14 de janeiro de 2021 9:44 por Geraldo de Majella
A tentativa de putsch trumpista vem ensejando especulações sobre o que se deve esperar de um país como o Brasil, que em tudo procura copiar o modelo do império, até na má escolha de seus presidentes, ou nos erros de suas respectivas oposições, sempre dispostas à política da conciliação, sempre refratárias ao enfrentamento, sempre receosas de rupturas, sempre preocupadas com a ordem e a segurança.
O que lá ocorre deve sempre ocorrer aqui, em medidas subdesenvolvidas quase sempre caricatas como toda macaquice, o que recomenda, a quem as tem, pôr as barbas de molho. Entre nós a aparente boa vida do capitão, ainda bafejado por apoio popular, pouco se deve às suas artes de feiticeiro, mas ao fato de, até aqui, nada obstante a resistência da opinião pública aos seus desmandos, não haver sido possível organizar uma oposição à altura do desafio, como ficou escandalosamente evidente no recente episódio da sucessão da mesa do senado, quando o PT abre as negociações apoiando o candidato de Bolsonaro, à troca de uns poucos cargos na direção daquela casa legislativa, enquanto sua bancada na câmara dos deputados ingressa com pedido de impeachment contra o ainda presidente da república.
O que o PT espera estar assinalando para o povo? Faltam-lhe, à oposição, corpo e alma, desde o desastre de 2016. Falta-lhe competência para a justa compreensão do quadro político, e de seu papel nele. É difícil, porém, pensar em uma ossatura vigorosa enquanto o maior partido de centro-esquerda não superar sua crise existencial, e o principal líder popular observar o quase silêncio de hoje. Por consequência, o governo navega sem contraponto ideológico. Na ausência do discurso de esquerda, a oposição que funciona é a meia oposição da direita, bem representada pelo deputado Rodrigo Maia, que, dissidente político, mantém sua filiação ao neoliberalismo e à política que dilacera nossa economia, ainda quando não mais esconda divergências, todas de ordem comportamental, com seu executante do momento. Não se deve rejeitar a companhia do atual presidente da Câmara dos Deputados, ao contrário, louvada deve ser sua atual postura, mas é evidente que a oposição de esquerda não pode conformar-se com sua liderança. De nosso campo mais se deve exigir e reclamar urgência em uma revisão de análise e métodos, pois a história não espera pelos retardatários.
Em artigo recente, José Dirceu lembra que a esquerda brasileira vive presentemente um momento de recuo, evidência com a qual todos concordam. Enquanto aguardamos a complementação de sua boa análise – como sair das cordas ? – reponho na mesa tema frequente neste espaço: muitos dos problemas da esquerda brasileira (a começar pelo recuo presente) se devem à renúncia ao debate político-ideológico que marca sua trajetória principalmente a partir de 2002 e se torna evidente nas políticas dos governos de centro-esquerda, obrigados a composições com a direita e o fisiologismo, o preço cobrado pela realpolitik para sua sustentação, mesmo assim ameaçada nos idos de 2005 e 2006. Essa aliança, aliás, foi ampliada com os afagos que fizemos ao sistema financeiro.
Lula, a propósito, sempre está a lembrar que os banqueiros nunca ganharam tanto neste país como em nosso governo. E quando a coalizão partidária e a conciliação com a burguesia foram rompidas, pela direita, a casa veio abaixo, e a presidente Dilma Rousseff foi deposta apesar das concessões representadas, por exemplo, pela nomeação de Joaquim Levy para o ministério da Fazenda, uma indicação do presidente do Bradesco. Não se trata, pois, de discutir a necessidade de alianças em nosso sistema presidencialista pluripartidário, no qual o partido que elege o presidente da República chega ao Congresso na condição de legenda minoritária. Na câmara que se instala em 2003 o PT detinha 90 cadeiras, num colégio de 513 deputados. A questão radica no caráter dessa composição, nos compromissos assumidos pelas partes, e nas concessões ideológicas e programáticas que o governo se vê na contingência de fazer.
De outra parte, impõe-se sempre a separação entre governo e partido, livre este para, ademais da vigilância sobre seu governo (que vai além da ocupação de cargos) prosseguir em seu trabalho de organização das massas e proselitismo político, a que renunciaram todos os partidos da base de centro-esquerda. A partir deste ponto vejo as dificuldades presentes na compreensão do caráter que deve ter a oposição ao regime que nos preside. O distanciamento do governo real das linhas partidárias e de seus representantes, o distanciamento entre as direções partidárias e a militância, entre o discurso da esquerda e as expectativas das grandes massas – que se reflete no pronunciamento eleitoral – são apenas a face amarga de uma mesma moeda: a cooptação dos quadros pela burocracia, no governo e nos partidos.
