sábado 23 de novembro de 2024

Clarice na memória de outros

Dessas vivências arquivadas emergem a criança, a adolescente e a adulta Clarice em gestos únicos, em relances furtivos
Mona Hataum, Suspensa, 2011

Por Ricardo Iannace, do site A Terra é Redonda

Impressões do olhar

As cinquenta e sete partes e os sessenta e cinco colaboradores aqui reunidos se manifestam com um mesmo propósito: recuperar a imagem de Clarice Lispector. As tintas e os traços que as vozes declarantes emprestam à composição do perfil da ficcionista são também generosos nas variáveis de construção: entrevista, depoimento, carta, crônica, poema.

Por meio desses gêneros, chegam-nos impressões de diferentes pessoas – daquelas que possuem laços sanguíneos com a autora (filho, primos, sobrinha-neta), senão, daquelas que integram o núcleo familiar (é o caso da concunhada), bem como de amigos, colegas e conhecidos (alguns mais próximos; outros, menos). Daí a pluralidade tonal. Daí o modo personalizado de plasmar os acenos testemunhais. Daí o mosaico sortido dos registros de escopo fundamentalmente memorial.

De fato, as vozes expositivas, ao longo das páginas deste livro, enquadram sua personagem em ângulos múltiplos. Os familiares reportam-se à árvore genealógica: alumiam, portanto, as histórias de viagem (ancestralidade, êxodo), e as lembranças que sinalizam as privações monetárias se ungem com sentimentos de afeto e saudades.

Dessas vivências arquivadas emergem a criança, a adolescente e a adulta Clarice em gestos únicos, em relances furtivos. Ela ressurge em flashes, atravessando praças e ruas de Recife; ela expressa singularidade e talento precoce para a literatura (sempre a bela caçula, conectada com o pai e unida às irmãs). Nesse resgate, a velha Rússia e o nordeste brasileiro expandem-se afortunadamente em constelações culturais.

Nos relatos dos amigos repousam as recordações da mulher cujo comportamento atesta dissonância com protocolos, avessa a padrões, convencionalidades – a ignorar o cumprimento de etiquetas que possibilitam a aceitação social; entretanto, os íntimos jamais pouparam esforços para servi-la (Clarice Lispector oscila no humor e realiza ligações telefônicas em horários impróprios – ora se fecha para o mundo, ora exige a presença imediata dos poucos a quem confia a proximidade –, e isso a qualquer momento do dia). Determina que a conduzam de carro para algum restaurante; quando não, sem a mínima paciência, impõe urgência no retorno ao apartamento.

Há ocorrências que permitem analogia com certo cotidiano a rigor estampado em A descoberta do mundo (1984), mas sob outro ponto de vista, evidentemente. Isto é, com permuta de narrador; quer dizer: narradores (cúmplices) da sensibilidade, das preferências e idiossincrasias de Clarice Lispector (visitas e passeios aos finais de semana, ida a teatro, recepção relâmpago com coloração sinistra nas dependências do lar; aceite para participação, seguido de viagem com estada estranhíssima, em congresso na América Latina; referências a empregadas, Coca-Cola, cigarro e incêndio no dormitório; encomendas de trabalho; Ulisses, o cão).

Conta-se sobre encontros nos quais se formam rodas de artistas e escritores; conta-se sobre uma gama sui generis de coisas, porém, a salvo raríssima exceção, não se conta sobre a autora externando seu intrincado, tenso e secreto processo de criação. Sem dúvida, tal assunto é quase silenciado.

Em meio a esse contexto (aliás, consideravelmente familiar ao leitor de Clarice Lispector) e aos expedientes de vida partilhados, ganha vulto a retórica fluida que constitui a matéria desta coletânea, graças a qual se reintegram fragmentos indeléveis, impedindo que resvalem ao esquecimento.

São majoritariamente inéditos. Um parêntese: ao lado destes textos que pela primeira vez se tornam públicos, estão os textos que no curso do tempo a tradição crítica da escritora trouxe à baila – todavia, neste volume, reaparecem integralmente e, melhor, na primeira pessoa do discurso, desgarrados (como de algum modo os conhecíamos) de produções ensaísticas que os apresentam a pretexto de citação ou alusão.

Ao conferir tal lugar e tal status a estes registros, Nádia Battella Gotlib divide conosco um esforço empreendido ao longo de quatro décadas, porque exatamente em 1983 ministrou sua primeira disciplina sobre Clarice Lispector como professora do Programa de Pós-Graduação em Literatura Brasileira na Faculdade de Filosofia, Letras e Ciência Humanas da Universidade de São Paulo. Conciliando o exercício docente com a pesquisa em fontes distintas a respeito da autora de Perto do coração selvagem (1943), nascia um projeto robusto, inteligentemente arquitetado, envolvendo e acolhendo jovens pesquisadores que assistiam a tudo isso com entusiasmo e admiração.

O resultado culminou em livros de referência sobre os quais a minha geração se debruçou, como se debruça a de meus alunos e se debruçarão as gerações vindouras: Clarice, uma vida que se conta (Ática, 1995; Edusp, 2009 [7.ed. 2013]) e Clarice fotobiografia (Edusp; Imprensa Oficial, 2008 [3.ed. 2014]).

De natureza biográfica, exegética e iconográfica, a pesquisa exigiu algo além da argúcia interpretativa do construto estético, do levantamento e da análise de documentos – reclamou da estudiosa o contato direto com personalidades cujos olhos avistaram Clarice Lispector; e elas permitiram que suas falas – quer em estrutura de depoimento, quer em estrutura de entrevista – fossem transcritas. Mas não só: houve quem concedeu à Nádia Battella Gotlib uma fotografia, um bilhete, uma anotação, os quais se materializam como peças complementares, visando à leitura da persona ucraniana e judia que fabulou em língua portuguesa, inquietou e impactou todos e todas que cruzaram seu caminho em Recife, Rio de Janeiro, Nápoles, Berna, Washington e terras italianas e territórios outros por onde passou.

Em suma, um alfabeto de A a W – ou seja, de Ana Maria Machado a Walmir Ayala – anima esta obra, reservando-nos incidentes tradutores do subterrâneo da autora que se inscreveu com uma pena porosa na orla do abismo e da redenção.

*Ricardo Iannace é professor de comunicação e semiótica na Faculdade de Tecnologia do Estado de São Paulo e do Programa de Pós-Graduação em Estudos Comparados de Literaturas de Língua Portuguesa da FFLCH-USP. Autor, entre outros livros, de Retratos em Clarice Lispector: literatura, pintura e fotografia (Ed. UFMG).

O lançamento em São Paulo é hoje, 22 de abril, a partir da 19 horas, com um bate-papo da autora com Manuel da Costa Pinto, na livraria Travessa-Pinheiros (Rua dos Pinheiros, 513).

Referência


Nádia Battella Gotlib (org.). Clarice na memória de outros. Belo Horizonte, Autêntica, 2024, 504 págs. [https://amzn.to/3U8pzjx]

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