha de seda”, de Oduvaldo Viana, estrelado por Gilda de Abreu, e nunca mais parou de filmar; e Claudevan faz um levantamento minucioso desta filmografia, que conta com mais de 40 participações. Não era galã de cinema, mas dava verossimilhança às filmagens pelo reconhecido talento e o carisma pessoal.
No teatro e na televisão alcançou expressivo sucesso, sendo um dos pioneiros nas chamadas novelas radiofônicas seriadas, produzidas nas antigas emissoras Tupi e Excelsior. Sadi Cabral, nada custa acrescentar, além de professor de teatro (estudou grego para encenar os tragediógrafos da antiguidade clássica), foi o introdutor do método de Stanislavski (1863- 1938), da imersão total do ator no desempenho de seu papel, como nos relata a atriz Beatriz Segall em longa entrevista, pondo Sadi nos cornos da lua. Claudevan deixa-se entusiasmar com a versatilidade de Sadi Cabral que “caminhou por todas as áreas do conhecimento humano”, sobressaindo-se no campo das artes cênicas e desempenho cinematográfico. E tal criatividade, por fim transbordou por todos os poros, tornando-o um nome relevante da música popular brasileira, como letrista e parceiro de muitos compositores como Custódio Mesquita, Davi Raw, Vicente Celestino e outros bambas da época. Claudevan Melo, com a obsessão de museólogo e exumador de documentos e obras esquecidas, nos revela insuspeitos parceiros musicais de Sadi Cabral, como o alagoano Manoel Correa de Brito (Palmeira dos Índios, 1934-) que juntos compuseram a “Dança do Pagode”, baião gravado em 1962. E Sadi Cabral possui também música autoral, com letra e melodia, como é o caso de “Primeiro fui ver Mangueira”, gravado por Walter Levita (1920-2010), cantor baiano, como nos informa alguns comentaristas. Claudevan é um perito descobridor de pepitas musicais e como estudioso apaixonado ele exibe os discos de Manuel Bandeira, Jorge de Lima, Luiz Peixoto e outros luminares da poesia, com seus textos declamados por Sadi Cabral, espécie de síntese da cultura lírica brasileira. Foram mais de sessenta anos dedicados às artes em geral, até sua morte, aos oitenta de idade.
Dos compositores alagoanos esquecidos, sem sombra de dúvida, avulta-se o nome de Sadi Cabral, cuja obra ainda permanece mergulhada em brutal silencio pelas novas gerações de compositores, que ignoram pomposamente tudo que foi feito antes da data de seus nascimentos. Parece que cada geração só se lembra do próprio umbigo, fazendo da tradição, falha de memória. Mas há exceções, claro, que confirmam a regra.
Dos parceiros de Sadi Cabral destaca-se o nome do compositor, pianista e maestro carioca Custódio Mesquita (1910-1945), que foi o seu mais constante colaborador musical. Geniais compositores foram parceiros de Custódio Mesquita, citando alguns: Orestes Barbosa, Mario Lago, Evaldo Rui, David Nasser, Freire Júnior e muitos outros. Com o alagoano Sadi Cabral o Custódio fez cerca de seis a sete músicas, talvez haja outras, perdidas em velhos baús ou porões dos teatros, como alertou David Nasser, em seu livro “Parceiro da glória”, letras e melodias que sumiram e cabe aos pesquisadores o resgate destas peças subtraídas pelo tempo.
De todas as gravações do belíssimo fox-canção “Mulher” (1940), sobressai-se a original de Sílvio Caldas, com arranjo do próprio Custódio, sob influência da orquestra de Glenn Miller, e a menos criativa seria a de Ney Matogrosso, que deve ter feito os autores revirarem no túmulo; isso é perceptível para os admiradores que conheçam, verbi gratia, a interpretação de Orlando Silva (com arranjo de Radamés Gnatalli). Registro comovido e comovente deste fox-canção “Mulher” foi o do intérprete alagoano Marcus Vinicius (Pão de Açúcar, AL, 1937-Maceió, AL,1976), acompanhado ao piano pelo compositor e multi-instrumentista Nelson Ribeiro de Almeida (1912-1982) capelense de vigoroso talento musical; infelizmente gravado em precárias fitas antigas e de difícil acesso aos pesquisadores e estudiosos. Emílio Santiago deu um banho de voz neste fox aludido acima, enquanto Cauby Peixoto o registrou de forma espalhafatosa, com grande orquestra. Já o Carlos Galhardo preferiu fixar em vinil uma emissão contida, em sua aveludada voz de valsista. Com Custódio Mesquita o letrista Sadi Cabral também compôs a opereta “Bandeirante”, em 1938, intitulada depois de “Pássaro branco”, cuja montagem foi feita pela companhia teatral de Vicente Celestino, nos informa com precisão histórica Claudevan Melo.