O ponto de separação das linhas está em menos cuidar do atual governo em si e de seu chefete e mais voltar-se para seu substrato ideológico, uma formação conservadora e reacionária com franca presença na classe-média e em setores populares. Bolsonaro não construiu qualquer doutrina, nem formulou o que seja que se possa assemelhar a um programa com meio e fim claros. Seu discurso é um amontoado de sandices. O mérito do capitão está em de haver identificado entre nós uma corrente de pensamento (ou simplesmente sentimentos) reacionária, ultraconservadora, inteiramente à mingua de representação e liderança. Neste sentido, ele responde a uma necessidade social, cuja existência não nos fôra dado perceber quando a serpente era apenas um ovo por ser eclodido, ludibriados que fomos pelos nossos feitos eleitorais, que nada diziam respeito à consagração de nossas ideias, pois simplesmente refletiam o prestígio de então de um líder de massas carismático.
Nos EUA, a questão central não é Trump, possivelmente uma página virada na política eleitoral do império. O que importa, na análise, é considerar o espírito que estava por trás dos vândalos do capitólio e que, antes, assegurara a histórica votação do quase ex-presidente. [Embora derrotado, por pequena margem de votos, aliás, Trump sagrou-se o 2º presidenciável mais votado da história dos EUA; esses dados devem ser lidos como sinal de que a radicalização seguirá por um bom tempo.) Este espírito persiste como ameaça ao futuro governo Biden, e pode mesmo pôr em risco a estabilidade institucional da maior potência nuclear do mundo dilacerada em suas entranhas por um conflito etnoracialsocial sem esperança. Também na metrópole, o trumpismo não foi obra mercadológica de Donald Trump. Coube-lhe dar voz e expressão ao que de mais atrasado sobrevive, forte, na sociedade americana, e que se reflete em sua divisão aparentemente irremediável. Outro ingrediente, que não deve ser descartado, é a obviedade do anacronismo do sistema político daquela que até há pouco se apresentava ao mundo como modelo de democracia representativa. Mas esta distonia está longe de morar no cerne da questão.
A insurreição no Congresso em Washington, bem como a ascensão de Bolsonaro em nosso processo político, não devem, pois, ser vistas como “pontos fora da curva”. Por trás do fenômeno brasileiro se encontram fileiras de militares, a grande burguesia, os grandes partidos (MDB e PSDB à frente), os setores mais atrasados da ação religiosa, e, coroamento ideológico, os grandes meios de comunicação de massa em sua pertinaz campanha contra a política, contra as esquerdas e, mais especificamente contra o Lula e o PT. Como nos observa o sempre mestre Paulo Sérgio Pinheiro (“O golpe de estado em Washington: lições para o Brasil”), a vilania [o assalto ao capitólio com direito à bandeira confederada]“foi construída a partir de uma campanha consistente, durante quatro anos de solapamento das instituições democráticas, pelo presidente Trump, desde a campanha eleitoral até as acusações ao novo governo eleito”. Mutatis mutandis, o mesmo se aplica ao Brasil de hoje e ao possível Brasil de amanhã.
Desde que assumiu o governo, coerente com seu passado e agora com as costas largas da sustentação dos generais, o ainda presidente Bolsonaro vem, impunemente, investindo contra as instituições republicanas, na expectativa de uma oportunidade de virada do jogo democrático, de que que, aliás, já esteve próximo. O antídoto é o confronto ideológico. E este só será possível pela esquerda, que, no entanto se encontra em recuo que se diz tático, mas que terminará por tornar-se estratégico, se não encontrar forças e argumentos para ocupar o posto de vanguarda que a história costuma oferecer-lhe, mas no qual não tem cadeira cativa.
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“Tem que vender essa porra logo” . Assim se pronunciou o inefável Paulo Guedes sobre a privatização do maior banco brasileiro, um patrimônio de nosso povo, o Banco do Brasil. Para facilitar o negócio com seus parceiros da máfia financeira, o ex “Posto Ipiranga” acelera o desmonte do Banco, que acaba de anunciar 5000 demissões e o fechamento de 361 agências. Instituição fundada em 1808, o Banco do Brasil figura entre as instituições financeiras mais sólidas do mundo, e em 2020 (o ano da pandemia e da retração dos negócios) deu, de lucro, a bagatela de R$ 10 bilhões (quase R$ 17 bi em 2019). Sua privatização é sonho antigo da burguesia nativa. Vai passar em branco?
A frente de esquerda como ela é. Um grande acordo (PT, PSDB e PSL), tendo como base a distribuição de cargos da mesa diretora, selou a recondução do vereador Milton Leite (DEM) para a presidência da Câmara Municipal de São Paulo. Leite concorria com Érika Hilton, candidata do PSOL.
Roberto Amaral é escritor e ex-ministro de Ciência e Tecnologia