A valsa “O pião” (1941) subintitulada “em tempo de samba”, gravada primeiramente por Sílvio Caldas, de melodia melancólica, cujos versos “O destino puxou a fieira/Desse pobre romance de amor”, eu reputo como um dos mais felizes de nosso cancioneiro popular, uma perfeita fusão entre letra e melodia, entre forma e fundo, atingindo seu ápice de tensão dramática
melodia, entre forma e fundo, atingindo seu ápice de tensão dramática. Sadi Cabral compôs ainda com Custódio Mesquita as valsas “Bonequinha”, gravada por Carlos Galhardo, em 1941, e “Velho realejo” (1940), outro registro esplendido de Sílvio Caldas e a canção “Quando florescer o manacá” (1943). Last but, not least, Claudevan nos brinda com a partitura e disco da canção “Quero voltar”, parceria inusitada entre Sadi Cabral, Custódio Mesquita e Vicente Celestino, com acompanhamento da orquestra Victor.
Outro parceiro citado por alguns jornalistas é Davi Raw (1925-1999), produtor de rádio e televisão, com quem Sadi supostamente teria composto dois choros, “Sapoti” e “Cachorro vagabundo”, além do samba (Ciúmes), este gravado por Rubens Peniche (1921-2005), cantor paulista de pseudônimo Valtenir Pinto. Mas não apresentam dados suficientes e conclusivos, nem datas, ou letras, sequer os próprios discos. Fica aqui apenas a notificação.
Orlando de Barros, autor da biografia definitiva de Custódio Mesquita, compara o sensual fox-canção “Mulher” com dois sambas-choros eróticos, “Curare” e “Da cor do pecado”, ambos do boêmio carioca Bororó (Alberto de Castro Simões da Silva: 1898-1986), gravados, respectivamente, por Orlando Silva e Sílvio Caldas, seus mais intrépidos intérpretes.
Claudevan Melo aqui nos surpreende com sua sensibilidade de pesquisador nato, anotando, passo a passo, a trilha deste grande alagoano Sadi Cabral, poeta, ator, homem de rádio, escritor, poliglota, tradutor, professor e artista multicompleto. Alagoas sai mais rica após esta tarefa de resgate e reconstituição histórica de nosso passado cultural. Claudevan escreveu um livro indispensável àqueles que se dedicam ao estudo da MPB, de forma geral e dos compositores alagoanos, em modo particular.
Polemista apaixonado que não tolera indiferença ao patrimônio musical alagoano, ele comprova que inexiste em Maceió um logradouro público, sequer uma placa de linha de trem, com o nome deste sofisticado compositor Sadi Cabral, o que demonstra a ignorância crônica de nossos políticos e gestores públicos de cultura. O descaso tem a força de um coice de mula. E imediatamente o autor logo nos informa da existência de uma praça Sadi Cabral em São Paulo, no Alto da Lapa (fornece até o CEP: 22795- 425), de outra na rua do Recreio dos Bandeirantes, no Rio de Janeiro (Cep: 22795-425) e já houve até um Teatro Sadi Cabral na Avenida Angélica, em São Paulo (extinto). Isso nos enche de entusiasmo e deplorável tristeza, pelo enorme reconhecimento do poeta lá fora e a ausência total deste reconhecimento em sua própria terra.
Vamos reagir a esta espécie de desconstrução cultural lendo imediatamente este livro; leiam-no e divulguem-no, somente assim far-se-á justiça histórica ao extraordinário artista alagoano Sadi Cabral, e também ao seu biógrafo autorizado, o estudioso e incansável pesquisador Claudevan Melo. Afirmo e assino embaixo. Doa a quem doer!
Marcos de Farias Costa
Maceió, Punta la Verde, 03 de maio de 2023.